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Aflições

Aflições, Tesouros de Cornélio à Lápide

Excelências e vantagens das aflições

É muito melhor o sofrer por Jesus Cristo do que o ressuscitar mortos, diz São João Crisóstomo. Por meio deste, nós contraímos uma dívida com Deus. Por meio daquele, Jesus Cristo se converte em nosso devedor. Ó Maravilha! Jesus Cristo nos faz um obséquio, e por este obséquio ficará agradecido: Pati pro Christo, magis est quam suscitare mortos: hic enim debitor sum (Deo); illic autem debitorem habeo Christum. Ó rem admirandam! Et donat mihi, et super hoc, ipse debet mihi (Homil. IV in Epist. ad Philipp.).

Santo Egídio, discípulo de São Francisco, dizia:

“Ainda que o Senhor fizesse cair pedras e rochas do céu, nenhum dano nos fariam se soubéssemos sofrer as aflições” (Ribaden, in ejus vita).

Olhai a José, diz São João Crisóstomo, de cativo, chegou logo a ser Chefe de todo o Egito; esta é vantagem das aflições sofridas valorosamente; inquebrantável foi sua paciência, as provas não o abateram e Deus, depois de o haver experimentado, acho-lhe digno e lhe abençoou (Homil. ad pop.).

Os aflitos são os fortes da terra, diz São Jonatas: Afflicti terrae fortes terrae (Surius, in ejus vita).

Os padecimentos são asas com as quais voo até o céu, disse São Cipriano: Penae suntpennae queis astra vehor (Epist. ad martyres).

Jesus Cristo, diz São Martinho, só se manifesta na Cruz às pessoas piedosas (Surius, in ejus vita).

Senhor, diz São Bernardo, mais vantajoso é para mim abraçar-vos e possuir- vos em minhas aflições, que estar sem Vós, ainda que eu habitasse no Céu (Serm. XVII).

A virtude se aperfeiçoa na desgraça, diz São Paulo aos Coríntios. Glorificar- me-ei, pois, em minhas aflições a fim de que a virtude de Jesus Cristo habite em mim: Virtus in infirmitate perficitur: libenter igitur gloriabor in infirmitatibus meis, ut inhabitet in me virtus Christi (2 Cor 12, 9). Por este motivo, comprazo-me em minhas debilidades, nos ultrajes, nas necessidades, nas perseguições e angústias sofridas por Jesus Cristo: quando sou desgraçado, então, encontro-me forte: Propter quod placeo mii in infirmitatibus meis, in contumeliis, in necessitatibus, in percutionibus, in angustiis pro Christo; cum enim infirmor, tunc potens sum (2 Cor 12, 10).

Já vês, diz São Bernardo, que as aflições da carne aumentam as forças do espírito e dão-lhe valor. A força da carne, ao contrário, debilita a do espírito. O que há, pois, de admirável em que os padecimentos do corpo fortifiquem a alma? Como haveremos de amar esta carne que não cessa de revoltar-se contra o espírito? Com sabedoria e muita razão, pede a Deus o Salmista para ver-se envolto em aflições: Confige timore tuo carnes meas (Sl 118, 120). Penetrai minha carne com vosso temor. O temor de Deus é uma fecha excelente (Serm. XIX, in Cant.).

Achamo-nos abatidos com Jesus Cristo, porém, com ele viveremos pelo poder do Senhor que resplandecerá entre nós, diz o grande Apóstolo: Nam et nos infirmi sumus in illo (Christo); sed vivemos cum eo ex virtute Dei in vobis (2 Cor 13, 4).

Aquele que se vê afligido por enfermidades, está perto de Deus, diz São Gregório Nazianzeno: Anima morbo affecta, Deo propínqua est (Orat. ad cives Naziancenos).

As aflições, diz São Bernardo, acalmam os brios da voluptuosidade; fazem nascer as virtudes e as fortificam; sujeitam a carne corrompida e dispõem a alma a que se eleve ao céu nas asas nas virtudes. As aflições e os sofrimento fazem perder à carne o supérfluo, e dão à alma as qualidades que lhe faltavam. Se, pois, as aflições, esses verdadeiros dons do Senhor, aumentam nossas virtudes, diminuem e afugentam os vícios, inspiram-nos desprezo aos bens da terra e amor às coisas celestiais, elas nos asseguram a vida eterna. Com essas considerações devemos nos animar: quanto mais penosa seja a luta, mais brilhante será nossa vitória. Damos uma prova de que desejamos agradar a Deus e de que lhe amamos, quando nos dirigimos a Ele, não somente na ventura, senão também em meio das desgraças e perseguições. Não nos é licito subir ao céu por caminho diferente do das cruzes; por isso devemos sofrê-las e amá-las (Serm. X in Caena Dom.).

Encontrei-me em meio à tribulação e às dores, e invoquei então o nome do Senhor, diz o Real Profeta: Tribulationem et dolorem inveni, et nomem Domini invocavi (Sl 114, 3-4). Senhor, provaste-me com aflições e conheceste-me (Sl 138, 1).

Não nos aflijamos pelos sofrimentos, porque eles destroem os desejos da carne, diz Santa Sinclética (Ribaden, in ejus vita).

Vivendo segundo o espírito e não segundo a carne, a força da alma far-nos-á vitoriosos das enfermidades do corpo, diz São Cipriano (Epist. ad Demetr.).

Deus é quem envia as aflições: Ele que a tudo ordenou com número, peso e medida, destinou desde a eternidade uma cruz e padecimentos aos que Lhe amam; Ele decidiu despojar-nos da natureza antiga e revestir-nos da nova por meio da paciência, da pureza, da graça e do amor nas tribulações; Ele resolveu conduzir-nos ao Céu por este caminho. Quem, pois, haverá de fugir dos padecimentos e olhá-los com horror, já que nos estão destinados como uma graça pela infinita bondade de Deus? As aflições fazem-nos semelhantes a Jesus Cristo na cruz, a fim de fazer-nos semelhantes a Jesus Cristo na glória.

Se para adquirir a glória humana, diz Tertuliano, alguns enfrentam os perigos do combate, o fogo, a cruz, o furor das feras e todos os tormentos, não devemos enfrentá-los, então, mais por Deus? Todos os sofrimentos nada significam, comparados com a glória celestial (Apol.).

As aflições são um benefício, uma imensa graça de Deus. As enfermidades, diz São Basílio, são o açoite que fere aos pecadores; elas lhes advertem que eles vão mudar de vida e os converte. Um santo sacerdote indicou, um dia, este remédio a um de seus discípulos que estava enfermo: Não vos aflijais, meu filho, por vossa enfermidade, dizia-lhe; é próprio da piedade perfeita dar graças a Deus pelas aflições que envia. Se vos pareceis ao ferro, o fogo dos sofrimentos vos retirará o mofo que vos languidesce; se vos pareceis ao ouro, purificar-vos-á. Sofrei, pois, esta prova e orai para que a vontade de Deus se cumpra (Regul. LV).

O Senhor castiga a quem Ele ama; fere a todos aqueles que recebe como seus filhos, diz São Paulo aos Hebreus: Quem enin diligit Dominus, castigat, flagellat autem omnem filium quem recipit (12, 6).

Não cheguemos a figurar-nos, diz São João Crisóstomo, que as aflições sejam uma prova de que Deus nos abandonou e de que nos despreza, pois são, ao contrário o sinal que manifesta o quanto Deus se ocupa de nós, porque nos purifica de nossos pecados e nos facilita os meios de merecer sua graça e sua proteção (Homil. XXXII in Gen.).

A aflições frequentes, diz São Bernardo, são uma espécie de martírio, uma espécie de efusão de sangue: Est martyrii genus, est quaedam effusio sanguinis in quotidiana corporis afflictionis (In Psalm.).

As aflições são necessárias

As aflições são necessárias para mitigar a concupiscência, para fazer-nos expiar os pecados, para desprender-nos do mundo e de nós mesmos, e levar-nos ao afeto e à obediência de Deus! São inevitáveis. A vida atual, diz Santo Agostinho em suas Meditações, cap. XXI, é uma peregrinação fatigosa; é fugitiva, incerta, laboriosa, expõe-nos mil vezes a toda classe de vícios; leva atrás de si todos os males; é rainha dos orgulhosos, plena de misérias e de erros. Não devemos chamar vida, senão morte: Quae non est dicenda vita, sed mors. O homem, com efeito, morre a cada instante, e somente segue vivendo para sofrer a morte de diferentes maneiras. Podemos chamar vida ao tempo que passamos neste mundo? Que é uma vida que os humores alteram, as dores riem, os calores fazem murchar, um sopro envenena, os prazeres dissolvem, a pena consome, a inquietude abrevia e cujo sentimento se embota com a segurança? Os alimentos põe-nos obesos, os jejuns nos extenuam, as riquezas nos conduzem à vanglória e à ostentação, a pobreza nos humilha, a juventude nos enche de orgulho, a velhice nos encurva, a enfermidade nos acaba, e a tristeza nos subjuga. A todos esses males sucede a implacável morte, terminando de tal modo todas as alegrias desta miserável vida, que quando esta (vida) acaba, facilmente creríamos que jamais existiu. Esta morte é verdadeiramente a vida, e a vida uma espécie de morte: Mors ista vitalis et vita mortalis.

A vida temporal, diz São Gregório, é trabalhosa, está plena de aflições; passa entre agitações e trabalhos penosos. Quem é que não se acha martirizado por dores, atormentado de cuidados, e possuído de temores? Choramos e rimos; a tristeza acompanha a alegria; temos fome e nos saciamos; porém, apenas saciados, a fome nos assedia novamente. A sede esgota nossas forças, o calor abate, o frio gela. Suspiros, lágrimas, soluços de todas as partes: misérias universais, variadas ao infinito e sem número. O rico tem suas aflições e frequentemente muito grandes; o pobre não cessa de as ter; os pequenos estão expostos à sua influência e os grandes não se acham isentos delas (Moral.).

A dor nasceu com a vida e envelheceu com ela, diz Salomão; seus olhos plenos de lágrimas anunciam que entram em uma terra de maldições e sofrimentos: Primam vocem similem omnibus emisi plorans (Sb 7, 3). O recém nascido, sem o saber, diz Santo Agostinho, pressente a dor, seu olhar, como agudez profética, abraça as mil aflições da vida, que terá de sofrer e que deplora: Infans praesentit quase inscius, et profhetat mille vitae aerumnas sibi subeundas, quas deplorat (Sentent.).

A vida do homem, diz Jó, é um serviço de guerra. Seus dias se parecem aos do mercenário: Militia est vita hominis super terram, et sicut dies mercenarii dies ejus (Jó 7, 1). E acrescenta: o homem, o filho da mulher, vive poucos dias e está pleno de misérias: Homo natus de muliere, brevi vivens tempore, repletur multis miseriis (Jó 14, 1). Se me deito, exclamo suspirando, quando me levantarei? Quando se acabará a noite? E até que chegue a trevas, acho-me sobrecarregado de dores: Replebor doloribus usque as tenebras (Jó 7, 4).

É preciso que entreguemos nossa vida com submissão à Lei de Deus. Mas, diz Santo Agostinho, toda a vida do cristão, se, de fato, vive segundo o Evangelho, é uma cruz e um martírio: Tota vita christiani himinis, si secundum Evangelium vivatur, cruz est, atque matyriumi (Lib. de Civit.).

Nosso corpo se compõe de quatro elementos, e como os elementos são imperfeitos, nosso corpo tira deles quatro enfermidades. Da água, lhe vem um princípio da corrupção; da terra, obtém a opacidade e o peso; do fogo, a vida animal, calor que lhe consome sem cessar e lhe impõe a necessidade do alimento. Do ar, vem-lhe as dores e as enfermidades, porque o ar muda frequentemente, e transporta germes pestíferos de um lugar a outro. Os trabalhos e os sofrimentos desta vida são muitas vezes grandes e numerosíssimos. A aflição de que somos acometidos, escreve o Apóstolo aos Coríntios, tem sido superior a nossas forças, isto é, superior às forças da natureza e do corpo, porém não superior às da graça e do espírito. A vida chegou a ser pesada, isto é, sob o ponto de vista da natureza, porém não da caridade e do socorro do céu.

É necessário armar-se de valor para sofrer as aflições

A alma forte não sucumbe nas adversidades, mantem-se firme, resiste e triunfa. Assim como a cal entra em efervescência na água e o fogo se acende mais e mais com o ar, assim também a força e a energia de uma alma aumentam em meio às aflições e perseguições. A virtude reverdece com as feridas que recebe. E como dizia Catão:

“As serpentes, a sede, o calor, os combates do Circo, tudo é doce para a virtude heroica: a paciência se alegra com as provas mais duras[1]

Escutai a São João Crisóstomo: Soldado de Jesus Cristo, sois débil, sem vigor e covarde, se presumis poder vencer sem combate e triunfar sem defesa. Desfraldai vossas forças, feri com valentia, aceitai com firmeza a feroz luta. Pensai em vosso juramento, vossa condição, vossa bandeira; o juramento que fizestes no santo Batismo, a condição que aceitastes, a bandeira na qual inscrevestes vosso nome: Delicatus es, miles, si putas te posse sina pugna vincere, sine certamine trunphare. Exsere vires, fortiter dimica, atrociter in praelio insto certa. Considera pactum, conditionem atende, militiam nosce pactum quo spopondisti; conditionem qua accesdisti, militiam cui nomem dedisti (Serm. de Martyribus).

É preciso não se deixar abater. Temos de imitar a São Paulo, que dizia: Sofremos toda classe de aflições, porém não nos amedrontam; encontramo-nos em grandes dificuldades, porém não sucumbimos nelas; somos perseguidos, porém não estamos abandonados; vemo-nos derrubados, porém não perdidos: In omnibus tribulationem patimur sed non angustiamur aporiamur sed non destituimur persecutionem patimur sed non derelinquimur deicimur sed non perimus (2 Cor 4, 8-9).

As aflições são ligeiras para o cristão

As aflições, as perseguições seguem ao homem piedoso, porém jamais lhe alcançam. Daí vem a palavra perseguição, persecutio.

A cruz é tão doce para aquele que ama a Deus, que não é tanto uma cruz, senão um princípio de vida e de verdadeira alegria. Por isso Santa Catarina de Sena olhava com amargura as doçuras da terra, e doces, as amarguras. Na cruz está a verdadeira doçura, o verdadeiro consolo, a alegria verdadeira. Abraçai-a e vereis por experiência. Por outro lado, desde a cruz se vai ao céu!

Com as mais bramadoras aflições, diz São Gregório, podem-se facilmente lidar quando se pensa na Paixão de Jesus Cristo; pois, por grande que seja, a tribulação em que nos encontremos, é pouca coisa recordando quão duras foram as palavras e que penosíssimos foram também os golpes e os atrozes suplícios que aceitou por nós. Sua cabeça foi rasgada pela coroa de espinhos; seus olhos foram cobertos cm um véu, e feriram seus ouvidos com horríveis blasfêmias; aplacaram sua sede com fel e vinagre; cuspiram em seu rosto augusto e lhe esbofetearam. Seus ombros rangeram sob o peso da cruz; teve o coração inundado de tristeza e de amargura; o corpo cheio de chagas pelos acoites, e os braços e pés estendidos e atravessados com enormes cravos. Enfim, desde a planta dos pés até a parte mais alta de sua divina cabeça, ficou o seu corpo pleno de feridas e dores (Homil. in Passion. J. Ch.).

Jesus Cristo ajuda a sofrer as aflições

O pontífice que temos, diz o grande Apostolo aos Hebreus, pode compadecer-se prontamente de nossas debilidades, posto que esteve sujeito a toda a classe de males, sem achar-se manchado pelo pecado: Non enim habemus pontificem qui non possit conpati infirmitatibus nostris temptatum autem per omnia pro similitudine absque peccato (Hb 4, 15).

Jesus Cristo sofre com os homens eu são seus membros: com São Lourenço, padeceu os tormentos do fogo; com Santo Estêvão, foi apedrejado; com Santo Inácio, sofreu a sanha de animais ferozes, etc. Toma também parte nos combates de seus fieis servidores.

Escrevendo São Paulo a Timóteo, diz-lhe: Já sabeis as perseguições e as aflições que sofri; o que me sucedeu em Antioquia, e Icônio e em Listra, e quão grandes foram as tribulações que sobre mim pesaram. Porém, o Senhor me livrou de todos esses males: Et ex ominibus erupuit me Dominus (2 Tm 3, 11).

A primeira vez que defendi minha causa, acrescenta São Paulo, ninguém veio em meu socorro, todos me abandonaram. Desejo que isto não possa lhes prejudicar. Mas o Senhor sempre me assistiu; fortificou-me e vi-me livre dos dentes dos leões: In prima mea defensione nemo mihi adfuit sed omnes me dereliquerunt non illis reputetur. Dominus autem mihi adstitit et confortavit me ut per me praedicatio impleatur et audiant omnes gentes et liberatus sum de ore leonis (2 Tm 4, 16,17).

Do meio de minha oração, o Deus de justiça me ouviu; em minhas angústias, abriu-me um imenso espaço, diz o Salmista: Cum incorarem, exaudivit me Deus justitiae meae; in tribulatione dilatasti mihi (Sl 4, 2). Deus nos escuta algumas vezes livrando-nos das aflições; outras vezes, dando-nos a virtude da paciência; o que, todavia, é um benefício maior; e, em alguma ocasião, nos concede também, não somente a paciência, senão a alegria, diz o Cardeal Belarmino (Comment. in Psal.).

Deus, diz o Real Profeta, está ao lado daqueles que tem o coração aflito: Justa est Dominus iis qui tribulato sunt corde (Sl 33, 19). A quantas e que grandes angústias me haveis exposto, diz em outra parte, porém eis-me aqui de volta, e vossa presença me restituiu à vida e me livrou das entranhas da terra[2]. Tu me invocaste na tribulação, diz o Senhor, e eu te libertei. Ouvi-te em meio à tempestade; pus-te à prova[3]. Clamaram ao Senhor em sua angústia, e o Senhor os libertou de suas misérias[4].

Senhor, diz Tobias, feris e cuidais da ferida; fazeis descer à cova e dela livrais: Domine, tu flagellas et salvas, deducis ad ínferos et reducis (Tob 13, 2). O Senhor nos castigou por causa de nossas iniquidades e nos salvará atendidas as suas misericórdias: Ipse castigavit nos propter iniquitates nostras et ipse salvabit nos propter misericordiam suam (Tob 13, 5).

As aflições vem acompanhadas de consolações

A medida que os padecimentos de Jesus Cristo aumentam em nós, diz São Paulo, nossas consolações aumentam também por Jesus Cristo: Sicut abundant passiones Christi in nobis ita et per Christum abundat consolatio nostra (2 Cor 1, 5). Quanto mais aumentam as aflições sofridas por Deus, maiores e mais abundantes são nossas consolações. As aflições dos mundanos são, ao contrário, fel sem mel; e quanto mais se multiplicam, mais também aumentam sua desolação, seus enjoos e seus pesares. Daí deduz-se que, longe de fugir das cruzes, é preciso desejá-las, posto que tão fecundas são em delícias. Admirável testemunha disto é São Paulo quando exclama: Minha alegria é abundante em todas as nossas tribulações[5]. Longe, pois, de entristecer-nos nos trabalhos e provações, devemos sentir alegria e gloriar-nos. Gloriamo-nos, diz aquele grande Apóstolo, não somente na esperança, senão também nas aflições[6].

São Bernardo diz, falando de Santo André, Apóstolo: Ia ao suplício da Cruz com paciência; mais ainda, voluntariamente e até com ardor, como na festa mais solene, como no mais requintado banquete: Non modo patienter, sed et libenter, verum er ardenter ad tormenta, sicut ad ornamenta, ad paenas sicut as delicias porperabat (De tripl. gener. bon.).

Havendo sido açoitados cruelmente, os Apóstolos, por ordem do conselho, voltaram plenos de alegria, porque havia sido julgados dignos de sofrer afrontas pelo nome de Jesus Cristo: Ibant gaudentes a conspectu concilii quoniam digni habiti suntpro nomine Iesu contumeliampati (At 5, 41).

Temos de sofrer as aflições com paciência, confiança e resignação

Gloriamo-nos com a esperança da glória dos filhos de Deus, diz São Paulo aos Romanos, e não somente com esta esperança senão em nossas aflições, sabendo que a aflição produz a paciência, a paciência a prova, e a prova, a esperança; e a esperança não é vã (Rm 5, 2-5).

Que não se queixe o homem, diz Santo Agostinho, quando sofre alguma desgraça: com a amargura das coisas da erra, aprende a amar as coisas do céu; peregrino, empreende o caminho de sua pátria (Serm. XVIII).

Quando vos encontrardes aflitos, diz São Pedro Damião, quando sofrerdes, estai cheios de confiança; não murmureis, não vos entristeçais, não vos impacienteis; antes melhor, tende a serenidade sempre no rosto, a alegria no coração, a ação de graças nos lábios (Epist. VII).

As aflições são uma prova de predestinação e de amor da parte de Deus: quando castiga, quer salvar o pecador; e, ao contrário, a impunidade é sinal de cólera e da reprovação divina[7].

Temos de sofrer as aflições com perseverança

Levemos sempre a morte de Jesus Cristo em nosso corpo, diz o Apóstolo aos Coríntios, a fim de que a vida de Jesus Cristo se manifeste também em nossos corpos: Semper mortificationem Iesu in corpore nostro circumferentes ut et vita Iesu in corporibus nostris manifestetur (2 Cor 4, 10).

Podemos esperar com segurança a bem aventurança prometida, diz São Leão, se tomamos parte na paixão do Senhor; e como em todos os tempos deve o cristão viver piedosamente, deve também levar sempre a cruz: Certa atque secura est expectation promissae beatitudinis, ubi est participation Dominicae passionis: sicut ergo totius est temporis pie vivere, ita totius est temporis crucem ferre (Serm. IX de Quadrag., c. 1).

Todas as aflições nada são quando comparadas com o Inferno

Escutai a Santo Agostinho: Agora, diz ele, a vida e os prazeres temporais são doces e as tribulações são, pelo contrário, amargas; porém, quem deixará de beber o cálice das aflições, por temor ao fogo do inferno? Quem desprezará as doçuras do século, se suspire pelos bens da vida eterna? In praesenti vita, et deliciae temporalis dulces sunt, et tribulations temporalis amarae sunt; sed quis non bibat tribulationis poculum, metuens ignem gehennarum? Et quis non contemnat dulcedinem saeculi, inhians bonis vitae aeternae? (In Sententiis, n° 226).

O que são todas as cruzes, todos os sofrimentos, todas as dores, todos os tormentos, o fogo, o ferro, a morte mais violenta, comparados com os fogos do inferno? Se a tentação vos persegue, se vos desprezam, se sofreis, se vos encontrais enfermo, triste, atacado em vossa reputação, abrasado, pensai que tudo isso é passageiro, tudo de curta duração, e que o inferno é eterno…

Miseráveis de nós pecadores, diz São João Crisóstomo, não fujamos das aflições, senão do pecado; porque a única e terrível aflição é a de ofender a Deus: Ne fugiamus male afligi, semd male agere; hoc enim est vere male afligi (Homil. ad pop.).

Nós mesmos criamos muitas aflições

Se os homens repudiam minha lei, diz o Senhor, pela boca do Salmista, se não procedem segundo meus juízos, se profanam minha justiça e são transgressores de meus mandamentos, visitarei suas iniquidades com uma vara na mão e ferirei seus pecados: Si dereliquerint filii eius legem meam et in iudiciis meis non ambulaverint si iustitias meas profanaverint et mandata mea non custodierint visitabo in virga iniquitates eorum et in verberibus peccata eorum (Sl 88, 31-33).

A violação da lei de Deus sempre foi a causa de todas as aflições, sobretudo, a causa primordial; pois esta violação é voluntária. Porque, pois, sendo miseráveis pecadores, haveremos de nos queixar das penas que sofremos, posto que o pecado, ao que livremente temos consentido, é sua verdadeira causa? Deixemos de ofender a Deus, e Deus deixará de castigar-nos, diminuirão nossas aflições, e a graça nos fará sofrer com resignação e até com alegria. Estavam sentados nas trevas e na sombra da morte, encurvados pelo peso das cadeias e famintos, porque, diz o Real Profeta, desprezado a Palavra de Deus, porque não fizeram caso dos conselhos do Altíssimo. E seu coração permaneceu humilhado pelos trabalhos, debilitaram-se e ninguém lhes sustentou (Sl 106, 10-12).

Cabe maior sofrimento do que aquele de ter a consciência atormentada e rasgada pelos remorsos? Cabe maior aflição do que a de ser inimigo de Deus, escravo de Satanás e digno do inferno? Cabe maior pena do que a que causa o pecado mortal dando a morte à alma? Estas são as mais temíveis aflições. Porém estas aflições nós as queremos, nós as buscamos, desde o momento queremos e buscamos o pecado, que é sua verdadeira causa. Relativamente às mesmas coisas temporais, quantas aflições não buscamos também nós? Entrais sem vocação, cegamente, no estado matrimonial; a mulher que tomastes por esposa é má, etc. A quem podeis vos queixar? Gastais vossa fortuna em jogos, em banquetes, em ir atrás de prazeres; pronto, como o filho pródigo, vós vos encontrais reduzidos à posição mais horrível. Quem tem a culpa? Apesar dos saudáveis avisos de seus pais, de seu pastor e de seu confessor, uma jovem se expõe ao perigo, perde-se e desonra- se; quem lhe procurou esta aflição cruel e humilhante? Apesar das advertências caritativas e reiteradas, um jovem libertino destrói sua saúde, etc. a quem há de culpar? A maior parte dos sofrimentos que nos subjugam e dos quais nos queixamos amarga e constantemente, são obra nossa; atormentamo-nos a nós mesmos; não culpemos a ninguém!

O exemplo dos santos nos ajuda a sofrer as aflições

Posto que nos encontramos rodeados de uma nuvem tão densa de testemunhas, diz São Paulo aos Hebreus, desprendamo-nos de tudo o que nos subjuga e de todos os laços do pecado, e corramos, pela paciência, no certame que nos é proposto: Ideoque et nos tantam habentes inpositam nubem testium deponentes omne pondus et circumstans nos peccatum per patientiam curramus propositum nobis certâmen (Hb 12, 1).

Senhor, dizia Santo Agostinho, aqui na terra cortai, queimai; porém, compadecei-vos de mim na eternidade: Hic ure, hic seca, modo in aeternum parcas (Solilog.).

Sofrer ou morrer, dizia Santa Teresa (Vita).

Dídimo, que esteve cego durante oitenta anos, dizia:

“Mais vale ver com os olhos do espírito do que com os do corpo; os primeiros tem que temer a palha do pecado, enquanto que os segundos com uma só olhada podem nos enviar aos fogos do inferno. Ele se acreditava feliz com sua constante cegueira” (Vit. Patrum).

O Bem aventurado Pedro, Abade de Claraval, tendo perdido um olho em consequência de uma enfermidade, dizia: escapei de um dos meus inimigos, e temo mais o olho que me restou do que aquele que perdi (Ribaden, in ejus vita). Adoeceu, em sua velhice, São Lourenço Justiniano, e seu médico viu-se obrigado a lhe cortar as carnes; porém deteve-se prontamente, não atrevendo-se a fazer penetrar a lâmina de seu bisturi; porém, então, aquele grande santo disse-lhe: Tende valor, vosso aço não pode igualar-se às agudas garras nem aos ardentes ganchos que sofreram os Mártires (Surius, in ejus vita).

Caminhando ao suplício, Santa Cecília dizia: Morrer mártir, não é perder a juventude, senão trocá-la por uma juventude eterna; é dar barro e receber ouro, é dar uma mansão pobre, vil e estreita, e receber uma maior, o mais esplêndido dos palácios; é dar uma coisa perecível, e receber outra que não conhece término (Surius, in ejus vita).

Vede o exemplo dos jovens no forno da Babilônia, de Daniel na cova dos leões, vede aos Apóstolos, aos Mártires e a todos os Santos…

Nada são as aflições comparadas com a recompensa e a glória eterna que nos aguardam

Os padecimentos desta vida, diz São Paulo aos Romanos, nenhuma proporção tem com a glória que deve um dia brilhar em nós: Non sunt condignae passiones huius temporis adfuturam gloriam quae revelabitur in nobis (Rm 8, 18). Não consideramos as coisas visíveis, diz aos Coríntios, senão as invisíveis, porque as coisas visíveis são transitórias, porém as invisíveis são eternas (2 Cor 4, 16).

Segui, pois, murmurando, diz São Bernardo, segui dizendo: é demasiado longo, demasiado pesado, não posso sofrer aflições, provas de um momento; e certamente que não recebestes os golpe que os judeus descarregaram sobre este grande Apóstolo; não trabalhastes mais que os demais homens, nem haveis resistido até derramar vosso sangue. Considerai que as aflições são infinitamente inferiores a glória que Deus lhes reserva. E a bem da verdade, porque fazeis caso de horas e dias incertos? A hora passa e as penas também: Transit hora, transit et penae. Não se encadeiam, pelo contrário, desaparecem elas sucedendo-se. Não acontece o mesmo com glória, não acontece o mesmo com a recompensa concedida aos trabalhos e aos sofrimentos. Esta recompensa não reconhece mudança nem término; existe inteira a cada instante e dura toda a eternidade. Ademais, bebendo uma gota depois da outra, é como apressamos a taça das penas, guttatim paena bibitur, nem a temos tampouco sempre em nossos lábios, senão que, pelo contrário, passa. E a recompensa é uma torrente de prazer, é tão impetuosa, como um grande rio, é uma torrente de alegria que inunda; é um rio de glória, um rio de paz (Serm. I).

Os sofrimentos logo desaparecem, a recompensa jamais se acaba. A glória que espero, diz São Francisco de Assis, é tão grande, que todas as enfermidades, todas as mortificações, todas as humilhações, todas as penas me enchem de alegria (S. Bonav. in ejus vita).

As aflições são uma gota de fel: a recompensa reservada aos que sofrem cristãmente é um oceano de mel; elas são delícias, uma glória, felicidade eterna!

Ânimo, pois, servidor bom e fiel; sê constante em sofrer estes pequenos dissabores e a recompensa será grande, diz Jesus Cristo; participa da alegria de teu Senhor: Euge bone serve et fidelis quia super pauca fuisti fidelis super multa te constituam intra in gaudium domini tui (Mt 25, 21).


Referências:

[1] Serpes, sitis, ardor, arena, dulcia virtuti: gaudetpatientia duris. (Ita Laertius)

[2]  Quantas ostendisti mihi tribulationes multas es males; es conversus vivificasti me, et de abysis terrae iterum reduxisti me (Psalm. LXX, 20).

[3] In tribulatione invocasti me, et liberavi te, exaudivi te in abscôndito tempestatis, probavi te (Psalm. LXXX, 8).

[4] Clamaverunt ad Dominum cum tribularentur, et de necessitatibus eorum liberavit eos (Psalm. CVI, 13).

[5] Superaundo gaudio in omni triulatione mostra (II Cor VII, 4).

[6] No solum autem gloriamur in spe, sed et gloriamur in tribulationibus (Rom. V, 2-3).

[7]  Que certamente se abaterão futuramente sobre o transgressor ainda não punido suficientemente nesta vida terrena (Nota do tradutor).

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