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Volta a Éfeso. Epístola a Electa. Epístola a Caio. O jovem convertido

Capítulo 20: Volta a Éfeso. Epístola a Electa. Epístola a Caio. O jovem convertido

I

Foi no ano de 97 que o apóstolo pôde tornar a ver a Igreja de Éfeso, onde todos esperavam a felicidade e o benefício de sua volta.

Com efeito, esta cristandade acabava de passar por um grande desgosto. Segundo o Martirológio e o Menológio, foi nesse mesmo ano que morreu gloriosamente o bispo Timóteo, o discípulo de São Paulo e companheiro de São João. João, que deixara «este bom soldado de Cristo» no mais encarniçado combate contra a heresia e a idolatria, não ignorava o perigo que ele corria. De sua ilha solitária, via e denunciava, no Apocalipse, as abominações que eram o pior dos contágios para o rebanho, o da volúpia. Mas, elogiando as grandes obras, o trabalho e a paciência do anjo de Éfeso, João falava dos males que ele havia de suportar pelo nome de Jesus Cristo, e previa que contra ele fariam represálias mortais.

Não se enganava. Logo depois dos terremotos que a sacudiram até os alicerces, viu-se a louca Éfeso entreter-se, sobre os túmulos e as ruínas, com as pompas orgíacas de sua deusa e de seus deuses. A mais célebre dessas festas era uma assembleia anual, chamada Catagogia, espécie de bacanal, que lembrava os mais monstruosos excessos de Biblos e de Coríntia. Ali se via uma multidão, ébria de vinho e de deboche, armada de maças, levando as imagens de seus deuses, enlambuzada ou mascarada, percorrer os principais quarteirões da cidade, cantando versos obscenos, atacando impudentemente os homens e as mulheres, sem poupar violências, muitas vezes mortais, que o culto da divindade justificava.

Era de bom gosto, misturar a esses gritos delirantes, injúrias grosseiras ao Cristo e aos cristãos. Timóteo não pôde admitir semelhantes ultrajes, e, indignado, não lhe sendo possível mais conter-se, dizem as Atas de seu martírio, atirou-se corajosamente à frente daquele ímpio cortejo, protestando, em nome de Jesus Cristo, contra essas blasfêmias. Era entregar-se à morte. Sua presença enfureceu a assembleia feroz. Abateram-no à pedradas, e depois as massas acabaram de matá-lo. Não era preciso tanto para acabar com um homem de constituição débil e que desde a muito levava uma vida consumida (1).

«Meu filho, escrevera-lhe outrora São Paulo em sua carta de despedida, meu filho sê sempre forte na graça do Cristo. Trabalha como um bom soldado de Jesus Cristo. Eu também trabalho até sofrer os grilhões, como se fosse um malfeitor; mas não se encadeia a palavra de Deus. Eis a promessa fiel: Se morrermos juntos, juntos viveremos… Combati o bom combate, percorri o caminho, defendi a fé. Só me resta agora receber a coroa que me conferir a justiça de meu Juiz» (2Tm 4, 5-8)

Timóteo, por sua vez, obteve esta coroa. Respirava ainda quando seus discípulos o levaram à montanha próxima, onde expirou no meio das orações deles. Passava-se isto, portanto, no começo de 97, segundo ano do reinado de Nerva, aos 24 de Janeiro, dia em que a Igreja latina celebra a festa desse santo. Uma gruta do monte Libato, perto do qual morrera, recebeu o corpo do mártir. Pouco tempo depois ia São João ali descansar a seu lado.

Bastou sua chegada para consolar todas estas tristezas. Toda a Ásia cristã comoveu-se com sua volta. Uma vez livre, não tardou em recomeçar a carreira de apóstolo naquela região, feliz em reconhecer nele o confessor da fé que vinha pregar. A antiguidade conservou a lembrança das missões de São João no seio dessas cristandades, fundadas (2), instituídas e governadas por ele, em suas epístolas, ele próprio nos aparece visitando as Igrejas, uma após outra, combatendo os erros, corrigindo os costumes, fortalecendo as fraquezas, e mostrando por toda a parte aquela mansidão que é o caráter eminente de sua vida e de seu sacerdócio.

Tal era também o caráter das numerosas lendas relativas a essa época da vida de São João.

Segundo umas, apenas o grande apóstolo desembarca no porto de Éfeso, logo encontra um enterro. É o de Drusiana, uma cristã da cidade, falecida durante o exílio do homem de Deus, e sem ter tido a consolação de o tornar a ver. João faz parar o cortejo, ressuscita a defunta, que, com o povo, abençoa o nome do Senhor Jesus. Esta ressurreição, diversamente contada, é o assunto de uma história que se encontra em grande número de crônicas orientais.

Em outras lendas, vê-se São João tornar-se para seu povo o objeto de um culto reconhecido. Uns, contam, queriam tocar suas mãos, outros queriam levá-las a seus olhos ou ao peito. Muitos ficavam reconfortados com sua palavra, ou curados pelo simples contato de suas vestes (3).

Não nos demoraremos em contar as maravilhas atribuídas ao apóstolo. É possível que se firmem sobre um mesmo fundo de tradições de primeira ordem e verídicas. Mas a crítica não podia com segurança desembaraçá-las das excrescências parasitarias com que a imaginação dos Orientais sobrecarregou este assunto.

É a esta mesma época da vida de São João que se referem as suas duas últimas epístolas canônicas. Desde o segundo século, a Igreja as tinha reconhecido como sendo do santo apóstolo. No Oriente, Orígenes, Clemente e Dionísio de Alexandria; no Ocidente, o catálogo achado por Muratori, Santo Irineu de Lião, consideram São João seu autor. Também apresentam muitos traços de semelhança com o seu Evangelho, e somente esses bastariam para fazê-las reconhecer como filhas do mesmo pai.

A primeira de suas epístolas é dirigida a Electa. Com o nome de Electa, muitos intérpretes estimáveis querem ver o título coletivo de uma Igreja: uma sociedade de predestinados. Mas para que recorrer a um sentido alegórico, quando o sentido literal nada tem de mais plausível? Por que razão não teria João dirigido esta carta a uma cristã caridosa, como tudo dá a entender? Nada há de extraordinário neste nome de Electa, que tiveram, além disso, muitos personagens daquele tempo. Depois, não é mais razoável aceitar a opinião dos mais antigos Padres?

Um dos mais antigos por antiguidade e autoridade, Clemente de Alexandria, conta-nos que a carta era dirigida a uma cristã de Babilônia (4). Electa educa no exercício da fé e da caridade uma família digna de si e onde há moças, pois Clemente designa esta epístola sob o título de Epístola às virgens. Por mais bem defendida, porém, que seja a casa de Electa contra o contágio exterior, o mal, no entanto, pôde ali penetrar. É para precavê-la contra esses perigos iminentes que o apóstolo lhe escreve; e, numa epístola dirigida a uma família, todas as famílias podem achar a regra de seus deveres.

A carta é lacônica. Faz lembrar pela linguagem e pela doutrina, a primeira epístola de São João. O apóstolo ali se dá o nome de velho, ancião ou sacerdote, conforme a significação desses nomes em grego. Além disso, as frequentes repetições desta cartinha, fazem bem sentir aquela idade suprema da vida, que tudo reduz a unidade de uma ideia soberana que se deve sempre repetir. Para João a caridade é a última palavra de tudo.

Começa por votos e felicitações:

“O ancião a Electa e seus filhos, os quais em verdade amo. Comigo amam-na todos os que conhecerem a verdade… Que a graça, a misericórdia, a paz de Deus, o Pai, e de Jesus Cristo sejam convosco em verdade e caridade.

Regozijei-me por saber vossos filhos trilhando o caminho da verdade conforme o mandamento que recebemos de Deus”

Segue então a exortação ao amor necessário a Deus e ao próximo:

“E agora, Electa, rogo-te, não por um mandamento novo, mas pelo que foi prescrito desde o princípio: Amemo-nos uns aos outros.

Ora, ter consigo a caridade de Deus, é caminhar segundo os mandamentos de Deus. Eis o mandamento que devemos seguir, conforme o ouviste desde o princípio”

Depois da caridade, o grande bem que devemos guardar e defender é a verdade:

“Apareceram no mundo numerosos sedutores, que não confessam que Jesus Cristo tenha vindo na carne. Quem assim fala é sedutor e anticristo.

Velai sobre vós mesmos para que não percais o fruto de vosso trabalho, mas tenhais plena recompensa. Aquele que recua e não permanece na doutrina do Cristo, não possui Deus. Aquele que persevera na doutrina, esse possui o Pai e o Filho.

Se alguém for ter convosco e não trouxer esta doutrina, não o recebais em vossa casa, nem mesmo o saudeis. Porque saudá-lo é ter parte em suas más obras”

Tudo termina pela esperança de uma próxima visita :

“Tenho outras coisas a vos escrever, mas não quis pô-las no papel, porque espero ir ver-vos em breve, o vos falar de viva voz, para que vossa alegria seja completa.

Os filhos de vossa irmã Electa vos saúdam comigo” (5)

Verdade, caridade: possuí-las na terra, é já possuí-la no céu:

«Oh! verdade, ó caridade, canta um hino da Igreja, quando chegará o dia em que, depois dos eclipses desta terra, gozaremos enfim a vossa luz eterna!»

II

Já vimos aparecer nesta história o nome de Caio. Três personagens têm este nome nos monumentos sagrados dessa idade apostólica. Um é da Macedônia (At 19, 29); o outro é da cidade de Derbé (At 20, 4). Mas, parece que aquele de que vamos tratar, é Caio o Coríntio, que por duas vezes São João menciona em suas epístolas (6). Caio distinguia-se por uma caridade que o tornava abençoado nas novas Igrejas da Ásia Menor; sua hospitalidade regozijava o coração de todos os irmãos. Nesta terra não era coisa nova a hospitalidade, louvada por Heródoto e Homero. Mas o cristianismo, restabelecendo-a, a elevara à uma dignidade sobre-humana, fazendo ver no hóspede a própria imagem de Deus. Exercei a hospitalidade uns para com os outros, sem murmuração (1Pd 4, 9), dissera o príncipe dos apóstolos. «Que a fraternidade vos una no amor; não vos descuideis do dever da hospitalidade», repetia São Paulo aos Hebreus (Hb 12, 2). «Suportai o vosso quinhão da pobreza dos santos, praticai a hospitalidade» (Rm 12, 13) dizia ele aos Romanos. Enfim, Tiago o Menor, dirigindo à Ásia a sua epístola católica, onde transpira a alma ardente do amigo de São João:

«Meus irmãos, não façais distinção de ninguém. Se, em vossa casa, se apresentar um homem com um anel de ouro no dedo e uma boa roupa, enquanto entra o pobre vestido miseravelmente, tomai cuidado em não atenderdes ao que está ricamente vestido, dizendo-lhe: Vinde sentar-vos aqui; ao passo que ao pobre dizeis: Sentai-vos abaixo do estrado de meus pés. Oh! Meus queridos irmãos, não foram os pobres deste mundo que Deus escolheu para fazê-los ricos na fé, e herdeiros do reino que prometeu a seus amigos?» (Tg 2, 2)

A caridade de Caio exercia-se de preferência com os missionários que iam espalhar ao longe a verdade cristã.

«A maior parte, diz Eusébio, dos discípulos apostólicos nos quais brilhava o amor da sabedoria, tendo distribuído seus bens aos pobres, iam aos países longínquos pregar o Evangelho de Jesus. Ali fundavam Igrejas, instalavam pastores, e o povo, escutando suas palavras abraçava o culto do verdadeiro Deus» (7)

Tendo recebido gratuitamente, esses pobres de Jesus Cristo queriam dar gratuitamente. Por isso a caridade proporcionava aos pregadores, de distância em distância, estações hospitaleiras onde achavam abrigo, assistência, salvo-conduto, em nada querendo ser pesados aos pagãos, de quem a Igreja só queria possuir as almas.

São João soube que assim era a casa de Caio, o Coríntio. A terceira de suas epístolas foi escrita com o fim de felicitá-lo. Ali tomava ele o nome de velho ou sacerdote como na precedente; e eis o que dizia:

“O Ancião a seu querido Caio, que ama na verdade.

Meu querido, peço a Deus que teus negócios, tua saúde, tudo em ti esteja tão próspero como tua alma.

Muito me alegrei com a vinda de meus irmãos e com a notícia que me deram de que estás na verdade; pois segues a trilha da verdade.

Maior satisfação não tenho que a de saber que meus filhos andam no caminho da verdade.

Caríssimo, é uma boa obra que praticais para com os irmãos, mormente com os peregrinos, os quais testemunharam a tua caridade perante a Igreja.

E farás bem assistindo-lhes nas viagens de modo digno para com Deus.

Porque foi por amor de seu nome que se retiraram, nada querendo receber dos gentios.

Por isso devemos acolhê-los, para sermos cooperadores da verdade” (8)

Mas o inimigo esforçava-se por semear a cizânia naquelas cristandades recentes. O fim da epístola de João denunciava com tristeza um foco de discórdia na Igreja onde Caio praticava suas virtudes. Um tal Diótrefes ali lançara a desordem por ambição. Este «filho de Júpiter», como significa seu nome, rebelde à autoridade do venerável apóstolo, não o poupava em seus discursos. Recusava-se ao dever da hospitalidade, agindo mesmo contra os que recebiam os irmãos e ousando até excluí-los da assembleia santa. Primeiro e triste exemplo do farisaísmo egoísta e duro, preocupado com a prepotência, referindo tudo a si, e parecendo ignorar que se consagrar a Deus equivale a se dedicar aos homens.

Ora, quais eram estes cismas, e poder-se-á achar o seu rasto na história?

É em Corinto que Beda e os intérpretes mais autorizados indicam a residência de Caio e o foco da dissidência, denunciada por São João. Ora, era nessa mesma cidade e nessa mesma data de 97 que o santo pontífice Clemente escrevia sua epístola, destinada a fazer cessar um cisma dessa Igreja. Na carta de Clemente e na do apóstolo há a mesma queixa sobre esses distúrbios; mesma censura pelas ambições que se disputavam a supremacia, o mesmo quadro das violências exercidas sobre os irmãos.

«Soprou a revolta, diz o pontífice romano, e dali saíram as invejas, as discórdias, o tumulto, as lutas, o avassalamento. Os pequenos se insurgiram contra os grandes; os de baixa esfera levantaram-se contra os homens de dignidade; os ignorantes contra os sábios; os moços contra os velhos. A dignidade episcopal foi disputada. Os apóstolos o haviam predito; mas saibamos respeitar os que eles próprios escolheram. Por que dilacerarmos os membros do Senhor?» (9)

Não sei se esta concordância de tempo, lugar e circunstância será razão suficiente para concluir que as cartas que apresentamos têm o mesmo fim e se referem aos mesmos fatos. Eis, além disso, em que termos se exprime aqui São João:

“Teria escrito à Igreja, mas Diótrefes, que gosta de ocupar o primeiro lugar não nos quer receber.

Por isso, quando voltar para junto de vós mostrar-lhes-ei o mal que está fazendo, espalhando más palavras contra nós.

Não contente com isto, não recebe os irmãos; impede mesmo aqueles que os quisessem receber e os expulsa da Igreja.

Caríssimo! Não imites o mal, e sim o bem. Aquele que faz o bem é de Deus; mas aquele que faz o mal não conhece Deus” (10)

O apóstolo termina por um elogio a Demétrio, outro cristão fiel e hospitaleiro. Depois, como à Electa, ele promete vir:

“Tenho muita coisa a dizer que não quis pôr no papel. Espero ver-te dentro de pouco tempo e conversar.

A paz seja contigo. Os amigos te saúdam. Saúda aos amigos cada um por seu nome” (11)

III

Esta visita das Igrejas, anunciada pelo apóstolo em suas duas epístolas, era muitas vezes marcada para episódios comovedores, muito próprios para nos revelar os costumes diversos daquela época, e a influência quase irresistível de São João.

O mais célebre é o que conta Clemente de Alexandria, e que Eusébio conservou. A antiguidade cristã poucas páginas nos legou de eloquência mais simples e de mais patética beleza (12).

«Depois da morte do tirano, tendo João voltado da ilha de Patmos à cidade de Éfeso, pediram-lhe que fosse às cidades vizinhas. Ia fundar Igrejas, instalar os bispos e admitir nas funções do serviço de Deus os homens que lhe designava o Espírito Santo por um sinal.

«Ora, estava ele um dia numa cidade da vizinhança, cujo nome é citado por alguns autores; tendo consolado os irmãos com seus discursos, o apóstolo notou, no meio do povo, um moço de belo porte, rosto nobre, e com uma alma ainda mais bela do que o corpo.

«João chamou o mancebo para junto de si e apresentando-o ao bispo: Vo-lo confio, disse ele, perante a Igreja e perante Jesus Cristo. Jesus Cristo será minha testemunha do depósito sagrado que vos entrego; pois é o tesouro do meu coração.

«O bispo comprometeu-se a zelar por ele. O velho repetiu-lhe ainda o seu pedido. Depois, voltou a Éfeso.

«O bispo recebeu o moço em sua própria casa. Educou-o, amou-o, guardou-o como no próprio seio. Por fim conferiu-lhe a luz celeste do batismo.

«Mas depois de tê-lo marcado com o selo do Senhor, o bispo começou a afrouxar a vigilância inicial. O rapaz, viu-se assim, muito cedo, emancipado, e não tardou em se encontrar rodeado de outros da mesma idade, ociosos, atrevidos e de maus costumes (13).

«Arrastaram-no primeiro a partilhar de seus banquetes, tratando-o suntuosamente. Depois, não tardaram em levá-lo à noite, quando iam furtar o bem alheio. Fizeram-no, enfim, cair nos últimos degraus do crime.

«Semelhante a um cavalo fogoso, cujo ardor arrasta ao precipício; o desvairado jovem foi levado aos últimos excessos. Não pensou mais na salvação de Deus, não conheceu meias medidas; e quis sobressair entre todos os companheiros; pois supunha tudo perdido para ele.

«Eis porque, organizando com estes malvados, uma quadrilha de ladrões, fez-se seu chefe, e tornou-se o mais violento, o mais cruel, o mais perverso do bando.

«Passou-se algum tempo, e João foi de novo chamado a esta mesma cidade.

«Terminando tudo o que tinha a fazer, dirigiu-se ao bispo e disse-lhe:

“Bispo, entrega-me agora o depósito que Jesus Cristo e eu te confiamos, na presença da Igreja de que és o Pastor”

«O bispo admirou-se primeiro, pensando que se tratava de algum depósito em dinheiro. Mas dizendo-lhe João: “O que reclamo é a alma do nosso jovem irmão”, o sacerdote abaixou os olhos, chorou, e disse em resposta:

—”Morreu!” (14)

— “Como, e de que morte?”

—”Morreu para Deus; porque agora não é mais do que um malvado, um perdido, enfim, para dizer tudo, um ladrão! Deixou a Igreja, vive na montanha, da qual se apoderou com um bando armado de gente igual a ele”

«João ouvindo isto, rasgou as vestes, bateu com a cabeça de dor, e soluçando.

“A que guardião, disse ele, confiei meu irmão!… Mas que me tragam um cavalo, que me deem um guia!”

Depois, deixando a reunião, partiu imediatamente.

«Chegou ao lugar que haviam designado. Os guardas avançados apoderaram-se dele. Deixou os fazer, e, sem pedir misericórdia, disse-lhes com firmeza:

“Conduzi-me a vosso chefe, é para ele que eu venho”

«O chefe estava armado, pensando que lhe traziam uma preza. Mas tendo de longe visto João, que se dirigia a ele, e reconhecendo-o, tomado de vergonha, fugiu a toda pressa.

«João aperta o cavalo, persegue-o, esquecendo a sua idade, e gritando com voz forte:

“Por que me foges, meu filho, por que foges de teu pai? Um homem desarmado, um velho? Tem de piedade de mim, meu filho, não temas. Ainda há uma esperança de vida. Farei de mim tua caução junto de Jesus Cristo. Se preciso for, darei minha vida por ti, assim como o Senhor deu sua vida por nós. Darei minha alma para resgatar a tua. Para, meu filho, crê em mim; é o Cristo que me envia”

«Tendo ouvido isto, parou o rapaz; tinha os olhos fixos no chão. Depois, jogou as armas, pôs-se a tremer e a chorar amargamente.

«João chegou-se a ele; o rapaz, porém, abraçando-lhe as pernas só sabia falar-lhe com gemidos. Estava banhado em lágrimas como num segundo batismo: mas conservava ainda a mão direita escondida sob as vestes.

«O apóstolo de novo o anima, o tranquiliza, jura-lhe que obterá o seu perdão do Senhor; por sua vez suplica-lhe, põe-se de joelhos. Depois, tomando aquela mão, agora purificada, beija-a com ternura.

«O jovem foi de novo conduzido à reunião dos santos. João orou com ele. Jejuou com ele, fazendo juntos penitência. Curou-lhe a alma pela virtude de sua palavra, como se fora por encantamento supremo; e não o deixou enquanto não o viu ressuscitado e entregue de novo a Igreja»

Passagens semelhantes não tem análogo na antiguidade profana. Fora visto nesta mesma lonia, velhos de cabelos brancos chorando seus jovens filhos caídos nos combates. Tinha-se visto um velho, um poeta, ir também de cidade em cidade, cantando a virtude dos homens e o poder dos deuses. Mas este poder era uma força brutal, esta virtude não era o valor guerreiro. Não se entrara no império das almas; não se suspeitava estes arautos inspirados, só cantando a paz, só anunciando o perdão. A mitologia insípida nada podia compreender destas sublimidades da teologia, que um pescador lhe revelava pela primeira vez. Somente o novo mundo para o qual se caminhava, fazia-se sentir por esses novos sopros da palavra santa, por esses perfumes da virtude que lhe enviava a margem ainda velada do futuro. A mocidade corria em primeiro lugar para lutas diversamente heroicas das batalhas antigas. Os antigos ali levantavam seus filhos caídos, para levai os de novo ao combate. Abria-se um novo campo sobre as alturas morais onde a fé do Evangelho acabava de colocar o mundo, e João ficava ainda para mostrar o caminho desta grande conquista.


Referências:

(1) Polycrat. Vita S. Tim.; edit. P. Pithou.
Baron. Annal. Eccl. t. I, p. 395.
Le Quien. Oriens Christianus, p. 669 et 672.
Belland. Acta Sanctor., XXIV Januarii.

(2) Sancti Patres tradunt quod, post reversionem suam de exsilio, in Epheso et circà adjacentia loca praedicaverit, ibique mortuus sit et corpore quisescat (S. Ambros. in Apocal. Expos. Cap. X; Appendix ad opera)

(3) Apud Ephesum in tanta gratia hominum apostolus existitit, ut alius manus ejus gauderet contingere, alius applicare eas oculis suis, et pectori admovere, si itá usus exposceret. Plerique, etiam tactu vestis exhilarati, quia fetigerant amictum ejus sanabantur (Abdias, apud L. de la Barre, Hist. Vet. Pat., p. 23)

(4) Scripta est vero ad quamdam Babyloniam (Clem. Alex, Adumbr. ad II Joan., Op. II, p. 1011.

(5) Senior Electae dominae et natis ejus, quos ego diligo in veritate, et non ego solus, sed et omnes qui cognoverunt veritatem…

Sit vobiscum gratia, misericordia, paz a Deo Patre, et a Christo Jesu Filio Patris, in veritate et in charitate.

Gavisus sum valdé quoniam invent de filiis tuis ambulantes in veritate, sicut mandatum accepimus a Patre.

Et nune rogo te, domina, non tanquam mandatum novum scribens tibi, sed quod habuimus ab intio, ut diligamus alterutrum etc. (2 Jo 1-5)

(6) Primeiro o colocamos ao lado de São João em Éfeso, segundo a sinopse de Santo Atanásio. A opinião que o põe em Coríntia tem por si melhores autoridades e grande verossimilhança

(7) Euseb. Hist. Eccl.

(8) Senior Caio charissimo, quem ego dilligo in veritate.

Carissime, de omnibus orationem facio prospere te ingredi, et valere, sicut prospere agit anima tua.

Gavisus sum vadè venientibus fratribus et testimonium prehibentibus veritati tuae, sicut tu in veritate ambulas…

Charissime, fedeliter agis quidquid operaris in fratres, et hoc in peregrinos.

Qui testemonium reddiderunt charitati tuae in conspectu ecclesiae. Quos benefaciens deduces diguè Deo.

Pro nomine euim ejus profecti sunt, nihil accipientes à gentibus.

Nos ergo debemos suscipere hujusmodi, ut cooperatores simus veritatis (3 Jo 1-8)

(9) Epist. S. Clement, apud Cotellier. Patres apostol. t. I.

Um texto mais completo das duas epístolas de São Clemente acaba de ser publicado por Philotho Bryenne, metropolitano de Serres, na Macedônia, segundo um manuscrito da biblioteca do Santo Sepulcro, do Fanar, em Jerusalém. Constantinopla, 1875.

(10) Scripsissem forsitan Ecclesiae. Sed is qui amat primatum gerere in eis, Diotrephes, non recipit nos.

Propter hoc, si venero, commonebo ejus opera, quas tacit, verbis malignis garriens in nos, et quasi non ei ista sufficiant, neque ipse suscipit fratres, et eos qui suscipiunt prohibet, et de ecclesia ejicit.

Charissime, noli imitari malum, sed quod bonum est. Qui benefacit, ex Deo est; qui malefacit, non vidit Deum (3 Jo 9-11)

(11) Multa habiu tibui scribere; sed noluit per atramentum et catamum scribere tibi.

Spero autem protinus te videre, et os ad os loqui. Pax tibi. Salutant te amici. Saluta a amicos nominatim

(12) Clem, Alex., apud Euseb. Hist. Eccl. lib. III, cap. XXIII, p. 92

(13) Illum vero, praematura potitum libertate, aequales quidam sibi adjungunt desides ae dissoluti et flagitiis omnibus assusfacti… At ille sensim assuescebat pravitati…

(14) Juvenem, inquit et animam fratris reposco. Tune senex, demisso vultu suspirans atque illacrymans: Is, ait, mortuos est…

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(BAUNARD, Monsenhor L’abbé Loui. O Apóstolo São João. Rio de Janeiro, 1974, p. 354-370)