

Que aquelas trevas foram causadas pela falta da luz solar, declara-o expressamente São Lucas (23, 45): E o Sol escureceu-se, diz ele. Tem, porém de desatar-se nesta passagem três nós de dificuldades, pois os eclipses do Sol acontecem na Lua nova, quando ela se mete de permeio entre ele e a Terra, mas isto não pode acontecer na ocasião da morte de Cristo, por não haver então conjunção da Lua com o Sol, como sucede na Lua nova, a Lua estava então oposta ao Sol, como sucede na Lua cheia, pois era então a Páscoa dos Judeus, que segundo a Lei começava no dia 14 do primeiro mês. Além disto, ainda quando houvesse conjunção da Lua com o Sol durante a Paixão de Cristo, não podiam as trevas durar três horas, isto é, desde a sexta até a nona; pois não pode um eclipse do Sol durar tanto tempo, principalmente sendo total, que obscureça toda a sua luz, é esta obscuridade se possa chamar trevas; pois a Lua tem mais celeridade de movimento que o Sol, e por isso não lhe pode interceptar toda a luz senão por curtíssimo espaço, porque começando a retirar-se logo, deixa ao Sol alumiar a Terra com o seu costumado fulgor."Desde à sexta hora toda a terra se cobriu de trevas até à hora nona, e perto desta, Jesus clamou: Eli Eli lammá sabactáni: isto é — meu Deus, meu Deus, porque me desamparaste"
Isto cumpriu com todo o rigor possível a Bem-aventurada Virgem; pois estava junto da Cruz, sofrendo a maior dor com a maior constância. Aquela dor era a prova do sumo amor a seu Filho, pendente da Cruz; aquela constância asseverava a sua muito submissa obediência a Deus: doía-se de que seu Filho inocente, que afetuosissimamente amava, fosse atormentado de cruelíssimas dores; mas nem por isso a elas obstaria por palavras ou por obras, ainda que pudesse, porque sabia que Ele padecia aqueles martírios por determinação e presciência de Deus Pai (At 2)."Quem ama seu filho ou filha mais do que a mim, não é digno de mim" (Mt 10)
Foi a origem desta segunda palavra haverem sido dois ladrões condenados ao mesmo suplício da Cruz, e estar cada um pendente na sua, um à direita, outro à esquerda de Cristo, e agravar um deles os seus passados crimes, injuriando o Redentor, dizendo-Lhe, arguindo-o de nada poder:"Amém. Hoje estarás comigo no Paraíso" (Lc 23, 39)
Ora São Marcos e São Mateus dizem (Mt 27; Mc 15), que os ladrões, crucificados com Cristo lhe exprobravam o seu pouco poder, porém o que se deve entender, é, que aqueles Evangelistas empregaram o número plural por singular; o que é freqüente na Sagrada Escritura, como observou Santo Agostinho nos Livros da uniformidade dos Evangelistas (1): pois o Apóstolo escrevendo aos hebreus a respeito dos profetas, diz (Hb 11, 33-37): Açaimaram as bocas dos leões; foram apedrejados, foram serrados, e apesar disto, quem açaimou as bocas dos leões, foi só Daniel; só Jeremias foi apedrejado; e serrado só Isaías. A isto se deve acrescentar, que São Mateus e São Marcos não dizem tão claramente que ambos os ladrões insultaram Cristo, como São Lucas explicitamente escreve (Lc 23, 39): Um dos ladrões que com ele foram crucificados, lhe dirigia impropérios; acrescendo mais, que não há motivo nenhum para o mesmo ladrão ora O insultasse, ora O louvasse."Se és Cristo livra-te dos tormentos, e a nós também"
Com esta passagem da sua epístola dá ao Apóstolo a conhecer, que nós pelo mistério da Cruz podemos saber que a grandeza da caridade de Cristo é tamanha, que excede todo o saber humano, por ser maior do que a força da nossa inteligência pode compreender, pois nós, quando sofremos alguma grande dor, ou dos olhos, ou dos dentes, ou da cabeça, ou de outra alguma parte, tanto dela nos deixamos dominar, que a mais nada damos atenção; e por isso nem recebemos amigos, que venham visitar-nos, nem outros indivíduos, que por diversos motivos nos queiram falar."E conhecer também a caridade de Cristo, que excede todo o entendimento" (Ef 3, 19)
Cristo, Jesus, Verbo do Pai Eterno, e de quem seu mesmo Pai disse claramente: Ouvi-o (Mt 17), e, que de Si mesmo disse também claramente: Um só é o vosso Mestre, o Cristo (Mt 23), para desempenhar cabalmente a Sua missão, não só nunca deixou de ensinar, enquanto viveu; porém, mesmo da cadeira da Cruz fez uma pregação curta, mas ardente, proveitosíssima, de muita eficácia e inteiramente digníssima de ser recolhida pelos cristãos no íntimo do coração, de lá ser guardada, meditada e posta em prática. A primeira sentença é esta: Jesus então dizia: Meu Pai perdoa-lhes, pois não sabem o que fazem (Lc 23, 34), a qual quis o Espírito Santo, que como nova e insólita fosse profetizada por Isaías naquelas palavras:"Meu Pai perdoa-lhes; não sabem o que fazem" (Lc 23, 34)
Com quanta verdade o Apóstolo São Paulo, disse (1Cor 13, 5): A caridade não busca os seus próprios interesses, pode facilmente conhecer-se da ordem daquelas sentenças; pois delas, três dizem respeito ao bem dos outros, três ao bem próprio, e uma é comum, o Senhor, porém, teve primeiramente cuidado dos outros, e em último lugar de Si."E rogou pelos transgressores" (Is 53, 12)