Capítulo V
In hoc apparuit caritas Dei in nobis quoniam Filium suum unigenitum misit Deus in mundum, ut vivamos per eum – “Nisto é que se manifestou a caridade de Deus para conosco, em que Deus enviou a seu Filho unigênito ao mundo, para que nós vivamos por ele” (1 Jo 4, 9)
Mortos estavam pelo pecado todos os homens, e neste estado de morte permaneceriam, se não houvera o Pai Eterno enviado a seu Filho único, que pelo derramamento de seu sangue os chamasse à vida.
Ó prodígio! Um Deus morrer pelo homem! Um Deus!!! E que é o homem?
O seráfico São Boaventura, ao meditar neste mistério de amor bradava:
“Ó bom Jesus! Que fizeste? Para que me amastes tanto? Para que, Senhor, para que, Jesus meu? Que achastes vós em mim que tanto amor vos inspirou? Porque quisestes morrer por mim? Quem sou eu para comprardes a minha alma por preço tão elevado?”
Mas é precisamente nisto que com mais resplendor brilha o infinito amor de Deus para conosco. Nossa baixeza, nossas misérias não esfriam sua caridade; são antes incentivos para mais a incendiar. Quanto mais dele nossos crimes nos alongaram quanto de seu amor mais indignos nos tornaram, tanto foi maior o ardor com que nos procurou e acumulou as finezas da sua ternura; e tão longe o impeliu essa ternura, que pregou numa cruz ao seu inocente Filho, por arrancar-nos ao inferno e gerar-nos em seu amor. Ó prodígio incompreensível do amor de Deus para conosco!… E ser-lhe-emos ainda ingratos? E recusaremos ainda amar a um Deus que com tal veemência nos ama?
O amor que Deus nos testemunhou é um verdadeiro mistério, diz São Fulgêncio. Esse Deus de bondade nós o desprezamos e ultrajamos; em sua aversão incorremos apartando-nos dele; e ele nunca deixou de amar-nos; amou-nos a ponto de enviar à terra o seu Filho a fazer-nos nosso amigo, nosso irmão, nosso Salvador; amou-nos quando doentes para nos curar; amou-nos quando maus e perversos para fazer-nos bons; amou-nos quando mortos para nos chamar à vida. Lá do alto do seu trono contemplava a nossa miséria, via quão transviados corríamos pelas veredas do crime, e compadeceu-se e deu-nos o seu Filho para que nos levasse pelo caminho do céu. Este filho adorado baixou à terra, e durante trinta e três anos que entre nós morou, trabalhou de todos os modos imagináveis para arrancar-nos ao demônio e às nossas paixões. Como se sem nós não poderia ser feliz acaba por morrer numa cruz para ganhar o domínio do nosso coração, e merecer o nosso amor. Que admirável bondade da parte de Deus, exclama São Bernardo, o haver assim procurado o homem! Mas também que sublime honra para o homem o assim ser procurado por Deus! Sim, com bem justa razão pode o homem gloriar-se de tal honra, não pelo que de si mesmo é, que não passa de um nada, mas pela grande estima em que o teve o seu Criador. Todas as riquezas, toda a mundana glória, à vista deste apreço com que o nosso Deus nos honrou, não passam de um miserável nada.
Depois de Jesus Cristo tanto me haver amado, tanto me haver estimado, apesar do meu nada; depois de haver-me elevado a uma tão alta nobreza e dignidade, chegando a fazer-se meu irmão, ir-me-ia ainda eu aviltar pelo apego às coisas do mundo, e o que mais é, pelo pecado? Não, não, isso nunca! E mediante a graça do céu, sem a qual nada sou, antes a morte mil vezes! O meu Deus amou-me; também eu da minha parte o amarei, o meu Deus prezou-me, também eu saberei reconhecer a minha dignidade fugindo ainda da mesma sombra do pecado; o meu Deus morreu por meu amor, também eu saberei, se preciso for, morrer por ele; potentíssimo será para sustentar a minha fraqueza. Senhor! Vós destes o vosso Filho Jesus, para que pudéssemos recobrar a vida que pelo pecado perdemos; tende piedade de mim e dai-me a graça de só viver, de ora avante para quem por mim deu o seu sangue e vida.
Ó meu extremoso Redentor! Ó suavíssimo meu Jesus! Ante essas chagas e essa cruz em que moribundo vos contemplo, consagro-vos a minha vida e toda a minha vontade. Ah! Para o futuro seja eu todo vosso, a vós só procure, por vós só suspire. Amo-vos, ó bondade infinita, amo-vos infinito amor. Concedei-me a graça de todos os dias vos dizer: “Meu Deus, eu vos amor! Amo-vos, meu Deus!” Esta graça de uma boa e santa morte, em nome dos vossos sofrimentos vo-la peço, peço-vo-la em nome de Maria, vossa e minha mãe. Assim seja.
RESOLUÇÕES PRÁTICAS
Felizes os que Choram!
Alma cristã, que isto lês, medita alguns instantes nestas palavras do nosso bom Mestre:
“Bem-aventurados os que choram porque eles serão consolados”
Oh! E que motivos não temos nós para chorar!
1) Deves chorar os teus pecados. Ai! Esses pecados tão numerosos, tão enormes, de que te carregaste, já os chorastes? E não obstante, foram eles a causa da morte de Jesus, e certeza não tens tu de que não te precipitarão no inferno? Sabes se já te foram perdoados? És digno de amor ou de ódio? São Paulo, o apóstolo das nações, ignorava-o e remia. São Bernardo, oráculo do seu século, ignorava-o e tremia, tu também o ignoras e não tremes! Treme, pois, e chora!…
2) Deves chorar os pecados dos outros. Pais e mães, deveis chorar os pecados de vossos filhos; talvez que por negligência vossa, por vossos maus exemplos, sejais a causa deles; pastores de almas, chorai também os pecados das vossas ovelhas; cristãos, choremos os pecados dos nossos irmãos porque ofendem o nosso Deus.
3) Deves chorar o teu longo exílio sobre a terra. Ah! Trazes em tão frágeis vasos a graça divina, que a cada instante corres risco de perdê-la. Quantos antes de ti a perderam e não a tornaram achar! Exposto sempre às tentações da carne, do mundo e do demônio, em grande perigo te achas de para sempre perderes o céu e caíres no inferno. Chora, pois, o teu exílio. Durante todo o percurso desta peregrinação, vive num grande recolhimento; excita-te à compunção, para o que nunca deixes de pensar nos pecados passados e misérias presentes; recita em português ou em latim o salmo Miserere, procura compenetrar-te bem dos sentimentos de penitência que encerra. Chora, alma cristão, chora. Jesus deu-te o exemplo chorando pelos teus pecados; chora, que breve saberás quão doces são as lágrimas da penitência.
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(Pinnard, Abade Dom. As Chamas do Amor de Jesus ou provas do ardente amor que Jesus nos tem testemunhado na obra da nossa redenção. Traduzido pelo Rev. Padre Silva, 1923, p. 37-41)