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Do primeiro fruto da segunda palavra

Capítulo V. Do primeiro fruto da segunda palavra
Da segunda palavra proferida na Cruz, podemos colher alguns frutos, e frutos excelentes. O primeiro é a consideração da imensa misericórdia, e liberalidade de Cristo; e quão agradável e proveitoso seja servi-lO. Cristo, macerado pelas dores, poderia não atender a súplica do ladrão, porém a Sua caridade antes quis esquecer-Se dos acerbíssimos tormentos, que estava sofrendo, do que deixar de prestar atenção àquele miserável pecador, que nEle confiava. O mesmo Senhor, nem uma só palavra proferiu aos insultos e injúrias dos sacerdotes e soldados, mas ao clamor daquele pobre penitente, que o confessava a sua caridade não pode ficar silenciosa. Às injúrias emudeceu ela, porque é sofredora; à confissão não, porque é benigna.

Mas que diremos da liberalidade de Cristo? Os que servem os senhores deste Mundo, muitas vezes, não obstante, os muitos serviços que lhe prestam, pouco proveito tiram, pois não são poucos os que, todos os dias estamos vendo, voltarem para suas casas velhos e quase a pedir, depois de terem passado toda a sua vida nos palácios dos Príncipes. Cristo, Príncipe, verdadeiramente generoso e magnífico, nenhuns serviços recebeu deste ladrão senão algumas boas palavras e bons desejos de O servir, e eis aí como o remunerou. No mesmo dia primeiramente lhe são perdoados os seus muitos pecados, que tinha cometido com os crimes de uma vida inteira, depois é admitido à companhia dos Príncipes do seu povo, isto é, à companhia dos Patriarcas e Profetas, finalmente é feito participante da Sua mesa, da Sua dignidade, da Sua glória, e por isso todos os seus bens. Hoje, lhe diz o Senhor, estarás comigo no Paraíso; e fez o que disse, sem demorar a recompensa para o outro dia, pois naquele mesmo, em que fez a promessa, lhe lançou no regaço remuneração plena, avantajada, de cogulo, a transbordar (Lc 6). Nem só com este ladrão foi Cristo tão generoso: dos Apóstolos uns deixaram para O servirem, os seus barquinhos, outros os seus telônios, outros as suas casinhas; Ele constituiu-os Príncipes sobre toda Terra, sujeitando ao seu poder os demônios, as serpentes, e toda a qualidade de enfermidades (Sl 44; Mt 10). O que por amor de Cristo der de comer ao pobre ou o vestir, ouvirá no dia do Juízo:

“Tive fome e deste-me de comer, estava nu, e cobriste-me: entra por isso na posse do reino sempre eterno”  (Mt 25)

Finalmente aí tens uma prova da liberalidade do Senhor, (não falando em outras) e quase incrível, se não fosse uma promessa feita por Deus:

“Todo aquele que deixar a sua casa, ou seus irmãos, ou suas irmãs, ou seu pai, ou sua mãe, ou sua mulher, ou seus filhos, ou seus bens, por causa do meu nome, receberá centuplicado, e possuirá a vida eterna” (Mt 29)

São Jerônimo (1) e outros sagrados doutores explicam esta passagem de modo que a significação daquelas palavras é a que segue — Aquele, que nesta vida deixar por Cristo algum objeto temporal, receberá remuneração duplicada, e ambas estas incomparavelmente de maior valor, que a do objeto, que por Cristo for deixado. Primeiramente receberá nesta vida o gosto espiritual, ou o espiritual galardão centuplicadamente maior, e de mais preço do que o do objeto que por Cristo deixar: de sorte que em bom raciocínio antes quererá quem assim fizer, conservar-se na posse daquele bem espiritual, do que trocá-lo por bem propriedades rústicas ou urbanas, ou coisas semelhantes: além disto, como se aquela paga ou remuneração fosse pequena, ou nenhuma, receberá aquele feliz mercador no futuro século a vida eterna, ou o conjunto de todos os bens. Tal é sem dúvida a liberalidade de Cristo, o maior dos Reis para com aqueles, que deveras se resolveram a segui-lO. E não são loucos, os que, abandonando Cristo, querem antes fazer-se escravos das riquezas, da gula, e da luxúria? Dizem, porém os que não sabem avaliar os tesouros com que Cristo remunera:

«Isso são palavras; porque nós vemos os servos de Cristo ordinariamente pobres, sujos, desprezados, e tristes; e nunca vimos o cêntuplo, que tu tanto engrandeces»

É assim; o homem carnal nunca viu o cêntuplo, que Cristo prometeu, porque não tem os olhos, com que ele se pôde ver, nem gozou nunca aquele gosto completo, que nasce de uma consciência pura e do verdadeiro amor de Deus. Vou apresentar um exemplo pelo qual o espírito carnal possa de algum modo fazer ideia das delícias e riquezas espirituais. Lê-se no Livro dos homens ilustres da Ordem de Cister (2), que Arnulfo, pessoa nobre e rica, abandonando tudo isto, se metera monge naquela Ordem, sendo seu abade São Bernardo. Deus deu-lhe exercício à sua paciência, principalmente, pelos fins da vida, com duríssimos flagelos de várias doenças, mas, quanto mais as dores o atormentavam, mais dizia ele, gritando: “verdade é tudo quanto disseste, Senhor Jesus”; e perguntando-lhe os circunstantes porque dizia isto, respondeu:

“O Senhor diz no seu Evangelho, que todo aquele, que deixar as riquezas e todos os seus bens por amor dEle, receberá nesta vida o cêntuplo e na outra a bem-aventurança”

É agora que eu compreendo a força desta promessa, e confesso que estou recebendo o cêntuplo de tudo quanto deixei, pois tão agradável se me torna a imensa acerbidade desta dor pela esperança da misericórdia divina, que por ela tenho que não quereria ver-me livre dela ainda mesmo pelo valor cem vezes dobrado dos bens terrenos, que deixei; pois sem dúvida o contentamento espiritual, que ainda não passa de esperança, vale cem mil vezes mais do que o temporal que atualmente é uma realidade.

Medite o leitor nestas palavras, e julgue depois quanto vale a esperança indubitável, divinamente comunicada, da vida eterna, que dentro em mui pouco tempo se vai gozar.


Referências:

(1) In Comment, ad cap. 29. Mat.
(2) Dist. 3. Exempl. 26

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(BELARMINO, Cardeal São Roberto. As Sete Palavras de Cristo na Cruz. Antiga Livraria Chadron, Porto, 1886, p. 72-77)

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