Skip to content Skip to footer

São João e as Heresias

Capítulo 14: São João e as Heresias

I

O mal fez suas represálias. Travou-se grande luta contra a verdade, e Éfeso não tardou em ver cumprir-se a predição que São Paulo fizera aos Anciãos em sua última despedida:

«Sei que depois da minha partida, muitos dentre vós se levantarão ensinando mentiras, com o fim de arrastar após si alguns discípulos» (At 20, 30)

Escrevendo a seu filho Timóteo, dizia-lhe ainda:

«Guarda bem o depósito da fé que te foi confiado, fugindo às notícias profanas e às antíteses de uma ciência falsa. Foi por havê-la seguido que muitos naufragaram na fé» (2Tm 1, 14; 1Tm 6, 20)

Mas, como ele o temia, já «os lobos famintos tinham entrado no redil», e Paulo achava que era um dever prevenir seu discípulo para que não se perdesse nas fábulas, mitos e genealogias intermináveis, «os quais são antes próprios a promover discussões do que a edificar a obra de Deus» (1Tm 1, 4).

Não pode haver dúvida a respeito: esta ciência falaz é a da Gnose, segundo o próprio nome que lhe dá o texto grego (1Tm 6, 20). As genealogias e teogonias são as dos Eons, emanações dos espíritos do seio do infinito. Mas Paulo tinha apenas entrevisto o gnosticismo; estava reservado a João o confundi-lo.

Foi certamente este, um dos maiores perigos que correu o cristianismo. O gnosticismo não era uma heresia parcial, negando este ou aquele ponto do dogma revelado. Era, ainda mais do que o protestantismo dos tempos modernos, uma dessas negações radicais, coletivas, abrangendo todo o corpo da nascente religião, para transformá-la, como pretendia, espiritualizá-la, levá-la ao nível de uma filosofia, e, por fim, depois de a ter, por este modo aniquilado, sufocando-a, substituí-la. Era a coligação de todas as ideias, assim como de todas as crenças, contra o inimigo comum; e nada faz melhor compreender a profundeza das raízes que o cristianismo enterrava no solo, como este esforço geral.

O gnosticismo era uma mistura confusa de heresias, procedente da fusão do judaísmo alexandrino e das superstições orientais. Do lado da Grécia e do Egito helênico, o platonismo, o estoicismo, o pitagorismo, sopravam sobre o Evangelho a fim de apagá-lo. Do lado da Pérsia e da índia, o parsismo e a teoria das emanações introduziam no seio da religião cristã as genealogias infinitas dos Eones, semidivindades ou espíritos subalternos, com uma cosmogonia panteísta.

Desta mistura resultava a mais inextricável confusão de doutrinas. Só concordavam para arruinar a substituindo-a pela Ciência, como significa o nome mesmo de Gnose, que elas se atribuíam em comum. Com efeito, ela devia ser antes de tudo uma ciência, o conhecimento superior das coisas. O cristianismo, na transformação pela qual o faziam passar os homens de espírito, não era mais uma obra de salvação, mas uma alta especulação, uma teoria mística. Pondo totalmente de parte o lado moral, faziam consistir a perfeição do homem não na virtude e na renovação da alma, mas simplesmente na ciência: a inteligência é tudo no homem, o resto não tem valor.

O dualismo era comum nessas doutrinas; vemo-lo professado por Simão, Valentim, Menandio, Carpocrates. O dualismo ensinava que de um princípio duplo, o bom e o mal, procediam o bem e o mal, em luta no universo. O espírito era o bem, provinha da luz. A matéria era o mal, procedia das trevas. Como então podia o Verbo, que é essencialmente luz e santidade, unir-se hipostaticamente à matéria, mergulhada toda ela no mal? Semelhante sistema excluía toda a possibilidade da Encarnação e como consequência, da redenção. De modo que, se o Cristo fora visto sobre a terra em carne humana, carne padecente, era apenas uma aparência; o próprio nome de docetismo, e o de docetos, como se chamavam os adeptos da seita tinha esta significação.

Dali também resultavam enormidades na ordem moral, cujo benefício e usufruto as múltiplas seitas se disputavam entre si.

Assim alguns, ouvindo declarar que a matéria, era essencialmente má, deduziam a cômoda consequência que o corpo nenhum direito tendo, nenhuma obrigação tinha, portanto. Não existindo solidariedade alguma entre ele e a alma luminosa, esta não podia ser responsável pelos atos dele, por mais monstruosos que fossem. A seita dos Nicolaítas, ou dos Balaamitas, não devia recuar diante da abominação de tais conclusões. Dali saíram infâmias, que se abrigaram sob o manto da ciência transcendente: este acúmulo de orgulho tinha a base na lama.

Viu-se então de todos os lados aparecerem doutores que, com o nome de cristãos e de cristianismo, insinuavam essas ideias, falsificando, segundo se exprime São Paulo, o vinho do Evangelho. Pouco acostumado ainda a se encontrar em presença de uma doutrina absoluta e exclusiva das outras, o mundo dos pensadores imaginava de bom grado ter feito um favor ao Cristo abrindo-lhe suas fileiras. Pensava-se honrar o Messias galileu atirando-Lhe sobre os ombros o manto dos filósofos da Grécia civilizada. Não era este monstruoso disfarce que o Senhor profetizara, quando denunciava os sedutores revestidos da lã das ovelhas, mas que no fundo não eram senão lobos famintos?

Assim, durante dois séculos, a gnose esteve constantemente em rixa com a fé, a qual pareceu dever abafar ao nascer. Como não o fez? Tinha de seu lado tudo o que dá a vitória. Nascera na Ásia, no ponto mais sonoro do mundo civilizado, entre o judaísmo de um lado e o parsismo do outro. O helenismo ali penetrava com todas as suas seduções. O belo gênio do Oriente o embalava com suas fábulas, rodeando-o de símbolos e alegorias. Uma metafísica abstrata e vaporosa agarrava-lhe os filósofos. Se estas doutrinas não eram senão um ecletismo cômodo, mais cômodo era a sua moral. Mesmo as almas sequiosas das coisas imateriais ali achavam, ao lado de um sensualismo velado, bastantes ritos e superstições para que a religião ausente tivesse ainda ali aparência sedutora. Assim, desde o começo, o gênio do mal punha na frente a tríplice força de toda seita que quer apanhar o homem todo inteiro: o orgulho era atraído pelo racionalismo, a carne pelo sensualismo, o corpo pelo misticismo. Tal era o tríplice aspecto sob o qual a heresia apareceu em Éfeso, opondo aos sagrados ensinamentos de São João as invenções de Cerinto, as abominações dos Nicolaitos e as operações mágicas de Apolônio de Tiana.

II

Cerinto, de origem judaica, era da cidade de Antioquia. Era também a pátria de Saturnino e de Bardesano, outros hereges desse tempo. É curioso ver se a primeira cátedra de heresia ergue-se ao lado da primeira cátedra pontifical de Pedro, e encontrar-se o berço dos gnósticos no mesmo lugar onde os discípulos de Jesus tomaram o nome de cristãos.

A vida toda de Cerinto foi uma vida de aventuras. De Antioquia, este espírito irrequieto foi à Alexandria, onde mestres famosos tornaram célebre a escola do Museu e do Serapa. Devia ali ser a segunda pátria do gnosticismo. Edificada nas margens do Nilo para completar a aliança da Grécia e do Oriente, a cidade de Alexandre tomara de cada uma dessas civilizações os requintes e os excessos, procurando misturar um sofisma elegante à superstições voluptuosas. Ali se encontravam o mágico da Chaldéa com o hierofante de Osíris, o filósofo de Atenas com o rabino da Palestina. Nos cofres de cedro da biblioteca de Ptolomeu estavam reunidos os escritos de Aristóteles e Platão à Bíblia dos Setenta. Um teto comum abrigava as ideias nascidas sob céus os mais diversos. Os próprios Judeus, tão numerosos e tão ricos nesta cidade de comércio não estavam longe de fazer concessões de doutrina, seguindo o exemplo de Philo e Aristóbulo, adaptando Moisés ao pensamento de Platão, e interpretando o Gênesis segundo o espírito de Timeu. Cerinto frequentou estas escolas e seu sistema de erros ali recebeu forte marca de misticismo (1).

Voltou depois o sofista à Antioquia, sua pátria mais ou menos no tempo da pregação de Paulo e Barnabé. Sua chegada foi o sinal de distúrbios que nos contam os Atos dos Apóstolos. Zelador da lei, ele e os seus se amotinaram contra os pregadores da nova religião. Santo Epifânio atribuía toda a oposição que o cristianismo encontrou a princípio nos judaizantes, às intrigas de Cerinto.

Foi então que se apelou para o concílio de Jerusalém. Condenado unanimemente (2), Cerinto ideou fazer uma religião para si, Judeu e platônico, assim quis ficar, tornando-se ao mesmo tempo cristão. Tirando do Evangelho alguns rasgos de verdade, procurou adaptá-los à suas fantasias e pôs-se a pregar uma mistura extravagante de filosofia oriental, de mosaísmo desnaturado e de cristianismo disfarçado.

Viu-se solenemente riscado da Igreja, sacudiu o jugo da fé, e passou-se para a Ásia, onde vamos encontrá-lo ao lado de São João.

Entre ele e São João não se tratava nada menos senão da grande questão que, desde aquele tempo jamais cessou de dividir os homens. Cerinto foi o primeiro a negar a divindade de Jesus: o Cristo não era Deus. Existia um Deus infinito, soberano; mas este, residia em sua grandeza, solitário, incomunicável, e cujo único nome era o abismo e o silêncio. Dela não tinha saído nem para criar o mundo, nem para erguer o homem. Incumbira da obra subalterna da criação e da revelação, não sei que poder formador dos seres e legislador dos Hebreus. Este mesmo se achara muito alto para dignar-se fazer-se homem. Mandara, por isso, apenas o filho para resgatar o mundo: Esse filho era o Cristo.

Todavia, este Cristo, filho único do princípio criador, não era a própria pessoa de Jesus; Habitava simplesmente o espírito de Jesus; de modo que a encarnação fora apenas aparente. Em certo momento, o sopro divino havia descido sobre o homem, porém, sem identificar-se com ele. No dia do batismo, Jesus o recebera sob a forma de uma pomba. Na hora da Paixão o perdera, como ele próprio se queixava na cruz: Ut quid dereli quisti me? Nesse dia o divino Eon, o Cristo, desfizera a aliança com ele, e voltara a seu princípio impassível e imortal (3).

A seita fez progressos. A gangrena devoradora, como a chamava São Paulo, não tardou a alastrar-se por toda a Ásia Menor. A Galácia foi particularmente atingida. Era a maior tristeza do apóstolo das nações, porque a Galo-Grécia era o seu campo de predileção; e, na Epístola aos Gálatas, queixava-se amargamente das alterações que o espírito judaico fazia sofrer a fé dessa Igreja tão florescente.

Por mais odiosa que fosse a seita ao apóstolo São Paulo, era-o ainda mais diretamente contrária ao espírito de São João. O espírito de João era o da caridade, e o amor não estava com estes orgulhosos.

«Eles não se dão ao trabalho de praticar a caridade, escrevia Santo Inácio aos fiéis de Esmirna. Não cuidam da viúva, nem do órfão, nem do aflito, nem do que sofre, seja prisioneiro ou esteja em sua casa, nem daquele que tem fome e sede» (4)

João era o grande apóstolo da Eucaristia; os gnósticos, ao contrário, não reconhecendo a verdade da carne do Senhor Jesus Cristo na encarnação, não queriam por conseguinte, reconhecê-la na hóstia (5).

«Esta gente, dizia Inácio, abstém-se da Eucaristia, porque não confessa que a Eucaristia é a carne de Nosso Salvador. Assim, contestando a autoridade de Deus, eles morrem por suas vãs discussões em lugar de ressuscitarem pelo amor» (5)

Nada havia mais capaz de amargurar o coração de João. Revoltado por estas blasfêmias, proíbe aos cristãos qualquer comunicação com os sedutores. Foi, referindo-se a eles, que escrevia:

“Se alguém for ter convosco, e não trouxer a doutrina do Pai e do Filho, não o recebais em vossas casas, nem mesmo o saudeis, porque aquele que o saúda, tem parte em suas más obras” – Si quis venit ad vos et hane doctrinam non affert, nolite recipere eum in domum, nec ave ei dixeritis (2Jo 10)

Por seu lado São João mostrava religioso horror: um simples encontro com Cerinto era-lhe odioso. Santo Irineu conta, segundo São Policarpo e as testemunhas primitivas, que um dia o ímpio escapou de encontrar-se, nas termas da cidade de Éfeso, com o santo apóstolo. Estava este último parado sob o pórtico dos banhos, quando, ao entrar numa sala, chamada Apodytera, onde se costumavam deixar as vestes, notou um manto que lhe pareceu conhecer. Como lhe assegurassem ser o manto do herege:

«Vamo-nos daqui, disse ele a seus discípulos, para que a cólera de Deus, caindo sobre esta casa, não nos esmague juntamente com o malvado que ela abriga» (7)

Mas não bastava fugir da impiedade, era necessário combatê-la. As epístolas de São João estão cheias de alusões evidentes à heresia, que, em Jesus, separava o Deus do homem:

“Todo espírito que confessa que Jesus Cristo veio em carne é Deus; escrevia ele, e todo espírito que divide Jesus Cristo não é Deus” – Omnis spiritus qui confitetur Jesus Christum in carne venisse, ex Deo est.

Et omnis spiritus qui solvit Christum, ex Deo non est (1Jo 4, 2.3)

Mas a verdadeira resposta de São João foi o seu Evangelho. O tempo não é ainda propício para falar nesse livro, que analisaremos mais tarde, adorando-o. Ver-se-á que o nome de Cerinto nem é pronunciado: João não discute, ele afirma somente e soberanamente. Com sua maneira sublime, conta e expõe que no princípio era o Verbo, que o Verbo era Deus, que o Verbo fez o mundo, que o Verbo se fez carne, que o Verbo é Jesus. E foi o Verbo-Deus que desde o princípio ele viu, contemplou, amou, tocou com as próprias mãos, e do qual está pronto a dar testemunho. Assim todas as distinções e os sonhos de Cerinto se evaporavam diante da luz, desde a primeira página do Evangelho.

III

Ao mesmo tempo surgia outra heresia, idêntica no fundo, diferente na forma e no caráter. Era a dissolução e a libertinagem dos sentidos depois das do espírito.

Segundo Eusébio, Cerinto, já cansado de se manter nas alturas severas da especulação, descera às consequências práticas de uma moral muito sensual. Fazia entrever um reinado terrestre do Cristo, onde se inebriavam de delícias semelhantes às que os muçulmanos esperam achar no paraíso de seu profeta. Uma nova seita formulou este sensualismo grosseiro, e vêm-se os Nicolaítas em Éfeso ao lado dos Cerintianos.

É o próprio apóstolo São João que nos revela, no Apocalipse, o nome e as obras dessa seita infame, que pretendia achar numa palavra do Evangelho a justificação de todos os seus horrores. Quem era esse Nicolau, que lhe dava o nome? Seria, como pretendia São Jerônimo depois de outros, o diácono de mesmo nome, eleito com Estevão depois da Pentecostes; e dever-se-á ver ali o primeiro exemplo dessas quedas, que de alturas quase celestes, precipitam aos abismos da perversão, homens consagrados (8).

É provável que se trate de outra pessoa. Mas seja qual for o chefe dos Nicolaítas, o que São João nos diz de suas dissoluções confirma bem o que a história nos revelou. O nicolaísmo era um sensualismo ligeiramente velado por símbolos gnósticos. Uma das máximas da gnose era que os iniciados à ciência transcendente, escapando completamente à dominação dos poderes maus, não contraíam mácula alguma pelas ações carnais; e o que sabemos de certas práticas da seita nicolaíta coincide perfeitamente com esses princípios cômodos. À sombra do templo de Diana, às margens indolentes do Caistro e do Meandro cujos encantos deslumbrantes os poetas cantaram, em frente à ilha de Cós, pátria de Vênus, esta seita ostentava máximas e costumes que não poderíamos repetir. Além disso, havia uns tantos Eons, espíritos a quem agradavam tais vergonhas, e dali teorias sensuais e ao mesmo tempo místicas que seriam incríveis se não se tivessem reproduzido em nossos dias (9).

De mais, não é bastante instrutivo ver-se desde o primeiro dia, as fáceis doutrinas da moral independente formular-se ao mesmo tempo que a negação da divindade de Jesus?

Entre as cidades situadas na costa da Ásia, Éfeso e Pérgamo foram as que mais tiveram que sofrer do contágio (10). O próprio apóstolo o atesta no Apocalipse. Confessa também o ódio que tinha a essa perversão de costumes, muito mais sedutora do que a das ideias. Eram, como ele o dizia, as profundezas de Satanás (11).

Que lutas não tem ele que sustentar contra este atrativo? Que milagres de santidade e de vida penitente puderam fazer retroceder este lodaçal de devassidão que ameaçava sufocar a semente do Evangelho? A história não no-lo diz, sabemos somente que a colônia de fiéis foi enérgica em presença da sedução. Tal é o testemunho que lhe deu o próprio Santo dos santos do Apocalipse:

“Conheço vossas obras, diz ele à Igreja de Éfeso, conheço vossas lutas, vossa paciência. Sei que não podeis suportar os maus; e experimentastes os que dizem ser apóstolos e não são, e os achastes mentirosos. Faço-vos a justiça de que detestais as obras dos Nicolaítas como eu mesmo as detesto” – Scio opera tua, et laborem et patientiam tuam, et quia non potes sustinere malos… quia odisti facta Nícolaitarum, quæ et ego odi (Ap 2, 2-6)

IV

O mal tomava diversas formas: em breve João se viu às voltas com um terceiro inimigo de Jesus: a mágica oriental, que invocava contra ele todas as suas forças ocultas. Esta nova concorrência parecia a mais perigosa, porque opondo milagres aos milagres, tomava o nome mesmo de Deus, de quem parecia receber o poder e achava um cúmplice na sede inextinguível do sobrenatural que devora as almas.

Éfeso foi o mais importante campo de batalha. Era ali que se viam aqueles telepáticos sujos, de olhos esbugalhados, cabelos soltos e em desordem, sacudindo a cabeça como se estivessem em convulsões, proferindo palavras entrecortadas que eram tidas como oráculos, e ostentando os andrajos, de preferência, às portas dos templos, de onde lhes veio em Roma o nome de fanáticos (12). Na classe instruída dessa mesma cidade, as práticas mágicas, as encantações, as evocações, todas as ciências ocultas, tornaram-se uma paixão. Convém lembrar que foi em Éfeso que São Paulo fez devorar pelas chamas livros de magia no valor de cinquenta mil dinheiros.

Ela não morrera. Os mágicos chegavam da Ásia e da Pérsia trazendo o sabeísmo, o culto dos gênios, os encantamentos da erva omomi cuja beberagem provocava o delírio divino. O Egito, todos os anos, desembarcava em seu porto, bandos de adivinhos, de astrólogos e de hierofantes. Os Caldeus vinham vender-lhe o segredo do futuro pela combinação misteriosa dos algarismos e a conjunção dos astros. Era ali que, segundo o relatório de Clemente de Alexandria, letras cabalísticas, chamadas letras efésias eram reputadas pela sua maravilhosa virtude curativa ou divinatória (13). Viam-se escritas por toda parte, no pedestal da estátua de Ártemis, em roda da cintura e sobre o seu diadema. Traziam-nas gravadas como um talismã em anéis sagrados, dos quais consideravam como dever nunca se separarem. Nem os decretos de Augusto, nem a repressão violenta, puderam moderar esse delírio perigoso para a razão pública, e todos os espíritos nele se precipitavam com inquieto frenesi, quando desembarcou em Éfeso, o mais famoso dos mágicos daquele tempo.

Apolônio de Tiana vem então opor os seus falaciosos prestígios aos milagres dos apóstolos, e suas pomposas virtudes à santidade cristã. Só havia ainda este terreno onde o antagonismo do céu e da terra não se haviam encontrado e travado combate.

Mas quem era este homem? Qual o papel que representou ou o que lhe atribuíram? Que fé merece a sua história? (14)

Havia dois séculos que irradiava na história a figura imponente de Jesus Cristo, lançando um brilho que fazia empalidecer todas as outras glórias. Por mais que se quisesse fechar os olhos à luz, esta incomparável beleza da natureza humana e da natureza divina unidas numa só pessoa, o puro exemplar de um sábio que era ao mesmo tempo o tipo eminente do Justo, o legislador do mundo que era também seu Salvador pelo próprio sangue, este Deus, enfim, que era o mais doce como o mais humilde dos filhos dos homens, impunham admiração sem todavia desanimar a inveja. Era uma superioridade que se não podia desconhecer: quiseram contrafazê-la, e a filosofia procurou um concorrente que pudesse opor vitoriosamente a Jesus.

Um sábio da Capadócia, chamado Apolônio, existira no tempo dos apóstolos. Seu primeiro biógrafo, Moeragenes, citado por Orígenes, tinha-o como poderoso encantador; Dião Cassio citava uma predição dele; Caracalla falava em exigir-lhe um santuário; a imperatriz Julia, esposa de Severo, desejara que lhe escrevessem a história; Flávio Filóstrato pôs mãos à obra e apresentou-lhe um romance.

A história de Apolônio, escrita por Filóstrato é uma falsificação da vida de Jesus Cristo. Ali não lhe é feita nenhuma referência e nisso nota-se mais uma habilidade. Mas inúmeras passagens traem a intenção do autor. O nascimento de Cristo tinha sido anunciado a Maria por um anjo; o deus egípcio Proteu aparece igualmente à mãe do encantador para lhe revelar a glória futura de seu filho. Muitos sinais tinham honrado o presépio de Jesus; notam-se semelhantes no berço do grande homem. O menino de Nazaré ia todos os anos ao templo, onde causava admiração aos doutores: o jovem Apolônio, assíduo nos templos, ali mostra uma ciência ainda mais admirável. Jesus lia nos corações, o mágico conhece o segredo dos pensamentos; ele descobre um crime secreto de um Siciliano, assim como Jesus penetra o mistério da vida da Samaritana. Jesus é Deus e homem: Eunápio reclama esse título para o herói sobre-humano de Filóstrato. Jesus fez milagres, Apolônio os fará ainda mais admiráveis, pois a ficção não sabe falsificar sem que exagere, e por ali mesmo a invenção se trai. Jesus ressuscitou milagrosamente a filha de Jairo e o filho da viúva; em Filóstrato, há um jovem de Roma cujo cortejo fúnebre Apolônio encontra e que restitui à sua mãe. Os possessos ficam curados, os demônios são forçados a se denunciar pela sua voz. A história de Empusa, noiva de Menippus, um discípulo de Apolônio, libertado por ele, é a imitação de uma narrativa do Evangelho de São Lucas. Enfim, como o Homem-Deus, é também por um de seus discípulos, o cobiçoso Eufrates, que o filósofo é vendido: como ele, encara resolutamente os juízes, certo da sorte que lhe é reservada. Como ele é abandonado; como ele, sofre os ultrajes dos tiranos. Enfim, para que nada falte a esse disfarce, o filósofo, que se julga estar morto, aparece entre os seus; mostra-se aos amigos, instando para que o toquem, a fim de terem a certeza de que não é um espectro fugido do reino das sombras.

Ao lado dessas semelhanças completamente artificiais, havia, porém, entre o Evangelho e o livro de Filóstrato a distância infinita que separa os romances do homem da história de Deus (15). Os pobres inventores não tinham sabido fazer de seu sábio ideal, nem ao menos um homem vulgarmente honesto. Ou muito alto ou muito baixo, esse tipo não atinge ou não ultrapassa as medidas. É que a medida de Deus não está nas mãos do homem, para que ele possa assim talhar uma figura conforme a sua fantasia; e não há nada melhor para pôr em relevo a excelência do Evangelho, do que esta pobre imitação, que serve de contraprova à sua divindade.

O ensino deste suposto rival de Jesus Cristo, mostrava da mesma maneira uma falsificação inepta do Evangelho. Sua doutrina era a do Pitagorismo. Tinha tendências a voltar ao culto primitivo da natureza universal, cujas forças múltiplas recebiam adoração sob tantos nomes e tantas formas. Sua moral pregava a abstinência, o silêncio, o desprendimento, a guerra, a concupiscência. Era o código completo dos cristãos, menos a base e o vértice, a humildade e a caridade.

Não seria possível vulgarizar semelhante doutrina? Não se poderia tentar para a filosofia o que os apóstolos faziam para a revelação? Tanto quanto se possa crer de seu historiador, Apolônio teve esse sonho. Como Plotino, parece que mais tarde, quis reunir as antigas crenças para fazer voltar a consciência pública à uma moral mais pura, e os cultos degenerados a formas mais simples. Podia ser isto um erro generoso, e não me posso esquecer de que São Jerônimo, e mais tarde Sidônio Apolinário lhe ficaram gratos por isso; mas não deixava de ser um erro. Obra semelhante não cabe ao homem. Abandonada a si mesma, à nenhuma inspiração divina se apegando, não incitando a nenhuma perspectiva de felicidade, impondo sacrifícios sem compensações, exigindo esforços que esperança alguma excitava, faltava a esta moral uma alavanca e uma sanção. Por isso, ruiu tudo por terra. A tentativa começada por Apolônio, continuada mais tarde por Plotino e Porfírio, perdeu-se pela afetação, na esterilidade e no ridículo; e dela só ficou a lembrança de um frágil sonho de orgulho, feito para desanimar aqueles que querem reformar o mundo sem Deus, com a pretensão de fazê-lo melhor do que Ele o fez.

Agora, quais são, ao menos, as grandes linhas dessa história? Que verdade se destaca desse amontoado de fábulas com que Filóstrato sobrecarregou a vida de seu herói?

Depois de ter passado os primeiros anos na pequena cidade de Tiana, na Capadócia, seu berço, cedo foi Apolônio para as escolas do Tarso. Ali foi que o seduziu o caráter místico da escola de Pitágoras, e, separando-se da chusma de estudantes turbulentos, começou a levar aquela vida solitária, pessoal e estranha que devia dar-lhe todo o prestígio e as honras do mérito.

Observando, portanto, durante alguns anos o silencia prescrito aos pitagóricos, repartiu a pequena fortuna entre a irmã e os pobres, e, em seguida, vestido unicamente com uma túnica de linho, pôs-se a percorrer, sucessivamente, a Pérsia, Babilônia, as Índias, o monte Athos, Antioquia, Chipre, a Grécia, entretendo-se com os brahmas e os mágicos, os filósofos e os sacerdotes, sondando todos os mistérios da ciência e da natureza, arrancando-lhe segredos que fazia depois passar por fenômenos divinos, e desta maneira maravilhando e fascinando as multidões, eternamente ávidas de novidades, de prodígios e revelações.

Uma grande reputação de sábio e de taumaturgo precedera-o, portanto, quando chegou a Éfeso. Ali teve acolhida digna de sua fama

«Não houve, disse Filóstrato, operário nem homem de condição mais baixa e vil que não lhe viesse ao encontro, deixando o trabalho para lhe ver a face. Seguia-o tão grande multidão de povo, que era quase impossível chegar-se perto; uns, maravilhados com sua ciência, outros, com a majestade de seu porte; uns, pela sua maneira austera de vestir, outros, pelo seu estranho vestuário, e a maior parte, pelo conjunto de todas estas coisas, das quais se entretinham entre si de diversos modos» (16)

Entre o esplendor de que se rodeia o impostor e o silêncio que encobre no seio mesmo dessa cidade, o nome e a obra de João, há um destes contrastes que são a eloquência da história.

Em que ano se realizou esta entrada triunfal do pitagórico? No livro de Filóstrato falta por completo qualquer cronologia. Mas, os mais sérios analistas, tendo Baronio à frente (17), dizem que a estada de Apolônio em Éfeso, foi no tempo de São João.

Foi-lhe de pouca duração ali a estada, e o entusiasmo do povo arrefeceu prontamente. Dever-se-á atribuir esta desconsideração à influência secreta da colônia cristã? João teria contribuído para isso, esclarecendo os crédulos e desmascarando o impostor? Filóstrato diz apenas que seu herói encontrou grande oposição. Depois, suas virtudes não foram tão bem provadas como quisera fazer crer o seu panegirista. Alguns, como Eufrates, notaram que a pobreza austera era toda fingida, e denunciava um esperto negociante sob a capa do filósofo.

Orgulho pedantesco corrompia-lhe as virtudes.

«Quando eu era moço, dizia, procurava a verdade, agora que a possuo, devo ensiná-la. Um sábio deve falar como legislador e impor ao público a doutrina que prega»

— «Não recebo ordens de ninguém, dizia alhures; sou eu que me mando a mim mesmo»

E um dia que um peageiro do Eufrates, perto de Babilônia, lhe perguntou na passagem, o que trazia consigo, o soberbo filósofo respondeu:

«Levo comigo a justiça, constância, sabedoria, temperança, modéstia, paciência, magnanimidade, continência e coragem…» (18)

Tal era o homem que mais tarde o sofista Hierócles não temeu comparar Àquele que era «o manso e humilde de coração!». O povo que a princípio correra às suas lições, acabou vendo nele apenas um charlatão de sabedoria. Apolônio abandonou então a cidade. O seu historiador deixa perceber que a peste, que começava a grassar em Éfeso, não foi estranha a sua retirada; refugiou-se na cidade de Esmirna que lhe pedia leis.

Era difícil conciliar semelhante fuga com o desprezo pela morte que professava o filósofo. Também, pouco tempo depois, uma deputação fê-lo voltar a Éfeso, onde foi intimado a manifestar sua ciência indicando a causa da calamidade que assolava a cidade e dando-lhe o remédio.

Conheceu-se então de que espírito era esse homem. O adivinho respondeu por uma dessas crueldades, que revelam a inspiração daquele que a Escritura chama o primeiro homicida. Havia em Éfeso um velho, muito conhecido, que esmolava na praça pública e nas portas dos templos. Quando outrora, um mendigo se dirigira à São Pedro e à São João, na porta do templo de Jerusalém, estes o haviam socorrido, estendendo-lhe a mão e curando-o. Mas, o que era um mendigo para esta antiguidade, cuja máxima, dizia que, ajudar semelhante gente era fazer um duplo dano a si mesmo e ao pobre, ao qual se prolongava a miséria prolongando a vida? (19)

Lembrando-se, portanto, que outrora os grandes adivinhos Calcas, Tirésias, o próprio Epimênide sacrificavam uma vítima humana nos flagelos públicos, Apolônio pensou nada fazer de melhor do que pedir a morte desse velho; e, mostrando-o ao povo como o gênio da peste, ordenou que o apedrejassem, para acalmar os deuses. «Ora, como ficassem todos espantados, conta o seu historiador (20), achando enorme crueldade atacar um ente tão miserável e maltrapilho, como esse pobre mendigo, que vivia de esmolas e que implorava de mãos postas a sua misericórdia e piedade, com lamentações dignas de compaixão», o próprio filósofo começou a execução. Seu exemplo foi seguido; caíram sobre o inocente; e quando o infeliz esmagado sob uma saraivada de pedras, volvia os olhos para Apolônio, suplicando-lhe ou amaldiçoando-o:

«Vejam, dizia ele, excitando a multidão, esta chama do olhar: é o olhar do demônio, é o fogo do inferno»

E dava a entender que esse assassinato seria a salvação da cidade.

Foi, ao contrário, a ruína de Apolônio. O docente e a doutrina acabavam de julgar-se a si mesmos, e a desumanidade cruel do filósofo preparou ao apóstolo da caridade uma bela vitória.

A essas práticas homicidas, o apóstolo São João opunha o preceito do amor; não cessava de repetir:

“Meus filhinhos, aquele que diz estar na luz, e odeia a seu irmão, está ainda nas trevas. Aquele que ama a seu irmão permanece na luz, e nele não há escândalo. Aquele que não ama a seu irmão caminha nas trevas; não sabe para onde vai, porque as trevas lhe cegaram os olhos… Aquele que não é justo e não ama a seu irmão, não é de Deus. Foi por isso que, sendo do maligno, Caim matou a seu irmão. E por que o mato? Porque suas obras eram más e as de seu irmão justas… Aquele que odeia seu irmão é homicida. E bem sabeis que nenhum homicida tem a vida eterna” – Qui odit fratrem suum in tenebris est usque adhuc. Qui diligit fratrem suum, in lumine manet, et scandalum in eo non est… Omnis qui non est justus non est ex Deo, et qui non diligit fratrem suum. Non sicut Cain, que ex maligno erat et occidit tratrem suum. Omnis qui edit fratrem suum homicida est (1Jo  11, 9-11; 10-15)


Referências:

(1) Philosophoumena, pag. 256

(2) São Jerônimo, t. II, Epist, LXXX, página 341

(3) H. (Philosophumena, p. 237)
V. Santo Irineu, I, XXV

(4) Santo Inácio, ad Smyrna., édit, Cotellier, p. 35

(5) Os Philosophumena, lib. V. c. VIII, p. 152, dizem que eles explicavam as palavras do Salvador num sentido alegórico:

«Se não comerdes minha carne e não beberdes meu sangue, etc.»

(6) Santo Inácio, ad Smyrna., ibid., VI, p. 35

(7) Santo Irineu, lib. III, c. III, p. 234.
Euseb. lib. III, cap. XXVIII, p. 100.

«Irenaeus ait sé à Polycarpo accepisse, Joannem apostolum cùm aliquandô in balneum lavaudi causa introisset, et Cerinthum intùs esse dedicisset, statim ex eo loco fugá se proripuisse cum ne tectum idem cum Cerintho subire sustenirét; hortatum que esse comités suos ut idem facerent: Fugiamus, inguit, ne balneum corruat in quo Cerinthus est veritatis inimicus»

Santo Epifânio contando este fato troca Ebion por Cerinto, Eusébio e Teodoreto seguem a narrativa de Santo Irineu.

(8) Os que atribuem esta heresia infame ao diácono Nicolau, são:

Santo Irineu, liv. III, c. XXVII, pág. 128

Tertuliano, De Praescript., c. LXVII, p. 205)

São Hipólito em Photius, Biblioth., p. 178

São Hilário, in Math., c. XXV, p. 178

São Gregório de Nissa, in Eun. Liv. II, t. II, p. 70

São Jerônimo (Epist. I, p. 4)

Cassiano (Collat. CVIII, c. XVI, p. 596)

São Gregório (in Evang. XXXVIII, pág. 100)

Os que os desculpam são:

Santo Inácio (Epist. ad Trollens., p. 78; ad Philadelph, p. 202)

São Clemente de Alexandria, Stromat., p. 436

Eusebio N. E., lib. III, c. IX

Santo Agostinho Homil. V, pág. 7

Clement d’Alexandrie dit positivement: J’ai appris qu’il n’avit jamais eu la compagnie d’aucune autre femme que la sienne. Et pour son fils et ses filles, qui vécurent fort longtemps, ils ont toujours conserve leur chasteté et leur virginité tont entiêre.

(9) E. Philosophoumana p. 258

Santo Irineu, contra Hœres XXVII

Santo Epifânio, Hœres. XXV.

Grande número de teólogos mormente na Alemanha, pretendem que os Nicolaítas são idênticos aos Balaamitas. Balaam, em sua etimologia Balal perder e am povo, tem a mesma significação que Nicolau.

M. l’abbé le Hir (art. sur les Trois têmoins celestes, Etnd. relig. sept, 1868) os identifica aos Naassenianos, pág. 388

(10) Por ordem de Deus diz o Anjo de Pérgamo:

«Scio abi habitas, ubi sedes est satanae…; habes ibi tenentes doctrinam Balaam, habes et tu tenentes doctrinam Nicolaitarum» (Ap 2, 12-15)

(11) Ap 24. O autor dos Philosophumena nos diz deles: Depois chamaram-se gnósticos, pretendendo serem os únicos a conhecer as profundezas (Lev. V. c. VIII)

(12) De fanum, templo

(13) Anaxitas apud. Athen., XII, 70. Clem. Alex. Stromat

(14) V. sobre Apolônio de Tiana:

Bruker, Hist. critiq. philos., aol. II. p. 98

Ritter. Gesch. der Phil., vol. IV, p. 528

Schae 11, Hist. de la iittér, grecq., t. V, p. 58

(15) V. Ellies Dupin, Hist. d’Apollonius de Tyane convaicue de fausseté. Entre os antigos v. Euseb. Adver. Hieroclem

(16) Philostrato, Vie d’Apollonius, trad. de Blaise de Vigenére, liv. I, ch. IV, p. 104, Paris 1611

(17) Baron. Annal. eccl., an. 96, pág. 742

(18) Philostrate, Apollon. de Tyane, liv. I, ch. IV

(19) Iliud quod dat perdit, et illi producit vitam ad miseriam (Plaut. Trinummus, act. II, v. 58, 59)

(20) Philostrate, Vie d’Apollonius, liv. I c. IV.

Voltar para o Índice da Biografia do Apóstolo São João, de Mons. Baunard

(BAUNARD, Monsenhor L’abbé Loui. O Apóstolo São João. Rio de Janeiro, 1974, p. 238-261)