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Sermão da Providência

Sermão da Providência

Quarta-feira ou Sexta-feira da 2a Semana da Quaresma

Ms.t. XIII, 176. — Déforis, V, 242. —Lachat, IX, 151. — Gandar 134, – Gazier, 223. Bossuet pregou dois sermões da providência, o primeiro, em Dijon, com a assistência do duque d’Epernon, em 1656, e o outro seis anos depois, com a assistência de Luiz XIV.

Pregado no Louvre, com a assistência de Luiz XIV (no dia 8 ou 10 de março de 1662)

SUMÁRIO

Exordio. — Como  as muralhas de Samaria apenas serviram para fortificar a cidade santa que os samaritanos odiavam, recaem no ímpio as objeções deste contra a Providência.

Proposição e divisão.1.° Um conselho eterno e imutável oculta-se em todos os acontecimentos que o tempo parece desdobrar com uma tão estranha incerteza; 2.° a fé na Providência dá-nos luz suficiente para não nos admirarmos de coisa alguma, e força bastante para nada temermos.

1.º Ponto. Apesar da desordem que existe na humanidade, não pode ser o homem a única criatura em que se não fixa o olhar da Providência. O mundo é um quadro que deve ser convenientemente examinado, e os desígnios de Deus devem referir-se pela norma da eternidade.

2.º Ponto. — Como Deus tem em pouco apreço os favores temporais, devem os grandes homens parecer-nos desvalorizados. E como a causa primeira, sob o patrocínio da qual nos mantemos, encerra numa mesma ordem as causas inferiores, não devemos nós, portanto, temer estas.

Peroração. — Como no dia final nos é inútil a abundância em que tivermos vivido, se não santificarmos as nossas riquezas, sejamos em todo o tempo humildes e caritativos.

Filii, recordare quia recepisti bona in vita tua, Lazarus similiter mala; nunc autem hic consolatur, tu vero cruciaris

Filho lembra-te de que recebeste, bens em tua vida, e Lazaro apenas recebeu males; por isso ele agora é consolado, e tu atormentado (Lc 16, 25)

Diz-nos a História Sagrada (1) que o rei de Samaria mandou um dia edificar uma praça forte, que era o terror constante de todas as praças do rei da Judéia; e que este príncipe, tendo reunido o seu povo, reagiu por tal forma contra o inimigo que não só lhe arruinou a fortaleza, mas também empregou os materiais que a compunham para construir dois soberbos castelos com que fortificou as suas fronteiras.

Ora eu, meus senhores, aproveitando-me do exemplo dessa empresa militar, vou hoje procurar o meio de fazer uma coisa análoga ao que então se fez. Os libertinos firmaram o propósito de declarar guerra a Providência divina, e, os meios de combate mais enérgicos de que dispõem a distribuição dos bens e dos males, que parece injusta e irregular, sem distinção alguma entre os que são bons e os que são maus. Nesta anomalia é que os ímpios se entrincheiram como numa fortaleza inexpugnável, asseteando ambiciosamente a sabedoria que rege o mundo (2). Mas nós, que precisamos de combater os inimigos de Deus, devemos unir-nos todos e destruir as muralhas soberbas destes novos samaritanos.

Não satisfeitos com lhes provar que essa desigual distribuição de bens e males terrenos em nada ofende a Providência, demonstremos, pelo contrário, que foi ela quem a estabeleceu. Provemos com a própria desordem que há uma ordem superior que tudo regula por uma lei imutável; e edifiquemos as fortalezas de Judá com todas as ruínas das de Samaria. Tal é o tema deste discurso, que eu mais completamente desenvolverei (depois de havermos implorado, etc. Ave-Maria).

O teólogo oriental, São Gregório Nazianzeno (3) ao contemplar a beleza do mundo, em cuja estrutura Deus se afirmou tão sábio e tão magnificente, chama-lhe com muita elegância, na sua língua, o prazer e as delícias do seu Criador (4). Vira em Moisés que o divino Arquiteto, à medida que construía este grande edifício, lhe admirava todas as partes: Vidit Deus lucem quod esset bona – «Deus viu que a luz era sublime» (Gn 1, 4); que, depois de o ter construído, o exaltara, porque o achara «perfeitamente belo»: Et erantvalde bona (Gn 1, 31);e finalmente, que ficara de todo extasiado dom o espetáculo maravilhoso da sua própria obra.

Aqui não há semelhança possível entre Deus e os artistas mortais; porque estes, afadigando-se muito nas suas empresas e receando sempre os acontecimentos, anseiam por que a conclusão das suas obras os liberte do trabalho e lhes garanta todo o bom êxito possível.

Mas Moisés, examinando as coisas dum plano mais elevado, e prevendo que um dia os homens ingratos pudessem negar a Providência que rege o mundo, mostra-nos logo no princípio o imenso prazer que Deus sentiu em fazer esta obra-prima por suas mãos, para que esse prazer fosse para nós um penhor inabalável do desejo que ele devia ter em a dirigir, e não fosse permitido nunca duvidar de que ele desejasse governar o que fizera com tanto amor e o que propriamente julgara tão digno da sua sabedoria.

Deste modo, devemos compreender que este universo, é particularmente o gênero humano, é o reino de Deus, governado por Ele segundo leis imutáveis. E nós hoje vamos precisamente ocupar-nos do exame dos segredos dessa política celeste que rege toda a natureza, e que, encerrando na sua ordem a instabilidade das coisas humanas, não oferece menos irregularidades e menos conturbações do que a política terrena, cujos acontecimentos excepcionais e memoráveis decidem muitas vezes da sorte dos impérios.

Grande e admirável assunto é este, digno da atenção da corte mais augusta do mundo! Atendei, ó mortais, e escutai a palavra de Deus que vos vai comunicar os segredos do Seu governo, do alto desta tribuna, tomando-me a mim como intérprete dos Seus sábios ensinamentos, depois de me haver iluminado o espírito com a luz dos Seus oráculos infalíveis.

Pouco nos importa a nós, cristãos, conhecer a sabedoria que nos governa, se não nos soubermos domar a ordem dos seus conselhos. Se há arte para bem governar, também deve havê-la para bem obedecer. Deus comunica o Seu espírito de sabedoria aos príncipes (5) para saberem dirigir os povos, e dá aos povos inteligência para poderem ser dirigidos ordenadamente; isto é, além da ciência dominadora que ensina o príncipe a reger, há outra ciência subalterna que também ensina os vassalos a serem dignos instrumentos da direção superior. E é a relação destas duas ciências que mantem o corpo dum Estado pela correspondência do chefe com os seus membros.

Para estabelecer esta relação no império de Deus, assentemos hoje aqui em dois princípios. O primeiro é que, seja qual for a confusão, a desordem, ou até a injustiça que possa haver nos negócios humanos, e embora tudo pareça arrebatado pelo cego devastamento da sorte, devemos firmar bem no nosso espírito a ideia de que tudo neles deriva com uma certa ordem, tudo se dirige por meio de normas, porque há uma vontade eterna e imutável que se oculta em todos os acontecimentos que o tempo parece ir desdobrando com uma tão estranha incerteza. O segundo principio é que consultemos o nosso íntimo, e depois de termos perfeitamente compreendido qual o poder que em nós atua e qual a sabedoria que nos governa, estudemos os sentimentos que nos tornam dignos duma direção tão superior. Por esta forma, descobriremos, de harmonia com a mediocridade do espírito humano, não só o jogo e os movimentos da política sublime que rege o mundo mas também o uso e a aplicação dessa política, que, por ser divina, merece constituir todo o objeto deste discurso.

Primeiro Ponto

Quando penso na disposição confusa, desarmoniosa e irregular, das coisas humanas comparo-a muitas vezes a certos quadros que geralmente se expõem nas bibliotecas (6) dos curiosos para armar ao efeito. A simples vista apenas notamos traços informes e um misto confuso de cores, que mais parece o tentâmen dum aprendiz ou o brinquedo duma criança, do que o trabalho duma mão experimentada. Mas depois de alguém, que conhece o segredo de tudo, vos mostrar o espetáculo debaixo dum outro aspecto, imediatamente todas as linhas irregulares se harmonizam dum certo modo toda a confusão se desfaz, e então vedes um rosto, com os seus lineamentos e proporções, onde a princípio não havia uma aparência cívica de vigor humano. Tal é, meus senhores, a imagem natural do mundo, da sua confusão aparente e do seu equilíbrio oculto, que nunca poderemos observar verdadeiramente senão mirando-o pelo lado que nos mostra a fé em Jesus Cristo.

«Eu vi na terra uma desordem extraordinária, diz o Eclesiástico; vi que se não confia geralmente as carretagens aos mais expeditos, as transações aos mais ajuizados, e a guerra aos mais animosos; mas sim que é o acaso e a ocasião que por toda a parte dominam» – Nec velocium esse cursum, nec fortium bellum…, sed tempus casumquein omnibus (Ecl 9 ,2)

Vi, continua o mesmo Eclesiástico, que «tudo acontece do mesmo modo, tanto ao homem que é bom como ao que é mau, tanto ao que se sacrifica como ao que blasfema» – Quod universa aeque eveniant justo et impio, immolanti victimas et sacrificia contemnenti… eadem cunctis eveniunt (Ecl 2, 3). Quase todos os séculos lamentam ter visto triunfar a iniquidade e submeter-se a inocência; mas, como nem sempre assim sucede, algumas vezes se tem visto, pelo contrário, imperar a inocência e render-se a iniquidade. Que estranha confusão a deste quadro! Parece que as cores foram nele postas ao acaso, com o fim de, por assim dizer, manchar a tela ou o papel (7)!

O libertino irrefletido diz firmemente que não existe ordem no mundo; e, como consequência desta afirmação, diz que «não há Deus», ou que, pelo menos, esse Deus confia a vida humana aos caprichos da sorte: Dixit insipiens (in corde suo: Non est Deus) (Sl 52, 1).

Mas espera, infeliz! Não alargues o teu raciocínio numa questão tão importante, porque talvez te convenças de que o que parece confusão é uma arte invisível.

Se souberes analisar as coisas convenientemente, verás que desaparecerão todas as irregularidades, e que só haverá sabedoria onde imaginavas que havia desordem.

Sim, não duvides, infeliz; este quadro tem um lado especial por onde deve ser admirado. O próprio Eclesiástico, que nos descobriu a confusão, há de também mostrar-nos o lado por onde havemos de contemplar a ordem do mundo. Diz ele:

«Eu vi na terra a impiedade no lugar da razão, e a iniquidade no lugar que devia ocupar a justiça» – Vidi sub sole in loco judicii impietatem, et in loco justitiae iniquitatem.

Quer ele dizer que viu a iniquidade no tribunal, ou até mesmo no trono, onde só a justiça devia dominar. Não podia ela ascender mais alto ou ocupar um lugar imerecido.

Que poderia imaginar Salomão ao ver tão grande desequilíbrio? Que Deus abandonava as coisas humanas ao acaso, não cuidando de as governar com a razão Soberana? Pelo contrário. O que esse príncipe disse, ao ver tal subversão, foi isto:

«Eu ponderei logo firmemente: Deus sentenciará o justo e o ímpio, e então tudo será julgado» – Et dixi in corde meo: Justum et impium judicabit Deus, et tempus omnis rei tunc erit (Ecl 3, 17)

É este, meus senhores, um raciocínio digno do mais sábio dos homens. Ele vê no gênero humano uma extrema confusão, e no resto do mundo uma ordem encantadora. Acha que é impossível que a nossa natureza, única que Deus fez à Sua semelhança, seja também a única que deva ser confiada ao acaso. E por isso, verdadeiramente convencido de que deve haver ordem entre os homens, e não a vendo ainda estabelecida, necessariamente conclui que o homem tem qualquer coisa a esperar; e é nisto que consiste, cristãos, todo o mistério da vontade divina, porque é este o grande preceito de Estado da política celeste.

Deus quer que vivamos sempre na esperança perpétua da eternidade. Ao colocar-nos no mundo, estabeleceu-nos uma ordem admirável para mostrar que a Sua obra é dirigida com sabedoria; e expõe-nos de propósito uma desordem aparente para mostrar que ainda a não concluiu de todo. Para que é isto? Para que perpetuamente aguardemos o grande dia da eternidade, em que tudo se há de distinguir por meio duma decisão última e irrevogável, e em que Deus, separando novamente a luz das trevas – Et divisit lucem a tenebris (Gn 1, 4), colocará nos seus devidos lugares a justiça e a impiedade, por meio duma sentença final; «é então como diz Salomão, cada coisa será convenientemente julgada» – Et tempus omnis rei tunc erit.

Abri, pois, os olhos, ó mortais! E vede que é Jesus Cristo que vos fala neste admirável discurso, que fez em São Mateus, capítulo 6, e em São Lucas, capítulo 12, e do qual eu vou apresentar uma paráfrase.

Contemplai o céu e a terra, e a sábia economia do universo. Haverá coisa melhor delineada do que este edifício? Melhor organizada do que esta família? Ou mais bem dirigida do que este império? Esse poder supremo que construiu o mundo, e que nada fez que não fosse admirável, formou, pelo menos, umas criaturas melhores do que outras. Fez os corpos celestes imortais, e os terrestres perecíveis. Criou animais admiráveis pela sua grandeza; e criou os insetos e as aves que são quase desprezíveis pela sua pequenez.

Fez essas árvores enormes das florestas que vivem séculos inteiros; e fez as flores dos campos que desbotam durante o dia. Nas suas criaturas há desigualdade, porque a mesma perfeição que caracterizou as mais nobres não a quis imprimir as inferiores; mas desde as maiores até as mais pequenas se revela sempre a Sua providência. Às avezinhas que a invocam logo pela manhã com a melodia dos seus gorjeios dá ela o alimento; às flores, cuja formosura desaparece tão depressa, veste-as ela tão soberbamente durante o curto período da sua existência, que Salomão, no meio de toda a sua glória, não tem nada que se compare, às galas que as enfeitam – Considerate lilia quomodo crescunt: non laborant, neque nent; dico autem vobis, nec Salomon in omni gloria sua vestiebatur sicut unum ex istis (Lc 12, 27).

E vós, ó homens, a quem Deus fez a Sua imagem, a quem iluminou com a Sua sabedoria, e a quem chamou ao Seu reino, podeis imaginar que Ele vos esqueça, e que sejais vós as únicas criaturas em que se não fixa o olhar sempre vigilante da Sua providência paternal? Nonne vos magis pluris estis illis
? (Mt 6, 23)

Se alguma desigualdade notais, se achais que a recompensa é demasiado lenta na sua aproximação da virtude, e que o castigo não persegue o vício com grande tenacidade, pensai na eternidade do primeiro Ser. Lembrai-vos de que os Seus desígnios, concebidos no seio imenso dessa imutável eternidade, não dependem dos anos, nem dos séculos, que Ele vê decorrer como se fossem momentos; mas sim da duração completa do mundo que dá inteiro cumprimento às ordens duma tão profunda sabedoria. Nós, miseráveis mortais, é que desejaríamos, nos nossos dias efêmeros, ver realizadas todas as obras de Deus.

Quiséramos que o infinito se encerrasse em estreitos limites, e que manifestasse em pouco tempo tudo o que a Sua misericórdia prepara para os bons e o que a Sua justiça destina para os maus, só porque os nossos desígnios não são ilimitados como são os da Providência. Attendis dies tuos paucos, et diebus tuis paucis vis impleri omnia, et damnentur omnes impii, et coronentur omnes boni (S. Agost., in Psalm., CXI, n. 8). Que cegueira a nossa! Deixemos obrar o Eterno segundo as leis da Sua eternidade; e em vez de a reduzirmos às nossas proporções, precisemos antes penetrar na Sua amplitude: Jungere aeternitati Dei, et cum illo aeternus esto
(S. Agost., in Psalm., CXI, n. 8).

Se entrarmos nessa bem-aventurada liberdade de espírito, se aferirmos a vontade divina pela norma da eternidade, contemplaremos pacificamente este misto confuso das coisas humanas. E certo que Deus ainda não fez distinção entre os bons e os maus; mas porque escolheu um dia designado em que o há de fazer a face de todo o universo, quando o número duns e doutros estiver completo.

Foi isto que fez dizer a Tertuliano estas sublimes palavras:

«Deus, diz ele, tendo guardado o juízo final para a consumação dos séculos, não antecipa a descriminação, que é uma condição indispensável, e, entretanto, mostra-se quase imparcial para com toda a natureza humana» –Qui enim semel aeternum judicuum destinavit post saeculi finem, non praecipitat discretionem (Tertuliano, Apolog. n . 41)

Não notastes esta expressão admirável:

«Deus não antecipa a descriminação»?

Antecipar as coisas é o apanágio da fraqueza, que se vê obrigada a apressar-se na execução dos seus planos, porque depende das ocasiões, e essas ocasiões são certos momentos que fogem muito rápidos, causando, por isso, uma necessária precipitação aos que se veem obrigados a aproveitá-los.

Mas Deus, que é o árbitro de todos os tempos, que do centro da Sua eternidade faz dimanar toda a ordem dos séculos, que conhece a Sua onipotência e que sabe que nada pode escapar as Suas mãos soberanas, Deus não antecipa a realização dos Seus desígnios. Sabe que a sabedoria não consiste em fazer sempre, as coisas com prontidão, mas em as fazer no seu tempo devido.

Deixa que, os loucos e os temerários censurem os seus planos, mas não acha conveniente antecipar a execução deles, para evitar murmurações da parte dos homens. Basta-lhe que os seus amigos e os seus servos esperem humilde e respeitosamente o dia da verdadeira justiça; quanto aos outros, sabe o destino que lhes há de dar, porque se acha, já designado o dia em que os há  de punir: Quoniam prospicit quod veniet dies ejus (Sl 36, 13).

Mas afinal, direis vós, Deus faz muitas vezes bem aos que são maus, e oprime com grandes flagelos os que são justos; e ainda mesmo que tal desequilíbrio fosse momentâneo, não deixava por isso de ser um atentado contra a justiça. — Não, cristãos. É preciso compreendermos hoje a diferença entre bens e males; que são de duas espécies. Há bens e males simultâneos, que dependem do uso que deles fazemos.

Por exemplo, a doença é um mal; mas, santificada pela paciência, é um grande bem! A saúde é um bem; mas, abalada pela devassidão, será um mal perigosíssimo! E aqui temos bens e males simultâneos, que participam da natureza do bem e do mal, e que respeitam a um ou a outro, segundo o fim a que se aplicam. Mas sabeis agora, cristãos, que há um Deus Onipotente, que tem nos tesouros da Sua bondade um bem soberano que nunca pode ser um mal, e que esse bem é a felicidade eterna; assim como tem nos tesouros da Sua justiça certos males extremos que nunca poderão traduzir-se em bens para os que os sofrem, e que esses males são os suplícios dos réprobos. A norma da Sua justiça não permite nunca que os maus gozem esse soberano bem, nem que os bons sejam supliciados com esses males extremos. Por isso fará um dia a descriminação. No que respeita, porém, a bens e males simultâneos, concedê-los-á indiferentemente a uns e a outros.

O santo e divino salmista estabeleceu divinamente esta bela distinção entre bens e males:

«Eu vi na mão de Deus, diz ele, uma taça que continha três líquidos: Calix in manu Domini vini merí plenus mixto. O primeiro era vinho simples: vini meri. O segundo era vinho misturado: plenus mixto. O terceiro, finalmente, eram fezes: Verumtanen faex ejus non est exinanita» (Sl 74, 9)

Que significa o vinho simples? A alegria da eternidade sem uma sombra de amargura.

Que significam as fezes? O suplício dos réprobos sem uma clareira de felicidade. E que representa o vinho misturado? Os bens e males como nós os sentimos na vida presente, e que podem ser alterados pelo uso. Ó distinção maravilhosa de bens e de males tão sublimemente estabelecida pelo Profeta! Ó sábia distribuição, feita pela Providência, dos bens que divinizam e dos males que infelicitam! Estamos chegados aos tempos da confusão, aos tempos da recompensa, em que é preciso preparar os bons para a merecerem, e suportar os pecadores para a alcançarem.

Chovam simultaneamente nesta confusão os bens e os males tão proveitosos para os ajuizados e tão mal aplicados pelos insensatos; mas acabem duma vez tão calamitosos tempos. Vinde, espíritos inocentes, vinde beber o vinho puro de Deus, que é a sua felicidade extreme. E vós, ó corações endurecidos, ó maus eternamente separados dos justos; a felicidade para vós deixou de existir; os folguedos, os banquetes, as diversões, tudo acabou. Vinde beber toda a amargura da vingança divina (8): Bibent omnes peccatores terrae (Sl 74, 9).É esta meus senhores, a descriminação que resolverá tudo por uma última e irrevogável sentença.

«Quão grandiosas que são as vossas obras! Quão justos e flagrantes de verdade são os vossos desígnios, ó Senhor Deus onipotente! Quem vos não louva e vos não bendiz, ó Rei dos séculos?» – Magna et mirabilia sunt opera tua, Domine Deus omnipotens: justae et verae sunt viae tuae, Rex seculorum. Quis non timebit te, Domine, et magnificabit nomen tuum? (Ap 15, 3-4) 

Quem não admira a vossa providência e não teme os vossos juízos? Ah! É preciso que «o homem insensato não compreenda estas coisas e o louco as não conheça» – Vir insipiens non cognoscet, et stultus non inteliget haec (Sl 19, 6). «Só olham para aquilo que veem, mas iludem-se» – Haec cogitaverunt, et erraverunt (Sb 2, 21). Quisestes, ó grande Arquiteto, que a beleza do vosso edifício só fosse admirada depois dele concluído; e o vosso Profeta vaticinou que «só no dia final seria conhecido o mistério da vossa vontade» – In, novissimis diebus intelligetis concilium ejus (Jr 23, 20).

Mas, senhores meus, para esse dia será tarde demais penetrarmos no conhecimento tão necessário desse mistério. Antecipemos a hora designada. Assistamos em espírito ao dia de juízo, e do limiar desse tribunal, perante o qual havemos de comparecer, contemplemos as coisas humanas. No temor, no assombro, no silêncio universal de toda a natureza, com que irrisão hão de ser ouvidas as ponderações dos ímpios, que se firmavam no crime, porque viam outros crimes impunes! Eles próprios, pelo contrário, hão de admirar-se de não terem visto que essa pública impunidade era um aviso eloquente do extremo rigor que contra eles se devia praticar no dia de juízo.

E eu mesmo confirmo que Deus em todos os séculos dá provas da Sua vingança. Os castigos exemplares que Ele exerce em alguns não me parecem tão terríveis como a impunidade de todos os outros. Se Ele agora punisse todos os criminosos, eu daria toda a Sua justiça por acabada, e não viveria na esperança duma descriminação mais rigorosa. Neste momento, porém, a Sua própria bondade e a Sua paciência não me permitem duvidar da possibilidade duma oscilação, porque ainda as coisas não estão no seu devido lugar.

 Lazaro sofre ainda, embora inocente; e mau rico, embora criminoso, continua gozando dum certo bem-estar. Deste modo, nem o sofrimento, nem  repouso estão ainda no lugar onde devem estar verdadeiramente.

O que se dá é uma violência que não pode durar sempre. Não vos fieis nesta irregularidade, ó homens mundanos, pois é preciso que as coisas mudem. Ouvi e admirai:

«Meu filho, se é certo haveres recebido bens em tua vida, também é certo que Lazaro recebeu males»

Ora este desequilíbrio seria admissível nos tempos da confusão, em que Deus preparava uma obra mais grandiosa; mas sob os auspícios dum Deus tão bom como justo, é, insustentável tal confusão.

Agora que haveis chegado ambos ao lugar da vossa eternidade, nunc autem, nova disposição vai ser iniciada. São palavras de Abraão. Cada coisa terá o seu lugar, contínua ele. O castigo não se separará mais do criminoso a quem compete, nem a consolação será negada ao justo que a soube esperar: Nunc autem hic consolatur, tu vero cruciaris. É esta, meus senhores, a vontade de Deus, fielmente exposta pela sua Escritura.

Vejamos agora em poucas palavras qual o uso que dela havemos de fazer, e terei concluído o meu discurso.

Segundo Ponto

Todo aquele que está convencido de que uma sabedoria divina o governa e uma vontade inquebrantável o conduz a um fim eterno, só lhe parece grande e terrível o que se relaciona com a eternidade.

Por isso, os dois sentimentos inspirados pela fé da Providência consistem, o primeiro em não admirar coisa alguma, o segundo em nada recear do que se termina com a vida presente.

A razão por que nada para Ele é objeto de admiração é a seguinte: A sábia e eterna Providência que fez, conforme dissemos, duas espécies de bens, que distribui na vida presente bens impuros, e que reserva os bens puríssimos para a vida futura, estabeleceu que todo o que se tivesse comprazido nos bens medíocres não compartilharia dos bens supremos. E Santo Agostinho diz-nos que Deus quer que saibamos distinguir os bens espalhados na vida presente e que servem de consolação aos cativos, dos bens reservados para a vida futura e que farão a felicidade de seus filhos: Aliud (est) solatium captivorum, aliud gaudium liberorum (9). A sábia e verdadeira liberalidade exige que se saiba distinguir os seus dons; ou, para falar mais a rigor, quer Deus que saibamos distinguir os bens verdadeiramente desprezíveis, que tantas vezes concede aos seus inimigos, dos que Ele preciosamente guarda para só os destinar aos seus servos: Haec omnia tribuit etiam malis, ne magni pendantur a bonis, diz Santo Agostinho (10).

É realmente, cristãos, quando, remontando aos fatos passados, vejo tantas vezes as galas mundanas entre as mãos dos ímpios; quando vejo os filhos de Abraão, e o único povo que adora a Deus, e que vive desterrado na Palestina, num pequeno canto da Ásia, cercado das soberbas monarquias dos orientais infiéis, e, para me referir mais propriamente a nós, quando vejo esse inimigo, que usa um nome cristão, sustentar com tantos exércitos as blasfêmias de Maomé contra o Evangelho, derrubar com o seu crescente a cruz de Jesus Cristo, Salvador nosso, diminuir todos os dias a cristandade com armas tão fortunosas (11); e além disso quando considero que, embora adversário de Cristo, este sábio distribuidor de coroas o vê, do ponto mais culminante dos céus, sentado no trono do grande Constantino, e não receia confiar-lhe um tão grande império, como se fora uma dádiva de pequena importância; quando tudo isto vejo, compreendo facilmente o pouco apreço em que ele tem semelhantes graças e todos os bens que concede na vida presente! E tu, ó vaidade e grandeza humana, triunfo dum dia, nulidade soberba, como me pareces insignificante a minha vista, quando por este lado te considero!

Imaginareis que talvez me esqueça do lugar onde estou falando, quando chamo aos impérios e as monarquias uma dádiva de pequena importância.

Não, senhores, não me esqueço; não ignoro quão magnânimo e augusto é o monarca que nos honra com a sua audiência, e quão beneficente é Deus, pela Sua parte, em confiar à Sua direção uma tão grande e tão nobre parte do gênero humano, para a proteger como Seu poder. Mas também sei, cristãos, que, embora os soberanos religiosos não vejam, na ordem das coisas humanas, coisa superior ao seu cetro, nem coisa mais sagrada do que a sua pessoa, nem mais inviolável do que a sua majestade, devem contudo sacrificar o reino que por si só governam ao valor dum outro reino, em que não é desdouro a igualdade, e em que será grato, aos reis cristãos, associarem-se com os seus vassalos, a que a graça de Jesus Cristo e a visão beatífica os terá feito seus dignos companheiros: Plus amant illud regnum in quo non timent habere consortes (12).

Deste modo, a fé da Providência, apresentando sempre aos filhos de Deus a decisão final, priva-os de admirar tudo o mais; mas ainda produz um efeito maior, que é libertá-los do receio. E que receariam eles, cristãos, se nada os indigna, nada os ofende, e nada lhes repugna?

Há uma diferença notável entre as causas particulares e a causa universal do mundo. Aquelas colidem umas com as outras.

Assim, o frio combate o calor, e o calor ataca o frio. Mas a causa primeira e universal, que encerra ordenadamente as partes e o todo, não tem coisa alguma que brigue com ela; porque, se as partes colidem entre si, harmonizam-se com o todo, cuja unidade formam pela sua discordância. Este raciocínio, cristãos, levaria muito tempo a desenvolver; não obstante, como desejo aplicá-lo ao nosso caso, vou tentar fazê-lo, embora resumidamente.

Todo aquele que tem particulares intentos, ou se prende a causas particulares; mais claramente: todo o que deseja obter um benefício dum príncipe, ou pretende fazer fortuna por meios ilícitos, dá com outros pretendentes que o contrariam, ou com obstáculos imprevistos que lhe transtornam os planos, e, tal como uma mola que, não funcionando a tempo, faz parar a máquina, assim a intriga deixa de produzir o seu efeito, e todas as esperanças ficam perdidas.

Mas aquele que imutavelmente recorre ao todo e não às partes, aos meios fáceis, como são o poderio, a proteção e a intriga, o que recorre a causa primeira e fundamental, a Deus, à Sua vontade e a Sua providência, nada encontra que se Lhe oponha ou que altere os Seus planos; pelo contrário, tudo concorre e tudo coopera para a execução deles, porque, como diz o santo Apóstolo, tudo contribui também para o efeito da sua salvação, que é a sua grande obra, e em que se acham consubstanciados todos os seus pensamentos: Diligentibus Deum omnia cooperantur in bonum (Rm 8, 28).

Aplicando-se desta maneira à Providência, que é tão vasta, tão ampla, que encerra em seus desígnios todas as causas e todos os efeitos, amplia-se e dilata-se ele a si próprio, e ensina a aplicar-se a tudo o que é lícito.

Se Deus lhe dá prosperidades, recebe-as do céu com submissão, e rende culto a misericórdia que o beneficia, espalhando-a pelos miseráveis que tanto carecem dela.

Se é vitima da adversidade, sabe que «a provação produz a esperança» – Tribulatio patientiam operatur, patientia autem probationem, probatio vero spem (Rm 5 3-5), que a guerra é a origem da paz, e que, se a sua virtude combate, será um dia gloriosamente coroada. Nunca desespera, porque nunca, vive sem remédio.

Parece-lhe sempre ouvir ao Salvador estas sublimes palavras, que se lhe gravam no fundo do coração:

«Não temais, ó pequeno rebanho, porque ao vosso Pai agradou dar-vos um reino» – Nolite timere, pusillus grex, quia complacuit Patri vestro dare vobis regnum (Lc 12, 32)

Deste modo, sejam quais forem os extremos de miséria a que possam chegar, o homem justo nunca ouvira da sua boca palavras infiéis que traduzam a perda completada sua felicidade.

Nunca poderá maldizer da sua sorte, visto que ainda tem um reino imenso, que é o reino de Deus.

Que força o poderá, pois, esmagar, se ele acalenta sempre uma tão bela esperança?

Eis o que se opera agora no seu espírito, à vista dos acontecimentos que se dão com as outras pessoas. De tudo ele colhe sentimentos novos. Tudo o confunde e o edifica; tudo o assombra e o alenta; tudo o faz ponderar maduramente; tanto as derrocadas mortais, como as ações justas e rigorosas, tanto o abatimento duns, como a perseverança doutros, tanto os exemplos de fraqueza, como os exemplos de força, tanto a paciência de Deus, como a sua justiça exemplar.

Se ele lança o anátema sobre os criminosos, lava logo as mãos no sangue deles, diz Santo Agostinho (13); isto é, purifica-se com receio de sofrer igual suplício.

Se eles prosperam visivelmente, e a sua felicidade parece fazer morrer na terra a esperança do homem de bem, este ergue os olhos para Deus, e ouve com grande fé como que uma voz celeste, dizendo aos maus afortunados, que desprezam o justo oprimido: Ó erva terrestre! Erva rasteira! Atreves-te a comparar-te à árvore de fruto, durante o rigor do inverno, só porque ela perdeu o viço e tu conservas o teu na invernosa estação? Lá virá o tempo do estio, o ardor do juízo final, que te há de secar até à raiz e fará germinar os frutos imortais das árvores cultivadas pela paciência. São estes os pensamentos sagrados que a fé da Providência inspira.

Meditemos sobre tudo isto, cristãos, que bem merece ser meditado. Não confiemos na sorte nem nas suas galas enganadoras, porque este estado há de apresentar as suas vicissitudes, e toda esta ordem que nos  admira há de ser destruída. De que servirá termos vivido  independentes, no meio dos prazeres, da abundância, se afinal Abraão nos disse: Meu filho, é certo que recebeste bens em tua vida, mas agora as coisas vão mudar. Quer isto dizer que a grandeza e o poderio acabaram duma vez, e não deixaram nenhum vestígio? Não; grandes vestígios vejo eu ainda e bem sensíveis.

Prova-o o Espírito Santo, esse oráculo da sabedoria, que diz:

«Os poderosos serão poderosamente atormentados» – Potentes potenter tormenta patientur  (Sb 6, 7)

Quer isto dizer que, se se não acautelarem, serão os primeiros a receber o castigo eterno, como foram os primeiros a desfrutar ostentação. Confidimus autem de vobis meliora (Hb 6, 9).

Ah! Mas embora isto assim seja, «eu espero de vós coisas melhores». Há poderes que são sagrados, como, por exemplo, o de Abraão que, condenando o mau rico, foi também rico e poderoso; mas santificou o seu poder pela humildade, pela moderação, pela obediência a Deus, e pelo socorro aos pobres. Se seguirdes este exemplo, evitareis o suplício do rico cruel, e ireis, como o pobre Lázaro, descansar no seio do rico Abraão, e, como ele, recebereis as riquezas eternas.


Referências:

(1) 3 Reg 15, 17. 22

(2) Todos os editores, inclusive Gandar, acrescentam a esta frase as seguintes palavras: E convencendo-se erradamente de que a desordem aparente das coisas humanas é um testemunho contra elas. Estas dezessete palavras acham-se sublinhadas, isto é, riscadas no manuscrito.

(3) Nasceu pelo ano de 329 e faleceu em 390. As suas obras consistem em 55 discursos ou sermões, com algumas poesias e muitas cartas.

(4) Orat., XXXIV

(5) Josue vero filius nun repletus et spiritu sapientiae (Nota de Bossuet: Josué, Dt 34, 9)

(6) As bibliotecas já não são hoje o que eram no século XVII, verdadeiros museus onde se viam reunidos quadros, livros, estátuas, etc. Hoje reduzem-se a um repositório de livros.

(7) Bossuet escreveu à margem umas letras que custam a decifrar. Seria De cit., isto é, De civitate Dei? Não se sabe (Gazier).

(8) Que resta dos prazeres desse abismo medonho,
Em que se afunda a alma? O que resta dum sonho…
Folgar, cantar, diz essa horda ímpia…
Porém, no dia dessa tua ira,
Eles beberão a taça inesgotável,
Atroz e horrorosa,
Que tu secretamente as preparado
Para toda a raça criminosa. (Athalia)

Não se pode dizer que Racine tenha imitado Bossuet. Ambos foram verdadeiramente inspirados pela leitura da Bíblia.

(9) S. Agost., in Psalm., CXXXVI, n. 5

(10) In Psalm., XLII, n. 14

(11) Este sermão é de 1662. Em 1664 é que montecuculli, auxiliado por 6000 franceses, ganhou sobre os turcos a batalha de Saint-Gothard. E em 1669, apesar de Beaufort vir acompanhado de 7000 franceses, os turcos tomaram Candia aos venezianos.

(12) S. Agost., De Civit. Dei, lib. V, cap. XXIV

(13) Ita lavabis quodam modo manus tuas in sanguine peccatoris (S. Agost., In Psalm., LVII, n. 21)

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(BOSSUET, Jacques-Bénigne. Sermões de Bossuet, Volume II. Tradução de Manuel de Mello. Casa Editora de Antonio Figueirinhas 1909 – Porto, 1909, Tomo II, p. 313-335)