Lição 1: A obra do Cronista
Os livros das Crônicas, de Esdras e Neemias constituem um bloco homogêneo designado como “obra do Cronista”; percorrem a história do gênero humano desde Adão até a restauração do povo em sua terra após o exílio (séc. V a.C.). A unidade da obra se torna manifesta se examinamos o seu vocabulário, o seu estilo e a sua mentalidade.
Verifica-se, por exemplo, que esses livros atribuem grande importância a
1) genealogias (pois estas mostram a continuidade da história do povo escolhido e são penhor de que Deus não abandonou a sua gente). Vejam-se as tabelas genealógicas de 1Cr 1-9; 11,26-47; 12,3-8.10-14; Esdr2; 8; 10; Ne 7; 10¬12…
2) instituições do culto; observe-se a ênfase dada à trasladação da arca (1Cr 15s), à dedicação do Templo (2Cr 5-7), à reforma do culto e à celebração da Páscoa sob Ezequias (2Cr 29-31), a solenidade da Páscoa sob Josias (2Cr 35), a restauração da liturgia após o exílio sob Josué e Zorobabel (Esdr 3), à dedicação do novo Templo e à celebração da Páscoa (Esdr 6,16-22), à celebração da festa dos Tabernáculos (Ne 8,13-18), à dedicação dos muros de Jerusalém (Ne 12,27¬43)…
3) sacerdotes e levitas, principalmente músicos, cantores, porteiros, dos quais não há menção nos outros livros históricos; ver 1 Cr 9,17-29; 15,16-21; 16,4-42; 2Cr 5,12-14; Esdr3,10s; 7,7; Ne 7,1.45; 11,17-19…
A unidade da obra também se depreende do fato de que a mesma notícia (o fim do exílio) encerra 2Cr (36,22s) e abre Esdr (1,1-3); esta notícia faz a sutura.
Examinemos separadamente 1/2Cr e Esdr/Ne.
Lição 2: Os livros das Crônicas
1. Originariamente as Crônicas constituíam um livro só; foi dividido em dois pelos LXX; estes deram à obra o título de Paralipômenos (= as coisas omitidas ou deixadas de lado, em grego), julgando que em Cr haviam sido consignadas notícias esquecidas pelos livros de Samuel e Reis. Na verdade, esta suposição é falsa; os livros das Crônicas reapresentam a história narrada em Sm e Rs, mas numa perspectiva ainda mais estritamente religiosa, como veremos a seguir.
2. 1/2Cr compreendem quatro partes:
a) tabelas genealógicas desde Adão até Davi; 1Cr 1,1-9,44. Vê-se, pois, que a época anterior a Davi é preenchida apenas por listas de nomes; a atenção do autor se volta especialmente para a tribo de Judá e a descendência de Davi, para os levitas e os habitantes de Jerusalém.
b) A história do rei Davi, cheio de zelo pelo culto do Senhor: 1Cr 10,1¬29,30. O autor não menciona as desavenças com Saul, nem o pecado de Davi com Betsabéia, a mulher de Urias assassinado, nem os dramas de família de Davi nem as revoltas contra o rei. A profecia de Natã, porém, é posta em relevo particular (c. 17) assim como o interesse de Davi pelo culto: a trasladação da arca e a organização da liturgia em Jerusalém (c. 13; 15-17), os preparativos para a construção do Templo (cc. 21-29): Davi traçou o plano, reuniu o material, organizou pormenorizadamente as funções do clero e deixou a execução ao seu filho Salomão.
c) A história de Salomão: 2Cr 1,1-9,31. Há grande ênfase sobre a construção e a dedicação do Templo em Jerusalém e silêncio total sobre as prevaricações de Salomão.
d) A história dos reis de Judá (sem menção dos reis cismáticos de Samaria) : 2Cr 10,1-36,23.
3. O autor de 1/2Cr, mais do que o de 1/2 S m e 1/2Rs, teve em mira propor o significado teológico dos acontecimentos narrados. O autor escrevia depois do exílio ou no fim do séc. IV a.C., quando o povo de Judá não tinha rei, mas vivia humilhado sob jugo estrangeiro: o Cronista queria lembrar aos seus leitores as promessas feitas a Davi para excitá-los à confiança em Javé numa situação tão deprimente. Intencionava também recordar que a vida da nação dependia da fidelidade ao Senhor, fidelidade que deveria manifestar-se no cumprimento da Lei e na celebração do culto divino. O fato de não haver então monarquia em Israel explica que o povo judeu se tenha tornado muito especialmente uma comunidade religiosa, cimentada pelos valores da piedade e do culto.
4. Vejamos como os objetivos do Cronista se manifestaram em alguns traços salientes da sua obra:
- o valor de cada rei é julgado na base do seu interesse pelo culto divino; o grande referencial e modelo é sempre o rei Davi;
- a casa e o reino de Davi são identificados com a casa e o reino de Judá; compare entre si 1Cr 17,14 e 2Sm 7,16. O reino de Davi aparece como um reino de paz (1 Cr 17,9), governado por um príncipe pacífico ou, em última instância, pelo próprio Javé (1 Cr 22,9; 2Cr 9,8; 13,8) na terra que o Senhor mesmo deu a seu povo (1Cr 17,9; 23,25; 2Cr 13,8); assim o reino de Davi assume as características de uma teocracia (governo de Deus) perfeita;
- o Templo é o lugar da habitação do nome de Javé; afastar-se dele é afastar-se de Javé, desonrar o Templo é desonrar a Javé, zelar pelo Templo e prestar o culto legítimo é cultivar a amizade e a fidelidade a Javé (1Cr23,25; 28 7; 2cr6,5.16; 20;20,9; 33,4.7);
- é salientada a direta intervenção de Deus na história; pelos seus feitos ou pelo testemunho dos Profetas, o Senhor se faz sempre presente. Assim foi Javé quem libertou do Egito o povo e expulsou os cananeus (1 Cr 18,21; 2Cr 6,5; 20,7). Ele proibiu a Roboão fizesse a guerra contra Jeroboão (2Cr 11,2s); entregou Roboão e os príncipes de Judá nas mãos de Sesac, faraó do Egito (2Cr 12,5); induziu o rei Abias de Judá à guerra contra Jeroboão e lhe deu a vitória (2Cr 13,4-20); Ele atemorizou os etíopes diante do rei Asa de Judá (2Cr 14,9¬15)… ; Ele mandou Nabucodonosor a Jerusalém a fim de punir o povo infiel (2Cr 36,17-21);
- o Cronista não refere apenas os fatos, mas acrescenta-lhes uma reflexão teológica. Ver 1Cr10,13s; 2Cr 12,1-12; ver 2Cr 16,12-17, a comparar com 1Rs 15,23; ver 2Cr 20,35-37 a comparar com 1Rs 22,49; ver 2Cr 24,17-25, a comparar com 2Rs 12,18-22; ver 2Cr 25,14-28, a comparar com 2Rs 14,8-14.19…
Passemos agora ao estudo de Esdr-Ne.
Lição 3: Os livros de Esdr-Ne
1. Estes livros originariamente constituíam uma só obra com o das Crônicas. Depois que foram separados de Crônicas, ficaram sendo um só volume chamado “de Esdras”. A divisão em dois data da era cristã, quando se começou a falar de Esdras l e Esdras II; o primeiro foi, com o tempo, dito simplesmente “de Esdras”, e o segundo “de Neemias” (talvez por causa de 2Esdr 1,1: “Palavras de Neemias, filho de Helcias“).
2. Esdr e Ne referem os acontecimentos relativos à volta do povo exilado na Babilônia para a Terra Santa e à restauração da vida religiosa e civil desse povo – o que cobre uma época que vai de 538 a 430 ou talvez 398. Foi este um período de grandes lutas para o povo judeu: o entusiasmo e a alegria dos que voltaram à pátria, viram-se logo sufocados pelos obstáculos preparados pelos adversários. Na verdade, a terra de Judá estava ocupada por estrangeiros, que se opunham à reconstrução da cidade e do Templo de Jerusalém; os próprios samaritanos, irmãos de meio-sangue dos judeus, hostilizaram a estes; o contato com os estrangeiros, especialmente os casamentos mistos e as relações comerciais, punham em perigo a fé dos judeus; além disto, a penúria de bens materiais levava os recém-chegados ao crime e ao desânimo. – O povo foi superando devagar estes obstáculos, exortado pelos profetas Ageu, Zacarias e Malaquias e guiado pela chefia enérgica de Esdras e Neemias.
O livro de Esdras divide-se em duas partes:
1) Construção e dedicação do Templo: 1,1-6,22. Um altar foi erguido em 537 sobre o lugar do Templo e este começou a ser reconstruído (3,1-13); mas a obra foi interrompida por causa das hostilidades dos samaritanos (4,1-24). Finalmente em 520 recomeçou a edificação do Templo, que estava terminado em 515, ano da dedicação do mesmo (5,1-6,22).
2) Reforma moral do povo: 7,1-10,44. Esta teve um dos seus pontos mais nevrálgicos na separação dos casamentos mistos (9,1-10,17).
O livro de Neemias também se divide em duas partes:
1) Reconstrução das muralhas e da cidade de Jerusalém: 1,1 -7,22. Note-se o heroísmo com que lutavam os filhos de Judá para realizar seu intento: durante o dia trabalhavam e durante a noite montavam guarda para não ser sobressaltados pelos inimigos (Ne 4,16s).
2) Reforma religiosa e social do povo: 8,1-13,31. A aliança foi renovada sob a orientação de Esdras (9,38-10,39). Os muros de Jerusalém foram solenemente dedicados (12,27-42), e o povo se adaptou aos preceitos litúrgicos e às normas sociais da Lei de Moisés (12,43-13,31).
Os primeiros capítulos de Esdras são ilustrados pelas noticias que nos fornecem os profetas Ageu, Zacarias e Malaquias.
Esdr e Ne apresentam rica documentação, muitas vezes contemporânea aos fatos relatados: listas de repatriados e da população de Jerusalém (Esdr 2,1¬67; Ne 7,6-65), atos e decretos dos reis da Pérsia (Esdr 1,2; 4,17-22; 6,2-12; 7,12-26), correspondência dos adversários dos judeus com a corte persa (4,9-16; 5,7-17). Deve-se observar, porém, que a exegese ou interpretação de Esdr-Ne é muito difícil, pois os documentos citados não se acham em ordem cronológica: por exemplo, na seção de Esdr 4,6-6,18 (escrita em aramaico, quando o resto do livro se acha em hebraico) os acontecimentos da época do rei Dario I da Pérsia (521-486) são narrados após os dos reinados de Xerxes I (486-464) e Artaxerxes I (464-424), quando na verdade são anteriores a estes; em conseqüência, o leitor do livro só encontra a continuação de Esdr 4,5 em Esdr 4,24 (pulando 4,6-23). A lista dos repatriados é apresentada duas vezes (cf. Esdr 2 e Ne 7).
As dificuldades de recompor a autêntica seqüência dos acontecimentos são tais que alguns estudiosos julgam dever deslocar alguns capítulos de Esdr- Ne. Eis precisamente como se coloca o problema: em Esdr 7,7 está dito que no ano 7° de Artaxerxes Esdras foi da Pérsia para Jerusalém. Ora quem foi esse Artaxerxes, rei da Pérsia? Dois personagens vêm ao caso: Artaxerxes I Longimano (464-424) e Artaxerxes II Mnemon (404-359). Se admitimos que Esdras viajou sob Artaxerxes I, diremos que se foi em 457 (464-7); Neemias teria viajado para Jerusalém no ano 20 do mesmo Artaxerxes, ou seja, em 444 (cf. Ne 2,1); tal é a sentença clássica. Todavia há quem pondere que a obra de Esdras é uma obra de remate (renovação da Aliança, plena restauração da vida religiosa, social e moral do povo), e não uma obra de começo; Esdras, dizem, supõe o trabalho de Neemias. Se isto é verdade, diremos que Neemias foi para Jerusalém no ano 20 de Artaxerxes I (444) e que Esdras seguiu para lá no ano 7° de Artaxerxes II, ou seja, em 397; em tal hipótese, os capítulos 7-10 de Esdras deveriam ser colocados no fim da obra do cronista. – A questão fica aberta; apenas as datas da grande atividade de Neemias em Jerusalém são certas: 444-433 a.C.
Para a compreensão religiosa de Esdr-Ne, tal questão é secundária. Mais importante é conhecer as idéias e a mentalidade que animaram a restauração, do que a seqüência exata dos fatos.
A restauração teve importância capital na história do povo eleito: significa o nascimento do judaísmo propriamente dito. Judaísmo vem de Judá; ora é esta a tribo que volta do exílio para reconstruirá vida do povo messiânico (era a tribo de Davi e do futuro Messias). O judaísmo assim oriundo tem suas características:
1) noção de Deus cada vez mais transcendental, a tal ponto que os judeus não ousavam pronunciar o santo nome Javé, mas diziam “o céu”, “o Altíssimo”, “a Glória”, “Ele”…;
2) estrita observância da Lei cultivada principalmente pelos fariseus, que multiplicavam os preceitos e desenvolviam minuciosa casuística;
3) a mística dos “pobres de Deus”, que eram também mansos e humildes, depositando sua confiança unicamente em Deus;
4) expectativa cada vez mais viva do Messias e da consumação da história. Por ter colecionado os escritos do Antigo Testamento e renovado a Aliança com Javé depois da restauração de Jerusalém, Esdras é chamado “o pai do judaísmo”.
Para ulterior aprofundamento, veja:
CASTANHO, A., Iniciação à leitura da Bíblia. Ed. Santuário 1980.
GRUEN, W., O tempo que se chama hoje. Ed. Paulinas 1977.
LÃPPLE, A-, Bíblia, interpretação atualizada e catequese, vol. 2: o Antigo Testamento – 2. Ed. Paulinas 1979.
MONLOUBOU-BOUYSSOU, Encontro com a Bíblia: Antigo Testamento. Edições Lumen Christi, 1980.
Perguntas sobre as Obras do Cronista
1) Compare entre si 2Cr 16,12-14 e 1 Rs 15,23; 2Cr20,35-37 e 1 Rs 22,49; 2Cr 20,55-31 e 1Rs 22,49; 2Cr 24,17-25 e 2Rs 12,18-22; 2Cr
25,14-28 e 2Rs 14,8-14. E veja o que o cronista acrescentou. Por que o acrescentou?
2) Em 2Sm 24,1 e 1 Cr 21,1 diz-se que Davi fez um recenseamento. Quem o instigou a isso? Por que o texto de 1Cr difere do de 2Sm neste particular?
3) Em 2Cr 35,22 e 2Rs 23,29 há referência ao mesmo fato. Que há de próprio em 2Cr?
4) Compare entre si Esdr 5,1 e Ag 1,2-11. Que disse Ageu aos repatriados ?