Capítulo XLI
Charitas Christi urget nos – “A caridade de Cristo nos constrange” (2 Cor 5, 14)
Nada, diz São Francisco de Sales no “Tratado do amor de Deus”, liv. VIII, c. 8, nada força tanto o coração do homem como o amor. Se um homem sabe que é amado de outro homem qualquer que seja, sente-se compelido a retribui-lhe amor por amor; se é um simples paisano que é amado de um grande senhor, muito mais é incitado; mas se é de um grande monarca que ele se vê amado, com quanto maior, força ainda se sente impelido? Saber pois que Jesus Cristo nos amou até morrer na cruz por nós não é ter os nossos corações sob uma prensa que lhes espreme fortemente o amor, com violência tanto mais veemente quanto é mais amável?
Jesus ama-nos: Ah! E quem o poderia duvidar depois de tantos sinais que nos deu da sua ternura? Sim, ama-nos, e quer que nós o amemos. Para isso é que ele se fez homem, morreu na cruz, instituiu o Sacramento da Eucaristia.
A nós se deu todo e sem a menor reserva. Se ele se encarna, diz um piedoso autor, e vem ao mundo, é por nós; se nasce num curral, se é deitado na palha de uma manjedoura, é por nós; se treme e chora, é por nós; se tem um corpo é afim de poder sofrer, de poder imolar-se por nós; se tem um coração, é para amar-nos; enfim, todos os movimentos de sua alma, todos os desejos do seu coração, todos os pensamentos do seu espírito são nossos e por nós. Sua vida é nossa; sua humanidade santa com todas as suas virtudes e todos os seus merecimentos, é nossa. Que digo? A sua mesma divindade com todas as suas perfeições, é nossa. Tudo nos deu no sacramento do seu amor, de modo tal que é impossível dar-nos mais; pois que pode ele dar maior e mais precioso do que ele mesmo? Sim, Jesus, incitado pelo amor imenso que nos tem, todo se deu a nós; por nós se consumiu: despendeu-se todo em nosso lucro, e é verdade o dizer-se que não há nada no mundo que seja tão perfeitamente, tão universalmente, tão unicamente nosso como Jesus Cristo.
Ó Deus! E seria possível que o meu coração ficasse insensível a tanto amor? Seria possível que eu não amasse a quem tanto me tem amado? Não, não, não quero ser ingrato. Jesus me amou; pois bem! Amá-lo-ei também eu. Que há ai mais doce, mais justo, mais glorioso que amar a Jesus? Se este bom Mestre me proibisse o amá-lo, tal proibição parecer-me-ia insuportável, ser-me-ia impossível submeter-me. Não amar a Jesus! Ó Céu! Só o pensa-lo me aterra mais que todos os tormentos do inferno. Ó Deus meu! Antes morrer que deixar jamais de amar-vos! Ah! Consuma o fogo do vosso amor o meu coração todo; nada de mim mesmo fique em mim, mas tudo o que eu sou, tudo o que eu tenho, seja vosso para sempre. Ai! eu amei-vos tão tarde! bem justo é que eu repare, quanto possível for, o tempo que perdi longe de vós; bem justo é que eu vos ame hoje de todo o meu coração, a vós que sois o meu Deus e que tão ardente desejo tendes de ser de mim amado.
Doce Jesus! Salvador da minha alma! único objeto dos meus desejos e do meu amor, socorrei ao vosso servo. A vós brado, a vós invoco do mais profundo do meu coração. Vinde a este pobre coração que vos quero dar todo, vinde estabelecer nele vossa morada, vinde derramar nele vosso santo amor. Fonte inexausta de amor, de doçura e bondade, amável e puro objeto de todos os meus desejos, haverá alguma coisa comparável á vossa divina beleza? O mel mais doce, o néctar mais delicioso chegam à vossa doçura? A neve e o leite mais puro aproximam-se da vossa pureza? Todos os tesouros do mundo, ouro prata, pedras preciosas, as mesmas honras e os mesmos prazeres, poder-me-iam tocar, depois que saboreei vossos encantos? Não, Deus meu, não, só vosso quero ser, só a vós quero pertencer para sempre; vosso filho quero ser por toda a eternidade! Ó Jesus! Sede-me sempre Jesus!
Pois que Jesus Cristo se deu todo a nós, é de justiça que nós a ele nos dêmos todos sem reserva. Devesse isto custar-nos grandes trabalhos, penosos sacrifícios, não importa; sejamos todos de Deus, é justiça. Devesse custar-nos a perda dos nossos bens, do nosso repouso, da nossa honra, não importa: sejamos todos de Deus, é justiça. Devesse, enfim, custar-nos a perda de tudo o que no mundo temos de mais caro, da nossa própria vida; não importa, não importa: sejamos todos de Deus, é justiça. Mas que! É preciso estar a deliberar tanto para me resolver a dar a Deus amor por amor? Tão mau seria ser todo, todo, de Jesus! Ai! Que o maior, o mais medonho de todos os males, é o não ser dele.
E esta foi, ó bom Jesus! No entanto a minha desgraça por muito tempo. Ah! Quantos anos passei eu longe de vós! Ai! Eu então andava cego, ignorava o que vós fizestes por meu amor. Meu Redentor, trazei-me sempre à memória os sofrimentos que padecestes para testemunhar-me a vossa ternura; fazei que sua recordação nunca se aparte do meu espírito, afim de poder compreender quanto me amastes. Se pelo passado levei a vida tão desregrada e tão culpável, é que eu, ó Jesus! Não considerei o amor que por mim tivestes. Eu bem sabia, contudo, o grande pesar que vos dava com meus pecados; mas ai! este conhecimento que tinha não me impedia de cometer muitas faltas. Pudesse eu hoje morrer de dor de as ter cometido! Ah! Eu de certo não tinha coragem de implorar o perdão, se não soubesse que vós morrestes para perdoar-me. Sim, vós morrestes na cruz, porque desejáveis o meu amor. E eu, ó Jesus! Eu desejo tão pouco o vosso! Fazei-me a graça de o desejar mais que a todos os bens deste mundo… Ó meu soberano e único tesouro! Amo-vos mais que a todas as coisas, amo-vos mais que a mim mesmo, amo-vos de toda a minha alma, e outro desejo não quero ter que amar-vos e ser de vós amado. Esquecei, ó Jesus meu! Esquecei as ofensas de que me tornei culpável para convosco, e amai-me ainda, apesar das minhas in¬gratidões; amai-me muito, para que eu possa também amar-vos muito. Vós sois o meu amor, sois a minha esperança; sabeis quão fraco sou; socorrei-me, pois, ó Jesus! Meu amor, socorrei-me. Fazei que eu na vida e na morte, e por toda a eternidade brade incessantemente:
“Meu Deus! Meu Deus! Sois o meu amor e meu tudo! Sois o meu amor e meu tudo!”
Devemos dar-nos todos a Deus sem reservar nada, sem exceptuar nada; pois, por mais que nós demos, sempre damos muito pouco, e tão pouco que nem se devia contar por nada. Trabalho, mortifico-me, levo a minha cruz, dou até a minha vida pelo amor de Deus; mas o que vem a ser a final tudo isto se comparo a grandeza de Deus com a minha baixeza? Que tão grande serviço pode prestar o nada ao Ser por excelência? Nada sou, e de mim mesmo nada posso; o que possuo, de Deus o tenho. Com que direito pois pretendo eu arrebatar-lhe o que lhe pertence? Pedindo-me todo o meu coração, não me pede mais que o que é seu; que grande mérito da minha parte se lh’o dou! Demais, tudo o que eu posso fazer por amor de Deus é tão miserável, tão imperfeito, que seria urra vergonha cortar-lhe ainda alguma parte, por mínima que fosse, sobre tudo se penso em tudo o que ele mesmo fez e ainda agora faz por mim. O quê! Jesus ama-me quanto possível lhe é amar-me, e eu não amarei da rainha parte, de todas as minhas forças, o Grande Deus! Afastai de mim tal ingratidão! Ah! Se eu muito não posso dar-vos em reconhecimento de todos os vossos benefícios, fazei que vos dê ao menos, sem reserva, o pouco que possuo.
Senhor Jesus, que tão perfeitamente conheceis tudo o que há de mais oculto na terra e no Céu, vós bem sabeis que me sois infinitamente mais caro, infinitamente mais amável que o Céu, que a terra, e que tudo o que eles encerram. Sabeis que quero ser vosso, que me dei todo a vós e que nada para mim reservei. Meu coração não é já meu; fiz-vos sacrifício dele, a vós pertence; tornai-o digno de vós. Curai todas as suas misérias, e não permitais que nelas torne a cair. Ó Jesus! Fazei-me a graça de renovar o meu sacrifício todos os dias da minha vida, e de poder dizer por toda a eternidade: “Sou de Jesus! A Jesus pertenço! Sou escravo do seu amor“. Sim, tomo por testemunha o Céu, a terra e os infernos, sou de Jesus, e mediante a sua graça, que eu espero e que me não há de faltar, serei sempre de Jesus, sempre servo de Jesus, sempre amigo de Jesus, sempre filho de Jesus! Assim seja.
RESOLUÇÕES PRÁTICAS
Da perfeita emenda de nós mesmos
Hoje, meu caro Teótimo, entra seriamente em ti mesmo, e consulta a tua consciência a ver se ela te diz que verdadeiramente és todo de Deus. Examina o que fazes para agradar-lhe e como o fazes. Passa uma revista a todas as tuas ações, e vê se tens motivos para crer que Jesus está contente com elas. As tuas orações, com que respeito, com que atenção as fazes? És bem fiel em fazer a tua oração mental todos os dias? tuas intenções são sempre retas, puras e santas? És de uma grande exatidão para os deveres do teu estado? E a respeito da humildade e obediência que deves ao superior ou diretor como vais? Que guerra fazes ás tuas paixões, sobretudo à tua paixão dominante? Perseveras na prática do exame de consciência? Tens grande cuidado de fugir do mundo e seus prazeres? Não és negligente na preparação para os sacramentos da Penitencia e Eucaristia? Não levas mesmo a infidelidade até abandonar a comunhão frequente, com receio de estares por ela obrigado a vigilância mais estreita sobre ti mesmo? Ó meu caro Teótimo! Eis aqui em que meditar, e talvez tenhas bem motivo de te humilhar. Que faria se eu falasse de tantas mentiras leves, escárnios, palavras ociosas, e sobretudo murmurações de que a cada instante talvez te estás tornando culpável? Ah! Toma hoje a generosa resolução de te emendares, começa por corrigir tal e tal defeito, por exemplo, o de sempre estares a criticar os mais, de murmurar, etc. Pede a Nosso Senhor te ajude, e roga-lhe instantemente a graça de ser enfim todo dele, custe o que custar.
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(Pinnard, Abade Dom. As Chamas do Amor de Jesus ou provas do ardente amor que Jesus nos tem testemunhado na obra da nossa redenção. Traduzido pelo Rev. Padre Silva, 1923, p. 284-289)