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“Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste”

Capítulo 13: "Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste"

Explica-se literalmente a quarta palavra

Expusemos no livro antecedente as três primeiras palavras, que Nosso Senhor pronunciou da cadeira da Cruz perto da hora sexta pouco depois de crucificado. Neste exporemos as quatro, que depois das trevas e silêncio de três horas o mesmo Senhor, e da mesma cadeira, próximo a morrer, pronunciou bradando. Parece-me, porém necessário dizer antes, que trevas foram aquelas de que foram produzidas, e para que fim; trevas que separam as primeiras três palavras das quatro últimas; pois diz São Mateus (27, 46):

“Desde à sexta hora toda a terra se cobriu de trevas até à hora nona, e perto desta, Jesus clamou: Eli Eli lammá sabactáni: isto é — meu Deus, meu Deus, porque me desamparaste”

Que aquelas trevas foram causadas pela falta da luz solar, declara-o expressamente São Lucas (23, 45): E o Sol escureceu-se, diz ele. Tem, porém de desatar-se nesta passagem três nós de dificuldades, pois os eclipses do Sol acontecem na Lua nova, quando ela se mete de permeio entre ele e a Terra, mas isto não pode acontecer na ocasião da morte de Cristo, por não haver então conjunção da Lua com o Sol, como sucede na Lua nova, a Lua estava então oposta ao Sol, como sucede na Lua cheia, pois era então a Páscoa dos Judeus, que segundo a Lei começava no dia 14 do primeiro mês. Além disto, ainda quando houvesse conjunção da Lua com o Sol durante a Paixão de Cristo, não podiam as trevas durar três horas, isto é, desde a sexta até a nona; pois não pode um eclipse do Sol durar tanto tempo, principalmente sendo total, que obscureça toda a sua luz, é esta obscuridade se possa chamar trevas; pois a Lua tem mais celeridade de movimento que o Sol, e por isso não lhe pode interceptar toda a luz senão por curtíssimo espaço, porque começando a retirar-se logo, deixa ao Sol alumiar a Terra com o seu costumado fulgor. Demais, não pode nunca acontecer que o Sol pela sua conjunção com a Lua, deixe em escuridão toda a Terra, porque a Lua é menor que o Sol e mesmo do que a Terra, não podendo por isso com a sua interposição eclipsar o Sol de modo que toda a Terra fique às escuras. Se, porém alguém disser que os Evangelistas disseram que a eclipse escureceu toda a Terra, se referem a toda a terra da Palestina, e não a toda a Terra em geral; essa opinião refutasse facilmente, com o testemunho de São Dionísio Areopagita, que, escrevendo a São Policarpo, afirma que viu aquele eclipse do Sol e trevas horríveis em Heliópolis no Egito. Faz também menção do mesmo eclipse o historiador Flegon, grego e gentio, dizendo:

«No quarto ano da Olimpíada de centésima segunda aconteceu um grande eclipse do Sol, como ainda não tinha havido, à hora sexta o dia tornou-se tão escuro, que se viam as estrelas»

Este historiador não escreveu na Judeia: citam-no Orígenes contra Celso (1) e Euzébio na Crônica do ano de Cristo 33. O mesmo certifica Luciano mártir, dizendo:

«Procurai nos vossos anais, e neles achareis que no tempo de Pilatos um dia se converteu em trevas, fugindo o Sol»

Refere estas palavras de São Luciano Rufino na História Eclesiástica de Euzébio, que ele traduziu em latim (2). Também Tertuliano no Apologético e Paulo Orozio na sua História (3), e todos dizem que aquele eclipse fora visto em outras partes do mundo, e não somente na Judeia. Estas controvérsias, porém tem uma explicação fácil, pois o que no princípio se dizia do eclipse do Sol, que costuma ser não na Lua cheia, mas na Lua nova, é verdade, quando o eclipse é natural, porém o eclipse na morte de Cristo foi singular, e prodigioso, porque só pode ser produzido por Aquele que criou o Sol e a Lua, o Céu e a Terra, pois diz São Dionísio no lugar citado, que ele e Apolophanes viram perto do meio dia a Lua correndo para o Sol com um movimento extraordinário e velocíssimo, e colocar-se abaixo dele, conservando-se assim até à hora nona; e que depois pelo mesmo caminho voltará para o seu lugar ao Oriente.

Quanto à outra objeção que se fazia, que um eclipse do Sol não podia durar três horas, de modo que toda ela estivesse o mundo em trevas, responde-se que assim é verdade no eclipse natural e ordinário; mas que aquele eclipse não foi efeito das leis da natureza, porém da vontade do Onipotente, que assim como pôde fazer ir a Lua, extraordinariamente com uma velocíssima carreira do Oriente para o Sol, e voltar à sua posição passadas três horas; também pôde fazer que ela se conservasse aquele tempo abaixo do Sol, quase sem movimento, não andando nem mais nem menos do que ele.

Finalmente a outra objeção, que não pôde ser visível em todo o Mundo aquele eclipse, porque a Lua é muito menor que a Terra, e muito menor também que o Sol, admitimo-la, por ser muito verdade que assim não pode ser só pela interposição da Lua entre o Sol e a Terra, mas o que a Lua não pôde fazer, fê-lo o Criador do Sol e da Lua, deixando de cooperar com o Sol na alumiação da Terra; pois nada podem fazer os objetos da criação sem o poder e cooperação do Criador; não se podendo admitir, que aquelas trevas, que escureceram todo o Mundo, fossem produzidas por negras e densas nuvens, como alguns dizem; constando por testemunho dos antigos que, durante aquele eclipse e aquelas trevas, se viram as estrelas no Céu, visto que as nuvens condensadas não só podem escurecer e escurecem o Sol, mas mesmo a Lua e as estrelas.

Costumam apresentar-se várias causas, porque Deus quis que na Paixão de Cristo houvesse aquelas significativas trevas: mas são duas as principais. A primeira, para significarem a maior possível cegueira do novo Judaico (é de São Leão no discurso décimo quarto da Paixão do Senhor), que ainda dura e durará, segundo o vaticínio de Isaías (60), que, falando do princípio da Igreja, diz: «Levanta-te, esclarece-te, Jerusalém, porque chegou a tua luz, e a glória do Senhor nasceu sobre ti; porque as trevas cobrirão a Terra, e a cerração os povos»: quer dizer, densíssimas trevas envolverão a terra Judaica; e a cerração, que não é tão densa, e que facilmente se dissipa, envolverá os gentios. A segunda, para mostrar a grandeza do delito dos Judeus, como diz São Jerônimo (4): pois até ali os maus perseguiam, vexavam, e matavam os bons; então o atrevimento dos ímpios chegou a perseguir o mesmo Deus, feito homem, e a cravá-lO numa cruz: até ali os concidadãos tinham questões uns com os outros; destas passavam a desordens; das desordens aos ferimentos; dos ferimentos aos assassínios; então, porém, os servos e escravos insurrecionados contra o Rei dos homens e dos anjos, e com uma audácia incrível O crucificaram. Por isso todo o mundo se horrorizou, e o Sol, protestando contra tal atentado, ocultou os seus raios, encobriu toda a atmosfera de trevas horríveis.

Passemos às palavras do Senhor: Eli Eli lammá sabactáni. São estas palavras tiradas do princípio do Salmo 21:

“Meu Deus, meu Deus, valei-me, porque me abandonaste?”

Mas aquele valei-me, que está no meio do verso, foi acrescento dos setenta interpretes, e no texto Hebreu não estão senão as palavras, que o Senhor disse; só com a diferença de que as palavras do Salmo são todas hebraicas; e as proferidas por Cristo são alguma siríaca, língua de que os Hebreus usavam freqüentemente, pois os termos Talitha cumi (em português — Ergue-te, menina) e Epheta (em português — Sê atento, ou atenta) e algumas mais, que nos Evangelhos apareçam, são da língua Siríaca, e não da Hebraica. Queixa-Se, pois, o Senhor e queixa-Se bradando, de ter sido desamparado por Deus. Tanto uma como outra coisa deve ser brevemente explicada. O abandono de Cristo por seu Pai pode entender-se de cinco modos, dos quais um só é verdadeiro, pois havia no Filho de Deus cinco uniões, uma a natural e eterna da pessoa do Pai com a pessoa do Filho em essência; outra, nova, da natureza divina com a natureza humana na pessoa do Filho, ou, o que é o mesmo, da pessoa divina do Filho com a natureza humana. A terceira foi a união da graça e da vontade; pois Cristo foi cheio de graça e de verdade, e fazia sempre o que era do agrado de Deus, como Ele mesmo diz em São João (1 e 8); e a seu respeito não foi só uma vez, que seu Pai disse:

“Este é aquele meu querido Filho, em quem tenho posto toda a minha complacência” (Mt 3 e 17)

A quarta foi a união da glória, pois a alma de Cristo viu Deus desde a sua conceição. A quinta foi a união de proteção, da qual Ele mesmo diz:

“Quem me enviou está comigo, e não me deixou só” (Jo 8)

A primeira união é absolutamente inseparável e perpétua, porque é união em essência divina, da qual Ele mesmo diz: Eu e meu Pai somos um (Jo 8); e por isso não disse Cristo: Meu Pai, porque me abandonaste? Mas: Meu Deus porque me abandonaste? Porque o Pai não se pode dizer Deus do Filho senão depois da encarnação, e em razão dela. A segunda união também nunca se dissolveu, nem se pode dissolver, por que, o que uma vez tomou, nunca mais deixou; pois diz o Apóstolo:

“Não perdoou ao próprio filho; mas por nós todos o sacrificou” (Rm 8)

E o Apóstolo São Pedro:

“Cristo sofreu por nós, o havendo Cristo padecido na carne” (1Pd 2; 4)

O que tudo prova que Cristo, que foi crucificado, não era somente homem, mas verdadeiro Filho de Deus e Senhor. A terceira união igualmente se conserva, e conservará, pois morreu o Justo pelos injustos como diz São Pedro (1Pd 2); e nada nos teria aproveitado a morte de Cristo, se a união da graça se tivesse dissolvido. A quarta união não podia dissolver-se, porque não pode perder-se a bem-aventurança da alma, por ser o agregado de todos os bens. Era, pois a alma de Cristo, em virtude da sua parte superior, verdadeiramente bem-aventurada. Veja-se Santo Tomás, 3.a parte, questão 46, nº 8.

Resta por isto só a união da proteção que por pouco tempo se interrompeu, para poder ter lugar a oferenda do sacrifício cruento pela redenção do gênero humano, pois de muitos modos podia Deus Pai proteger Cristo, e não consentir na Sua paixão, assim o disse Cristo, quando no Horto estava fazendo oração:

“Meu, Pai, tudo te é possível, aparta de mim este cálice, mas não se faça o que eu quero, e cumpra-se a tua vontade” (Mc 14)

E, quando se dirigiu a Pedro:

“Acaso cuidas tu, que eu não posso rogar a meu Pai, e que ele me não auxiliará com mais de doze legiões de Anjos?” (Mt 26)

Podia mesmo Cristo, como Deus, livrar o Seu corpo das dores dos tormentos; por isso Ele diz:

“Ninguém me tira a minha vida: sacrifico-a eu” (Jo 10)

O que muito antes Isaías tinha profetizado, dizendo:

“Foi sacrificado, porque assim o quis” (Is 53)

A alma bem-aventura de Cristo podia finalmente comunicar ao corpo o dom da impassibilidade e da incorruptibilidade, mas foi da vontade do Pai, foi da vontade do Verbo, foi da vontade do Espírito Santo, permitir, para ser cumprido o decreto de todos três, que a força humana prevalecesse contra Cristo no tempo determinado: esta, pois, foi aquela hora da qual o Senhor disse aos que O iam prender:

“Esta é a vossa hora e o poder das trevas”(Lc 22)

Assim, pois, Deus abandonou seu Filho, quando permitiu, que a sua carne humana sofresse, sem consolação nenhuma, acerbíssimas dores. Cristo, bradando, deu conhecer este abandono; sem dúvida, para dar a conhecer a todos o avultado preço da redenção, pois até àquela hora tinha sofrido tudo com tanta paciência e resignação, que poderia acreditar-se, que se Lhe tinha paralisado a sensibilidade. Não se queixou dos Judeus, que O tinham acusado; nem de Pilatos, que O sentenciou à morte, nem dos algozes, que O crucificaram; não gemeu; não deu um grito; não deu a conhecer por sinal nenhum o martírio que sofria, estando, porém próximo à morte quis, que para o gênero humano pudesse avaliar o preço da redenção, e principalmente para que nós, seus servos, não fôssemos ingratos a tamanho benefício, fazer conhecer publicamente os tormentos da Sua paixão, e assim aquelas palavras:

“Meu Deus, porque me abandonaste?”

Não mostram em Cristo nem acusação, nem indignação, nem queixume, mas, como eu já disse, exprimem com a mais justificada razão, e na ocasião mais própria, a medida do quanto sofreu na sua Paixão.


Referências:

(1) Lib. 2.
(2) Lib. 9. cap. 6,
(3) Apolog. Oros. Lib. 7. cap. 4.
(4) Comment. in Mat.

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(BELARMINO, Cardeal São Roberto. As Sete Palavras de Cristo na Cruz. Antiga Livraria Chadron, Porto, 1886, p. 129-140)