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“Meu Pai, perdoa-lhes; pois não sabem o que fazem”

Capítulo I. "Meu Pai, perdoa-lhes; pois não sabem o que fazem". Explica-se literalmente a primeira palavra

Explica-se literalmente a primeira palavra de Cristo na Cruz

“Meu Pai perdoa-lhes; não sabem o que fazem” (Lc 23, 34)

Cristo, Jesus, Verbo do Pai Eterno, e de quem seu mesmo Pai disse claramente: Ouvi-o (Mt 17), e, que de Si mesmo disse também claramente: Um só é o vosso Mestre, o Cristo (Mt 23), para desempenhar cabalmente a Sua missão, não só nunca deixou de ensinar, enquanto viveu; porém, mesmo da cadeira da Cruz fez uma pregação curta, mas ardente, proveitosíssima, de muita eficácia e inteiramente digníssima de ser recolhida pelos cristãos no íntimo do coração, de lá ser guardada, meditada e posta em prática. A primeira sentença é esta: Jesus então dizia: Meu Pai perdoa-lhes, pois não sabem o que fazem (Lc 23, 34), a qual quis o Espírito Santo, que como nova e insólita fosse profetizada por Isaías naquelas palavras:

“E rogou pelos transgressores” (Is 53, 12)

Com quanta verdade o Apóstolo São Paulo, disse (1Cor 13, 5): A caridade não busca os seus próprios interesses, pode facilmente conhecer-se da ordem daquelas sentenças; pois delas, três dizem respeito ao bem dos outros, três ao bem próprio, e uma é comum, o Senhor, porém, teve primeiramente cuidado dos outros, e em último lugar de Si. Das primeiras três sentenças que dizem respeito aos outros, a primeira diz respeito aos inimigos, a segunda aos amigos, a última aos parentes. A razão desta ordem é a seguinte: a caridade socorre em primeiro lugar os mais necessitados, e estes eram então os inimigos; e nós também discípulos de tal Mestre, mais precisávamos de, que Ele nós instruísse a amarmos os nossos inimigos, o que é mais difícil e mais raro, do que amarmos os nossos amigos e parentes; amor, que de certo modo nasce conosco, conosco se desenvolve, e não poucas vezes se robustece mais do que deve ser. Diz, pois, o Evangelista: Jesus então dizia: aquele então designa o tempo e ocasião de orar pelos seus inimigos, e opõem palavras a palavras, e obras a obras, como se o Evangelista dissesse:

Eles crucificavam o Senhor, e à sua vista repartia os Seus vestidos; outros O escarneciam e insultavam-nO como perturbador do povo e mentiroso, e Ele, vendo e, ouvindo isto, e sofrendo dores, atrocíssimas de Suas mãos e pés, recentemente transpassados, retribuindo o mal com bem, dizia: Meu Pai perdoa-lhes

Chama-lhe Pai e não Deus, ou Senhor, porque bem sabia, que para isto mais se precisava do amor de pai, do que da severidade de juiz; e que, para comover Deus, certamente irado por tão grandes atentados era necessário empregar o carinhoso nome de pai. Assim aquele Pai parece significar isto:

«Eu, teu Filho no meio dos tormentos que estou sofrendo, perdoo; perdoa tu também, meu Pai, em atenção a mim, teu Filho; concede este perdão, que para eles peço, apesar de que o não merecem, lembra-te que também deles és Pai, tendo-os criado à Tua imagem e semelhança: não os excluas pois do Teu amor paternal, porque, ainda que filhos indignos, são Teus filhos»

Perdoa: esta expressão encerra a suma do pedido, que o Filho de Deus, como advogado dos Seus inimigos, dirige a seu Pai, e pode aquele termo perdoa referir-se tanto à pena como à culpa. Referindo-se à pena, foi esta súplica ouvida, pois merecendo os judeus por esta maldade ser gravissimamente punidos ou com fogo, que descesse do Céu e os consumisse; ou com um dilúvio, em que morressem afogados, ou com ferro e fome, que os exterminasse; passaram-se quarenta anos, sem serem castigados, e, se, entretanto aquela nação fizesse penitência, ficaria salva e livre: mas porque a não fez, determinou Deus, que imperando Vespasiano contra ela marchasse o exército romano, que destruiu a mais famosa cidade, fez morrer parte dos judeus à fome no cerco, passou à espada outros depois de tomada, outros os vendeu, outros fê-los escravos, e disseminou os outros por várias terras e países. Tudo isto tinha o Senhor predito; primeiramente pela parábola da vinha, e do rei, que preparava as bodas do seu filho; e depois bem manifestamente no dia das Palmas, chorando e lamentando (Mt 20 e 22; Lc 13 e 19). Quanto à culpa foi a sua súplica atendida, pois muitos, por merecimento dela, conseguiram de Deus a graça do arrependimento. Fazem parte deste número os que do Calvário se retiravam, batendo nos peitos (Lc 23); o Centurião, que dizia: Na verdade este Homem era Filho de Deus (Mt 27, 54) e muitos outros, que depois, ouvindo as pregações dos Apóstolos se convertiam, confessando quem tinham negado, e adorando quem tinham tratado com desprezo.

A razão, por que nem a todos foi concedida a graça do arrependimento, é, porque a súplica de Cristo era, conforme à sabedoria e vontade de Deus: o que por outras palavras diz São Lucas nos Atos dos Apóstolos:

“Creram todos os que haviam sido predestinados à vida eterna” (At 13, 48)

Lhes. Esta palavra designa aqueles para quem Cristo pediu indulgência; e parece serem os primeiros os que O crucificaram e entre si repartiram os Seus vestidos; e depois destes os que foram causa da Sua crucifixão; Pilatos, que O sentenciou; o povo, que gritou: Tira-O, tira-O, crucifica-O; os príncipes dos sacerdotes, e escribas que falsamente O acusaram; e, para subirmos mais alto, o primeiro homem, e toda a sua posteridade, que com os seus pecados originaram a paixão de Cristo, e assim o Senhor na Cruz pediu perdão para todos os Seus inimigos, e no número destes éramos incluídos também nós, segundo o dizer do Apóstolo:

“Sendo nós inimigos, fomos reconciliados com Deus pela morte de seu Filho” (Rm 5, 10)

Por isso todos nós, mesmo antes de virmos, a este mundo, somos incluídos naquele sacratíssimo Memento, com que, por assim dizer, Cristo, Sumo Pontífice, orou naquela sacrossantíssima Missa, que celebrou no altar da Cruz.

«Como retribuirás, minha alma, ao Senhor por tantas mercês que Lhe deves mesmo antes da tua existência? Viu o Senhor de piedade, que em algum tempo tu farias parte dos Seus inimigos; e sem tu O buscares, nem Lhe pedires, por ti pediu a seu Pai, para que te não fosse imputada a astúcia. Não seria justo que por isto tu te não esquecesses nunca de tão amável protetor, e que fizesses, quanto as tuas forças permitissem, para que nem uma só ocasião passasse, sem deixares de O servir? Não devias também em vista de um tão sublime exemplo aprender não só a perdoar de boa mente aos teus inimigos e orar por eles, mas também a incentivar os outros, quanto te for possível, a fazerem o mesmo?»

Não há dúvida de que assim deve ser, e isto, desejo eu e professo cumprir dando-me para tamanha empresa os auxílios da sua piedade aquele que tão heroico exemplo me deu.

Não sabem o que fazem. Para que a Sua intercessão parecesse razoável, atenua ou desculpa Cristo do modo, por que pode o delito dos seus inimigos. Não podia certamente desculpar nem a injustiça em Pilatos, nem a crueldade nos soldados, nem a inveja nos príncipes dos sacerdotes, nem astúcia e ingratidão no povo, nem os falsos testemunhos nos perjuros; e por isso só restava dar desculpa a todos pela ignorância; certamente, pois, como diz o Apóstolo (1Cor 2), se eles O conheceram, nunca crucificariam o Senhor da Glória: mas, posto que nem Pilatos, nem os príncipes dos sacerdotes, nem o povo, nem os executores, conhecessem que Cristo era o Rei da Glória; conheceu Pilatos, que Ele era um homem justo e santo, e, que por isso lhe tinha sido entregue por inveja pelos príncipes dos sacerdotes; e sabiam os príncipes dos sacerdotes, que Ele era sem dúvida o Cristo, prometido na lei, como diz Santo Tomás (1), pois nem podiam negar, nem negavam, que Ele fazia muitos milagres, que os Profetas tinham anunciado que o Messias havia de fazer. Conheceu finalmente o povo, que Cristo era inocentemente condenado, pois bem claramente lhe disse Pilatos em alta voz:

“Não acho nele crime algum. (…) Eu sou inocente do sangue deste justo” (Lc 23; Mt 27)

Não obstante, pois, não terem conhecido nem os judeus, nem os príncipes, nem a gente do povo que Cristo era o Senhor da Glória, contudo, se a malícia lhes não tivesse obcecado os corações, podiam conhecê-lO. Assim o diz São João:

“Mas, sendo tantos os milagres que fizera em sua presença, não criam nEle, porque Isaías disse: Obceca o coração deste povo, e ensurdece-lhe os ouvidos, para que, tendo olhos, não veja, e tendo orelhas, não ouça, e se converta, e eu o sare” (Jo 12, 37-40)

Nem aquela cegueira desculpa o cego, porque é voluntária, e concomitante, e não precedente: assim todos aqueles que pecam por malícia, laboram sempre em alguma ignorância, que os não desculpamos, porque não é precedente, mas concomitante. Bem, pois diz o sábio: Erram os que obram mal (Pr 24), e bem diz também o filósofo: Todo o mal é ignorante, e de todos os pecadores bem se pode dizer: Não sabem o que fazem, porque ninguém pode querer o mal, encarando-o como mal, pois o objeto da vontade não é coisa boa ou má, mas somente boa, e por isso, os que preferem o mal, sempre o preferem o mal, sempre o preferem debaixo da vista do bem, que se lhes representa, mais ainda: debaixo da aparência do maior bem, que então se possa conseguir. Isto é originado da perturbação da parte mais fraca, que obscurece a razão, e faz com que ela não veja senão aquele pequeno bem, que está no objeto do apetite; pois, quem delibera-se a cometer um adultério, ou a fazer um furto, nunca tal faria se não atendesse ao bem ou do deleite, ou da injustiça, e não fechasse os olhos da alma ao mal da torpeza daquele ou da injustiça deste. Por isso, todo o que peca se assemelha aquele, que desejando precipitar-se num rio, fecha os olhos antes de se atirar a ele, e só depois deles fechados se arremessa.

Do mesmo modo todo o que obra mal, aborrece o esclarecimento da razão, e labora em ignorância voluntária, que não desculpa, por isso mesmo que é voluntária. Mas, se tal ignorância não desculpa, como é que o Senhor diz: Perdoa-lhes, pois não sabem o que fazem? A isto se responde, que aquelas palavras podem entender-se em primeiro lugar a respeito dos crucificantes, os quais são prováveis que ignorassem completamente, não só a divindade de Cristo, mas também a Sua inocência; e que só fizeram o que fizeram em cumprimento do seu ofício: e a favor destes com toda a verdade disse o Senhor:

“Meu Pai perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem”

Em segundo lugar, se elas se entenderem a respeito de nós, que ainda não existíamos, ou a muitos pecadores ausentes, que certamente ignoravam o que então se estava passando em Jerusalém, com a mesma verdade disse também o Senhor:

“Não sabem o que fazem”

Se finalmente se entenderem em relação ao que presenciavam aquele ato, e sabiam que Cristo era o Messias, ou não ignoravam que era um homem inocente, há-se confessar-se, que a caridade de Cristo foi tão intensa, que quis atenuar do modo, porque pôde, o malefício dos seus inimigos, pois, ainda que aquela ignorância por si só não possa ter desculpa, com tudo algum motivo parece ter, posto que não de muito peso, pois muito mais grave seria o seu malefício, se neles se não dessem absolutamente ignorância nenhuma, e ainda que o Senhor não ignorava que aquela desculpa não era senão uma sombra dela, quis apesar disso empregá-la, para nós ficarmos conhecendo a Sua benevolência para com os pecadores, e quão gostosamente, mesmo a favor de Caifás e Pilatos, de melhor desculpa se aproveitaria se melhor e mais conveniente se pudesse excogitar-se.


Referências:

(1) In Coment. ad 2. c. prioris ad Corinthios

Voltar para o Índice de As Sete Palavras de Cristo na Cruz, de São Roberto Belarmino

(BELARMINO, Cardeal São Roberto. As Sete Palavras de Cristo na Cruz. Antiga Livraria Chadron, Porto, 1886, p. 27-37)