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Caída e recaída

Caída e recaída, Tesouros de Cornélio à Lápide

Desgraça da queda no pecado

Podemos nos equivocar facilmente, dada a nossa debilidade humana, porém é uma coisa diabólica perseverar no erro: Humanum est errare, diabolicum perseverare (Episto.).

Ordinariamente, uma vida fervorosa, depois de uma queda, é mais agradável a Deus que a inocência vivida com a tibieza e a torpe segurança, diz São Gregório: Pelrunque gratior est Deo amore ardens post culpam vita, quam securitate torpens innocentia (Pastor.). Porém, do mesmo modo que a tibieza, a queda é deplorável.

Como foi, diz Isaías, que a cidade fiel se converteu em uma rameira? A justiça habitava em seu recinto; agora, não é mais que um albergue de homicidas: Quomodo facta est meretrix civitas fidelis? Justitia habitavit in ea, nunc autem homicidae (Is 1, 21).

Tua prata se converteu em escória: Argentum tuum versum est in scoriam (Is 1, 22).

Porque o ouro perdeu seu brilho?, pergunta Jeremias acerca de Jerusalém. Seu resplendor desapareceu, e as pedras do Santuário foram esparramadas nas entradas de todas as praças: Quomodo obscuratum est aurum? Mutatus est color optimus; dispersi sunt lapides Santuarii in capite omnium platearum (Lm 4, 1).

Os filhos de Sião eram formosos e estavam cobertos de ouro puríssimo: como, então, foram tratados à maneira de vasos de barro? Filii Sion inclyti et amici auro primo: quomodo reputati sunt in vasa testea? (Lament. IV, 2).

Causas das quedas

Aquele que despreza as coisas pequenas cairá, pouco a pouco, em faltas graves, diz o Eclesiástico: Qui spernit modica, paulatinum decidet (Eclo 19, 1). Aquele que não queira chorar seus pecados e evitar cometer outros novos perderá a justiça, diz São Gregório; não, contudo, de repente, senão, pouco a pouco: Qui peccata flere, ac devitare negligit, a statu justitiae, non quidem repente, sed partibus, totus cadit (Pastor.).

Tende em conta, diz Santo Agostinho, que ali onde vistes alguém cair, há um precipício: Nimirum praeceps est, ubi alium conspexeris cecidisse (Senent.).

Feliz aquele que se tornou prudente com as quedas dos outros e teme despencar-se. Aquele que não vigia e confia em suas próprias forças cairá também prontamente.

É preciso levantar-se rapidamente das quedas

Não se levantará aquele que cai? diz Jeremias: Numquid qui cadi, non resurget? (Jr 8, 4). Acaso aquele que cai não cuida de se levantar logo? Não faz todos os esforços possíveis para consegui-lo? Não emprega todos os meios que estão em suas mãos? Da mesma maneira, aqueles que caíram, marchando pelo caminho da salvação, devem cuidar de levantar-se prontamente. Que grande não seria a loucura do pecador que quer permanecer no pecado! Quando era necessário manter-se de pé, diz São Cipriano, caíram; e quando era necessário levantar-se, não o querem (Serm.).

Causa das recaídas

O pecado que não é reparado com uma penitência pronta levará, com sua influência, a uma nova falta, diz São Gregório: Peccatum quod penitentia non deletur, mox suspendere adaliud trahit (Lib. XXV, Moral., c. XII).

De um abismo, cai-se em outro abismo, diz o Real Profeta: Abyssus abyssum invocat (Sl 41).

  • O pensamento sucede o olhar;
  • depois do pensamento, vem o deleite;
  • depois do deleite, o consentimento;
  • depois do consentimento, a ação;
  • depois da ação, o costume;
  • e prontamente o costume se transforma em necessidade;
  • e a necessidade leva ao desespero, seguido da impenitência final e da condenação: justo castigo da impenitência.

O vício engendra o vício, diz Santo Isidoro: Davi passou do adultério ao homicídio (Lib. de sum. Bono, CXXIII). Com a recaída, acrescenta-se um pecado a outro, um crime a outro; multiplicam-se os elos da cadeia, que cobre, oprime e afoga por toda a eternidade.

Estado horrível no qual a recaída nos submerge

Quando o espírito imundo, diz Jesus Cristo, sai de um homem, anda errante por lugares desertos, buscando repouso; e, como não o encontra, diz: Voltarei à casa de onde saí. E, voltando, encontra-a vazia, limpa e adornada. Então, vai e toma em sua companhia a outros sete espíritos com ele, e habitam ali; e o último estado daquele homem é muito pior que o primeiro: Et fiunt novíssima hominis iUius pejoraprioribus (Mt 12, 43-45).

É preciso meditar com temor essa passagem da Escritura; melhor do que explicá-la, diz o Venerável Beda: Timendus est iste versiculus, non exponendus (In Evang.).

Quando nosso Senhor curou ao paralítico, disse-lhe: Já estás curado. Não voltes mais a pecar, a fim de que não te suceda algo pior: Ecce sanus factus es; jam nolipeccate, ne deterius tibi aliquid contingat (Jo 5, 14).

Ser-lhes-ia melhor a valia, diz o apóstolo São Pedro, de nunca haver conhecido o caminho da justiça, que voltar atrás depois de o haver conhecido, e abandonar a Lei Santa que se lhes havia sido dada: Melius enim erat illis non cognoscere viam iustitiae, quam post agnitionem retrorsum converti ab eo, quod illis traditum est, sancto mandato (2 Pd 2, 21).

Ó desdita tremenda é o olhar para trás! exclama Santo Agostinho: Ó malum retrospicere (In medit.).

Jesus Cristo diz também: Aquele que põe sua mão no arado e olha para trás não é apto para o Reino de Deus: Nemo mittens manum suam ad aratrum, et respicere retro, aptus non est regno Dei (Lc 9, 62).

Os maus e impostores, diz São Paulo a Timóteo, fortificaram-se mais e mais no mal e no erro, extraviando aos outros: Mali homines et seductores proficiente in pejus; errantes, er in errorem mittentes (2 Tm 3, 13).

É impossível, diz aquele grande apóstolo aos Hebreus, que aqueles que já uma vez tenham sido iluminados, e tenham degustado os bens do Céu, tenham recebido o Espírito Santo, tenham se alimentado da Palavra santa de Deus e das maravilhas do século futuro, e tenham caído, sejam renovados por meio da penitência; porque, com tudo o que praticam, crucificam de novo ao Filho de Deus e expõe-Lhe à ignomínia. Pois uma terra recebe a benção de Deus quando, sendo regada, produz as plantas necessárias aos que a cultivam; porém, quando não produzem mais que mazelas e sarças, é abandonada, é amaldiçoada e, ao fim, é queimada (Hb 6, 4-8).

É impossível, isto é, muito difícil; porque, acrescenta aquele grande apóstolo, se pecarmos voluntariamente depois de haver recebido o conhecimento da verdade, já não nos restará hóstia que oferecer pelos pecados, senão apenas uma horrenda expectativa do Juízo e do Fogo abrasador que há de devorar aos inimigos de Deus (Hb 10, 26-27).

Na verdade, trata-se aqui principalmente do pecado de apostasia. O vento não leva o trigo, a tempestade não derruba uma árvore solidamente enraizada; somente a palha é arrebatada e somente as árvores sem raízes são arrancadas. Aqueles que voltam a cair tantas vezes no pecado, parecem-se à palha leve ou a uma árvore cujas raízes estão corrompidas.

Com a recaída, diz São Bernardo, perde-se a vergonha, tornamo-nos temerários, corrompidos, plenos de ignomínia e de confusão. Cai-se da terra firme no barro, do trono, a uma cloaca, do céu, ao inferno (Serm. in Psalm.).

Aquele, acrescenta o mesmo Santo, que depois de haver obtido o perdão de seus pecados cai de novo, converte-se tantas vezes em filhos do inferno, quantas vezes volta a cair. Temei pela graça recebida; temei, todavia mais, pela graça perdida; porém, temei, sobretudo, pela graça recobrada: Temeas quidem por accepta gratia: ampliuspro amissa; longepluspro recuperata (Sermo. III de Assump.).

Não pequeis depois de haver obtido vosso perdão, diz São João Crisóstomo, nem vos deixeis ferir depois de terem sido curados. Não vos mancheis depois de haver recebido a graça. Pensai que a falta é mais grave depois de haver sido perdoados; que a renovação de uma ferida é muito mais dolorosa depois da cura; que a mancha é mais horrível quando se cai do estado de graça. Aquele que peca, depois de haver obtido o perdão, é indigno de indulgência; aquele que se fere a si mesmo depois haver sido curado, não merece que lhe curem de novo. Aquele que se funde com o lodo depois de haver sido purificado pela graça, não merece sê-lo outra vez. Pecar é uma falta grave, e voltar a cair no pecado depois da absolvição, é ainda mais grave.

O servo que ultraja a seu patrão depois de haver recebido a liberdade é até mesmo indigno de levar o nome de servo (Serm. inprim. hom. lapsu.).

De que serve o haver-se lavado àquele que, depois de haver-se purificado por haver tocado um morto, toca-o de novo?, diz o Eclesiástico. Assim o homem que jejua depois de seus pecados e os comete de novo, de que lhe serve sua mortificação? Quem ouvirá sua oração (Eclo 34, 30-31)[1].

Aprendei com isto que a recaída no pecado é mais grave e mais perigosa que o mesmo pecado, seja por causa da ofensa, que faz com sua ingratidão, e do acréscimo sobre a primeira falta. Aquele que recai, ele o faz com mais força e mais profundamente; porque Deus detesta ao incorrigível, abandona-o e o despreza; ainda mais, castiga-o com especial rigor. Eis aqui por que Jesus Cristo recomenda ao paralítico curado que não volte a pecar, por medo de que seu estado não piore. Eis aqui por que, ao absolver a mulher adúltera, Jesus Cristo adverte-a e lhe diz: Vai e não voltes a pecar: Vade, et jam amplius noli peccare (Jo 8, 11). Relativamente ao corpo, pergunta-se: não são sempre as recaídas mais terríveis e perigosas que a primeira enfermidade?

Se recaímos, diz Jeremias, morreremos em nossa confusão, e a vergonha cobrir-nos-á inteiramente, porque nós e nossos pais pecamos contra o Senhor, nosso Deus, desde nossa mocidade até o dia de hoje, e não temos escutado a sua voz (Jr 3, 25).

Ó insensatos Gálatas! exclama São Paulo: Quem vos fascinou, para não obedecerdes à verdade? É tão grande a vossa loucura que, havendo principiado pelo espírito, acabeis pela carne? O insensati Galatii, quis vo fascinavit non obedire veritati? Sic stulti estis, ut cum spiritu coeperitis, nunc carne consumemini? (Gl 3, 1-3).

O imprudente que volta a começar as suas loucuras é como o cachorro que volta a seu vômito, dizem os Provérbios: Sicut canis qui revertitur ad vomitum suum, sic imprudens qui iterat stultitiam suam (Pr 36, 11).

Quase todos aqueles que tem a desgraça de viver na recaída e no costume do pecado[2], morrem neste triste estado. O pecado, diz Santo Agostinho, põe em um cárcere, a recaída cerra a porta, e o costume a empareda (Lib. de Confess.).

Achando-se enfermo o demônio, disse um poeta, quis se fazer frade; porém, assim que se achou curado, permaneceu como era antes:

Daemon languebat,
monachus tunc esse volebat;
Ast, ubi convaluit,
mansit ut ante fuit.

Não é este o espetáculo que oferecem os que caem em graves enfermidades, e cuja vida inteira está cheia de crimes? O mal assusta-lhes, não querem morrer como viveram, querem voltar sinceramente a Deus; porém, se Deus lhes devolve a saúde, cometem de novo as mesmas faltas.

Castigos impostos às recaídas

Obscureçam seus olhos, para que não vejam, diz o Salmista, e trazem-nos sempre pesados. Derramai sobre eles vossa ira, Deus meu; e alcance-lhes o furor de vossa cólera. Permiti-lhes que acrescentem iniquidades a iniquidades, e não acertem com vossa justiça: Adpone iniquitatem super iniquitatem eorum, ut non intrent in justitiam tuam (Sl 68, 28). Sejam apagados do livro dos viventes, e não ocupem seus nomes um lugar entre os justos: Deleantur de libro viventium, et cum justis non scribant (Sl 68, 33).

Se perseverardes em vossa malícia, perecereis, diz o Primeiro Livro dos Reis (1 Sm 12, 25).

Meios de evitar a recaída

Despojei-me de minha túnica, como poderei voltar a revesti-la? Lavei meus pés, como voltarei a manchá-los? Expoliavi me túnica mea: quomodo induar illa? Lavipedes meos: quomodo iniquinabo illos? (Ct 5, 3).

Haveis pecado, meu filho? Não volteis a cair, diz o Eclesiástico; orai antes ao contrário, a fim de obter o perdão de vossas quedas: Fili, peccasti? Non adjicias iterum, sed et de pristinis deprecare ut tibi dimittantur (Eclo 21, 1).


Referências:

[1] Tradução do texto referenciado, segundo a Bíblia de Jerusalém: “O que se purifica do contato com morto e de novo o toca, que proveito tira de sua ablução? Assim é o homem que jejua por seus pecados, depois vai- se e comete-os de novo; quem ouvirá a sua oração? Que proveito tirou em humilhar-se?

[2] Ou pecado habitual (Nota do tradutor).

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