I
Os três primeiros Evangelistas sobejamente nos mostraram nos acontecimentos que acabamos de expor, o lugar de São João e a prerrogativa com que foi honrado. É ele próprio que vamos agora ouvir. Falará de visu. Seu livro é um testemunho: tal é o nome que lhe confere com insistência, terminando-o (19, 36; 20, 25); além disso, sendo o discípulo amado do mestre, fala como testemunha íntima. Se recorda este título a cada instante, é porque esse privilégio lhe permitiu ver melhor, de mais perto e mais a fundo, até o recôndito da alma amante e amada! Se, pois, Justino o mártir pode dar aos quatro evangelhos a denominação comum de Memórias ou lembranças, quanto mais especialmente tal nome não se aplica ao Evangelho de São João!
Esta qualidade também se justifica pela própria leitura. É a demonstração interna de autenticidade e de veracidade da narrativa, convém notar. Mil particularidades de lugar, de tempo, de estilo, revelam a presença pessoal do narrador, ao passo que reflexões ardentes ou profundas atraem o coração do amigo particular do Mestre. O que vimos, o que ouvimos, o que tocamos do Verbo de vida, nós vo-lo anunciamos, deveria ele escrever um dia. A nós também seu livro faz ver, ouvir e tocar com ele esse Verbo verdadeiramente vivo em sua narrativa. Em toda a parte o discípulo aparece sob a égide do Evangelista; seguimo-lo, por assim dizer, graças à irradiação de sua alma e ao sulco de seus passos.
A primeira vez que se nota a presença de João na vida pública de Jesus, é em Jerusalém, onde o Senhor descera pela Páscoa, seguido dos discípulos. Chegando à cidade, Jesus subiu ao templo para dele tomar posse em nome de Deus, seu Pai. Encontrou a entrada ocupada, obstruída por mercadores de toda a espécie. Entre estes, o fiel companheiro de Jesus notou vendedores de bois, de carneiros e pombos, que proviam de vítimas e oferendas aos Judeus vindos para sacrificar. João distinguia também os cambistas; porque o imposto de duas dracmas, previamente cobrado para as despesas do culto devia ser pago em moeda judaica, com exclusão das pagãs, modeladas com efígie de ídolos ou emblemas interditos no templo santo.
Diante deste quadro, o Filho de Deus, armando-se de um chicote, expulsa os vendedores sacrílegos, vira as mesas dos cambistas com uma autoridade que declara receber do próprio Deus:
“Retirai isto e não façais da casa de meu Pai uma caverna de ladrões!”
João admira nesse zelo a indignação sagrada do novo Phineas:
“Os discípulos, diz ele, recordam-se então do que está escrito: O zelo da vossa casa devora-me, Senhor” – Recordati sunt vero discupuli ejus quia scriptum est: zelus domus tuae comedit me (Jo 2, 17)
Quanto aos mandões de Israel, indignados da audácia de Jesus, perguntou-Lhe com que direito ousa falar e agir assim? Jesus, por única resposta invoca seus milagres; e apela logo para o maior de todos aqueles que deve cumprir: sua ressurreição:
“Abatei este templo, diz ele, e em três dias eu o reerguerei!”
Os Judeus não compreenderam estas últimas palavras, ou não viram senão um motivo de acusação capital; João compreendeu-as mais tarde, assim como no-lo explica:
“Ora, era do templo de seu corpo que falava. Quando ressuscitou, seus discípulos consideraram que era isso o que Ele dizia, acreditaram na Escritura e no que lhes dissera Jesus” – Cum ergo resurrexisset a mortuis, recordati sunt discipuli ejus quia hoc dicebat et crediderunt scripturae et sermoni quem dexit Jesus (Jo 2, 22)
Aqui já o Evangelista assinala a sua presença; é bem um de seus discípulos que fala pelos outros.
Entretanto, os milagres jorravam das mãos de Jesus, e João observa que, ante os sinais de sua missão, conforme denomina esses prodígios, os Judeus dividiam-se em dois campos. Uns criam nEle, outros desconfiavam de sua influência nascente, principalmente os chefes da hierarquia, que nisso viam uma ameaça contra o próprio poder.
Em todo o caso, uma exceção foi assinalada e descrita em São João. Pela primeira vez se vê aparecer aqui um doutor da lei, que o santo apóstolo vai seguir em cada uma das fases de sua lenta conversão e de sua perseverança. Chama-se ele Nicodemos: sob este nome grego, que o sábio Israelita tomara, segundo o uso de então, a história encontra sem dificuldade o do dr. Niqdam, o qual, de fato, era no tempo de Jesus, um grande sábio muito em voga (1). Também, conforme os usos do tempo, João dava-lhe o nome de Príncipe, que os sábios da nação atribuíam a si mesmos.
“Há três corôas, diziam estes orgulhosos: a corôa da lei, a corôa do pontífice e a do soberano; mas a do rabino está acima da do rei” (2)
Estamos, pois, em pleno centro dos hábitos, dos costumes e da história judaicas.
Homem reto, porém, timorato, Nicodemos vem ao encontro de Jesus durante a noite, para não comprometer sua dignidade de doutor em uma entrevista pública com um Galileu.
“Mestre, diz ele, sabemos que sois um doutor enviado de Deus, porque ninguém poderia fazer os milagres que fazeis, se Deus não estivesse com ele” (Jo 3, 2)
A resposta de Jesus é, no Evangelho de São João, o modelo de todos os discursos que vai proferir doravante em Jerusalém, em presença da gente de saber a qual são dirigidos. Então todas as questões agitadas nas escolas e sinagogas, a purificação pelo mistério da água, o renascimento espiritual, os dons e as virtudes dos «homens de Espírito», como se denominavam esses sábios (3), todos esses problemas são resolvidos pelo Mestre divino, que, sem demora, dali se eleva à revelação dos maiores mistérios de que Ele mesmo é o objeto. É o mistério da Encarnação, o mistério de Deus feito homem, e descido do céu para falar a terra:
“O filho do homem, que estava no céu, desceu do céu. Em verdade, em verdade vos digo, dissemos o que sabemos, atestamos o que vimos; e por que não aceitais o nosso testemunho?” – Amen, amen dico tibi, quis quod seimus loquimur, et quod vidimus testamur (Jo 3, 11)
É o mistério do amor divino e da vida eterna, manifestado por Jesus na bela fórmula que tantas vezes encontramos em São João:
“Ele tanto amou o mundo, que deu seu filho único para que todo o que nEle crê não pereça, mas tenha a vida eterna” – Sic Deus dilexit mundum, ut Filium suurn unigenitum daret; ut omnis qui credit in eum non pereat, sed habeat vitam aeternam… (Jo 3, 16)
Enfim é o mistério da incredulidade e da iniquidade, perpetuamente conexas, e engendrando-se uma da outra:
“A luz veio ao mundo, e os homens preferiram as trevas à luz, porque suas obras eram más. Porque todo aquele que faz o mal odeia a luz que lhe condena as obras; aquele que pratica a verdade chega-se para a luz” (Jo 3, 19)
Esta linguagem profunda e simples não pertence ao homem, é a do próprio Deus: non mortale sonans. As palavras trocadas durante essa noite célebre entre o doutor da lei e o Deus do Evangelho, marcam a transição entre os dois Testamentos.
É a Igreja que já suplanta a Sinagoga. Uma nova religião, mais elevada, mais completa, mais espiritual, estava doravante fundada, e o doutor judeu acabava de ouvir a primeira e a última palavra daquela religião do futuro no nome que vai encher o Evangelho de São João: A caridade, o Amor; o amor de Deus pelo homem e o amor do homem por Deus.
Todo este capítulo por mais admirável que seja, não é sem dúvida, senão o curto resumo de uma grande conferência. Mas este resumo condensa em um foco luminoso toda a doutrina de Cristo. Como, perguntarão, pôde João saber, pois que esta entrevista foi secreta, e a conversação toda confidencial? Que relações particulares fizeram com que este judeu, uma vez cristão, penetrasse semelhante segredo? Vê-lo-emos mais tarde e assim teremos uma nova prova de fidelidade do testemunho de João.
II
Passadas as festas, e os chefes dos judeus começando a irritar-se pela ascendência de Jesus, o Senhor decidiu-se a voltar para a Galileia, seguindo-o São João. Tomara a estrada de Samaria. Foi neste caminho que o Filho de Deus teve com a samaritana a sublime entrevista de que o fiel companheiro notou o local, o instante e os incidentes, com uma precisão que marca a impressão de seus passos sobre os de Jesus.
Depois de uma jornada penosa, chegou o Senhor a uma cidade de Samaria que se chamava Sichar ou Sichem, hoje Naplouse, lugar de gratas recordações para os judeus. Abraão, descendo da Mesopotâmia, ali levantara um altar. Jacob ali comprara umas terras para seu filho José e fizera um poço que São João denomina como seus contemporâneos, – poço de Jacob. Foi à beira desse poço, até hoje conservado, e do qual se pode medir a profundidade, que Jesus se sentou.
Estava fatigado da caminhada, diz São João; porque, de Jerusalém à cidade de Sichem, são três dias de viagem por estradas ásperas e sob os raios abrasadores do Sol da Síria. Tinha fome e sede; enviando, pois, seus discípulos, João inclusive, procura alguns viveres na cidade, descansava nesse lugar, quando chegou uma mulher trazendo uma ânfora na cabeça, à maneira oriental, vindo enchê-la na fonte de Jacob. Seria por volta da sexta hora, observa a testemunha, hora correspondente ao meio-dia, hora ardente do dia, e Jesus, vendo aquela mulher que vinha tirar água, pediu que lhe desse de beber.
João não ouviu pessoalmente o diálogo que tão bem descreveu. Mas veremos mais tarde como, melhor que ninguém, teve ocasião de saber dos próprios samaritanos, por ter ido logo depois de Pentecostes, levar-lhes a efusão do Espírito Santo e os primeiros frutos de seu apostolado.
Além disso, a Samaritana o contava a todos com o entusiasmo de uma mulher que encontra a graça com a verdade. Da indiferença zombeteira para com esse judeu desconhecido que, ousando ir contra os preconceitos de sua nação, conversa com uma estrangeira, de repente passara à admiração e avidez, ouvindo-o falar de uma água viva e espiritual, e só ela capaz de matar a sede que atormenta as almas. Uma dessas almas, manchadas, porém sequiosas de reabilitação, era ela mesma. Ouvindo humildemente aquele homem inspirado dizer os erros de sua vida, confessa a longa e múltipla prevaricação.
Reconhecendo em Jesus um profeta, submete-lhe a grande questão que separa os Judeus dos Samaritanos:
“Onde se deve adorar?”
Será em Jerusalém? Será numa das montanhas do Hebal ou de Garizin? Do lugar onde se achava, avistava-se erigido sobre o vértice, o templo separatista, do qual ainda existem ruínas.
O Verbo de Deus dignou-se instruí-la. Esta pobre mulher aviltada, desprezada, recebeu dEle a sublime revelação do caráter especial da nova religião.
“Vem a hora, e é agora, que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em Espírito e em Verdade” – Venit hora et nunc est quando veri adoratores adorabunt Patrem in spiritu et veritate (Jo 4, 23)
Enfim, um instante depois o Messias revelou-se a ela:
“Sou eu que contigo falo” – Ego sum qui loquor tecum (Jo 4, 26)
Tornou-se Seu discípulo, logo depois apóstolo; e, deixando ali a urna, correu a anunciá-lO na cidade. A cidade era próxima, e do poço de Jacob avistavam-se os telhados chatos de Sichem, que brilhavam através da folhagem pálida e espigada das oliveiras. Em parte, nenhuma se justifica melhor a fidelidade da testemunha ocular como nesse lugar, nesse discurso e nessas circunstâncias.
Entretanto, tinham os discípulos chegado com os viveres: João verifica o seu espanto e o deles ao verem o Mestre conversando com uma cismática. A sua surpresa não é menor ao vê-lo recusar o alimento que tinham trazido. Em palavras rápidas trocadas confidencialmente entre si e ouvidas por São João, perguntavam-se:
“Ter-lhe-ia alguém trazido de comer?”
Mas Jesus só via seu Pai e as almas, respondeu-lhes:
“O meu alimento é fazer a vontade dAquele que me enviou para consumar a sua obra” – Meus cibus est ut faciam voluntatem ejus qui misit me, et perticiam opus ejus (Jo 4, 34)
Essa grande obra era a da conversão do mundo. O viajante nota ainda ao redor de Sichem as espigas que balançam nos campos férteis. Mostrando então aos apóstolos essas futuras e ricas colheitas, Jesus Cristo dizia-lhes alegoricamente:
“Levantai os olhos e vede esses campos já alvejando para a ceifa: Um é o que semeia e outro o que sega” – Levate oculus vestros, et videte regiones quia albae sunt jam ad messem (Jo 4, 35)
Com efeito, gérmens favoráveis acabavam de ser depositados nessa terra de Samaria, cujos habitantes, impressionados com as palavras da pecadora, vieram pedir a Jesus para permanecer com eles. Assim fez; ali se demorou e muitos acreditaram nEle. Veremos estes povos da Samaria, batizados pelo diácono Felipe; São João, em seguida virá para confirmá-los. Será um dos ceifeiros destinados a ajuntar a colheita espiritual nesse campo regado com os suores do Mestre.
III
Depois de dois dias passados na cidade de Sichem, Jesus dirigiu-se à Galileia indo a Caná e a Cafarnaum. São João ali, cede a palavra aos outros Evangelistas e só o encontraremos ao lado do Mestre na festa seguinte, de volta à Judeia e a Jerusalém. Com efeito, nota-se que João foi o principal historiador das ações de Jesus na Judeia. Os milagres decorridos e os discursos pronunciados nessa província e nessa cidade são quase exclusivamente o assunto de sua narrativa.
A festa que atraía Jesus a Jerusalém era, segundo uns, a solenidade Pascal, na opinião de outros, era a festa dos Purim. A chegada do Senhor revelou-se logo por benefícios. Havia naquela cidade uma piscina famosa da qual ainda existem vestígios; e que João nos descreve ligeiramente. Chamava-se em hebreu Bethsaida, isto é, casa de misericórdia. Achava-se perto de uma das portas da cidade, denominada Porta das Ovelhas e como era costume levar os rebanhos para ali beberem, tinha-se-lhe dado o nome grego de Probatica. Tinha cinco pórticos, nota o discípulo que nos leva consigo. Pelos escombros que ainda existem, pode-se reconhecer o indício de uma galeria circular de onde se descia à bacia por uns degraus de mármore. Ali, um pobre aleijado, abandonado num banco, esperava que o anjo viesse revolver a água, a fim de que ela tivesse a virtude de curar; mas não havia ninguém para mergulhar o doente que sofria havia trinta e oito anos, observa o narrador, com a exatidão ordinária de seu testemunho.
Jesus passou por ali, viu-o estendido, e sabendo que havia muito tempo que estava doente:
“Queres ficar são? disse-lhe; e logo depois: Levanta-te, toma o teu leito e anda: — No mesmo instante ficou curado, tomou o leito e andou” (Jo 5, 19)
O amor fizera sua obra, o ódio ia começar a sua. O dia dessa cura, lembra-se João, era um sábado. Ora a fidelidade em observar o repouso do sábado, tinha se tornado então sob o nome sabatismo uma superstição acanhada e cega. O castigo infligido indistintamente contra a idolatria, o assassínio e a violação desse religioso repouso, era o exílio. «Deus perdoa tudo aquele que observa o sábado» diz um texto de Talmude, e calculava-se que a observância de dois sábados salvaria a Israel (4).
Ficaram por isso enraivecidos contra Aquele que acabava de se colocar acima da prescrição, restituindo a saúde a uma imortal criatura de Deus. A hipocrisia dos fariseus culpava o doente e Aquele que o salvara tão milagrosamente. Às suas pérfidas censuras, Jesus responde uma só palavra:
“Meu Pai opera sempre e eu também”
Isto é, há um sábado que Deus não conhece, é o sábado do bem. Mas qual! Chamar a Deus seu Pai, é fazer-se igual a Deus, dizem os fariseus. Trava-se um longo debate sobre afirmação tão audaciosa, incrível, absolutamente peremptória, e nem um pormenor de lugar, costumes, tempo e caráter, é omitido naquele drama da bondade às voltas com a violência e a duplicidade; há ali um olhar que tudo considerou, um ouvido atento que tudo ouviu, um coração que tudo guardou; é o olhar, o ouvido, o coração de São João.
Mas o desespero dos fariseus tornando-se cada dia mais ameaçador foi preciso deixar Jerusalém por algum tempo e voltar à Galileia. João seguiu o Mestre; tornamos a encontrar na sua narrativa, o lago, Cafarnaum, os barcos e pescadores, a fé singela da multidão e o entusiasmo em seguir Jesus Cristo até no deserto. É ali também que ele conta a multiplicação milagrosa dos pães, as viagens sobre as ondas, as entrevistas sublimes de Jesus na sinagoga, a emoção dos assistentes em sentido diverso; enfim, a divina promessa da Eucaristia que exporemos mais adiante, porque ela exige um lugar particular no estudo da vida e da teologia do apóstolo São João.
IV
No entanto, aproximava-se «a festa dos Tabernáculos, que é uma festa dos Judeus». Celebrava-se em Outubro; e era a mais alegre das solenidades judaicas. Em lembrança da estadia dos Hebreus no deserto, o povo construía nas ruas e praças da cidade tendas de folhagem onde permanecia durante sete dias. Faziam-se sacrifícios, e os Judeus, desfilando em procissão, com palmas nas mãos, subiam ao templo de Sion para dar graças a Deus.
Os parentes de Jesus insistiam com Ele para ir a essa festa, a fim de fazer-Se conhecido. Mas o Senhor deixou primeiro partir todo o cortejo dos parentes, e mais tarde encaminhou-se em segredo para a cidade, onde já era Ele o assunto de todas as conversas.
São João faz reviver a cena de surpresa e admiração de que foi alvo a cidade santa, quando de repente, à hora em que todos o acreditavam na Galileia, o Senhor aparece no templo. Rodeiam-no, ouvem-no, e admiram-se da eloquência inexplicável de sua palavra:
“Como pode ele falar de tal modo, não tendo estudado?” – Quomodo hic litteras scit quum non didicerit? (Jo 7, 15)
A impressão de assombro que produziam seus discursos sobre o auditório de então é a mesma que sentimos quando lemos o Evangelista. Convém notar que os discursos que Jesus fazia na Judeia não eram mais as simples e fáceis parábolas que tinham vibrado nas colinas da Galileia. Aqueles a quem se dirigia agora o Mestre, eram esses doutores sábios que tinham por axioma que «o rabino devia absorver-se inteiramente na ciência sagrada, a qual possuía a chave do céu e tornava igual a Deus» (5). Eram esses escribas aos quais tinha sido preciso galgar os três degraus da iniciação antes de obter o direito de sentar-se na cadeira dos profetas. Eram esses Judeus helenos, vindos das brilhantes cidades de Atenas, Roma, Éfeso e Alexandria. A linguagem dirigida a esses espíritos polidos e curiosos das coisas de difícil penetração não podia ser a mesma que convinha aos rústicos e ingênuos habitantes das margens do lago de Genesaré. Portanto, se os discursos do Mestre, colhidos por São João, diferem pela forma dos referidos pelos outros Evangelistas, é porque o discípulo nos transmite particularmente o ensino de Jesus na cidade principal dos príncipes dos sacerdotes e dos chefes de Israel.
Os escribas perguntavam entre si:
“Onde aprendeu Ele isto?”
Era um milagre na ordem intelectual, não menos extraordinário que os de ordem física e para o qual pediam explicações. Jesus dá sempre a mesma: é que ele é Deus. A sua ciência não é uma ciência humana, laboriosa; não depende de estudo, ela flui de fonte divina, não vem do homem, mas d’Aquele que o mandou:
“Minha doutrina não é minha, mas d’Aquele que me enviou. Se alguém quiser cumprir a vontade de Deus saberá que esta doutrina é de Deus”
Aquela palavra autorizada, apoiada pelas obras, abalava os espíritos, e João nos coloca bem no meio da flutuação desse auditório tão dividido. O povo tomaria de bom grado o partido do profeta, mas ele quer mais brilho e ilustração naquele a quem se entrega, e esse era um operário de Nazaré! Bem se sabe de onde ele vem! Vinte vezes levantar-se-á a mesma objeção contra Jesus: «Sabeis de onde venho?» retorquia o Mestre com calma majestosa: Sabeis de onde sou? E a tais homens mostrava o seio do Pai de onde descera e para onde voltaria depois de algum tempo:
“Procurar-me-eis, e não me achareis acrescentava ele, porque onde eu estiver, não podeis vir” – Et me scitis et unde sim ascitis? Et a me ipso non veni… Quaeretis me, et non invenietis; et ubi ego sum vos non potestis ventre (Jo 8, 28-34)
«Tinha chegado o último dia da festa, e era o mais solene», diz São João. Costumava nesse dia o pontífice descer da montanha, trazendo uma urna de ouro que enchia na fonte de Siloé. Em seguida voltava rodeado pelo povo, ao som de cânticos e trombetas, e, entrando no templo, derramava essa água sobre o altar, para comemorar a fonte milagrosa que Moisés fizera jorrar do rochedo. Jesus aproveitando a ocasião da cerimônia, oferecia uma água melhor às almas ansiosas:
“Se alguém tem sede venha a mim e beba. Aquele que crer em mim, de seu seio correrão, segundo diz a Escritura rios de água viva!” – Si quis sitit, veniat ad me, etc. (Jo 7, 37).
O Filho de Deus revelava-Se como a fonte da vida. Estas grandes imagens constituíam uma nova espécie de parábolas, tiradas de outros lugares e feitas para outros espíritos. Que sublime realidade dava assim o Senhor aos símbolos antigos, e que torrentes de vida iam com efeito descer às almas!
Costumavam também naquela festa deixar acesos sobre as alturas de Sion dois imensos candelabros que projetavam a luz sobre Jerusalém inteira. Era a lembrança da nuvem luminosa que outrora guiara os filhos de Israel nas noites do deserto. Realizando em si mesmo essa figura expressiva, Jesus Cristo continuava o discurso dizendo:
“Eu sou a luz do mundo; aquele que me segue não anda nas trevas, mas terá o lume da vida!” – Ego sum lux mundi; qui sequitur me, non ambulat in tenebris; sed habebit lumen vitae (Jo 8, 12).
Afirmações ousadas, cuja conclusão histórica, João não podia ainda ver, mas que ele aceitava com plácida confiança. Outro que não fosse Jesus Cristo poderia afirmar: Eu sou a luz do mundo; só Jesus porém alumiou o mundo.
Sobre este texto trava-se logo uma discussão de um lado violenta, de outro calma e sublime. Jesus Cristo de novo afirma sua filiação divina, sua santidade que desafia qualquer acusação, sua geração eterna, precedendo não só o nascimento de Abraão, mas tudo:
“Sou o princípio, sou antes de tudo, eu que vos falo” – Principiam qui et loquor vobis (Jo 8, 25)
Palavra de Deus que deverá sugerir mais tarde a São João o prólogo de seu Evangelho:
“No princípio era o Verbo…”
Diante de afirmação tão clara, tão repetida de sua divindade só restava ao auditório de Jesus duas respostas a dar: lançar-se à seus pés como aos pés de um Deus, ou apedrejá-lO como um blasfemador. E então, diz São João, os Judeus pegaram em pedras para lhe atirar; mas Jesus ocultando-se, saiu do templo (Jo 8, 59).
V
O que irritava estes homens violentos e orgulhosos era talvez menos a sua grandeza sobre-humana, sua bondade calma, que a sabedoria superior com a qual Ele acabava de confundir tanta astúcia e maldade. Com efeito, naquele dia, Jesus Cristo chegou cedo ao templo. Aqui, como sempre aliás, e mais que nunca, São João coloca-nos em presença dos fatos e nos mostra o Senhor entrando no átrio contíguo à sala do conselho, e que se chamava o Tesouro, porque nesse lugar se achavam os cofres de bronze destinados às esmolas.
Ali os fariseus levam aos pés de Jesus uma mulher surpreendida em adultério: pedem-lhe hipocritamente que pronuncie a sentença da desgraçada condenada pela lei. A ocasião lhes era propícia para alardear sua própria justiça e confundir esse profeta e esse justo, convencendo-O de crueldade homicida, se condenasse a pecadora a ser apedrejada; ou de violação flagrante da lei, se a absolvesse.
Achava-se em flagrante o espírito farisaico. Toda a cena palpita por assim dizer nas memórias de João, e não sei quais os pretextos que tiveram para duvidar de sua autenticidade (6). O discípulo tudo vê. Vê o Mestre inclinar-se silencioso e escrever com o dedo na areia. O que escreve Ele? João não o diz. Ele vê somente Jesus, intimado a se pronunciar, levantar um instante a cabeça e como única resposta lançar esta frase:
“Aquele dentre vós que for sem pecado que lhe atire a primeira pedra!”
Jesus continua a escrever e, como as palavras traçadas pelo juiz que penetra a consciência humana, incomodavam sem dúvida aqueles hipócritas, João nota que eles se foram retirando um depois do outro, a começar pelos mais idosos, de sorte que só ficou Jesus e a adúltera.
“Era, diz Santo Agostinho, que conhecera esse perdão, a miséria diante da misericórdia”
Esta venceu aquela; e Jesus erguendo-se:
“Mulher, onde estão os que te acusavam? Ninguém te condenou? — Ninguém, Senhor. — Pois nem eu tão pouco te condenarei. Vai e não peques mais” (Jo 8, 2)
Esta última exortação, pondo de parte o direito da justiça, reparava, moderava a indulgência do perdão divino. Deus soberanamente bom, mostrava-se igualmente o Deus justo e sábio; os orgulhosos tinham fugido; a humildade fora exaltada, porém para caminhar nas veredas da virtude banhada de lágrimas. Eis o que é um Deus: Revela-se tanto pela sua bondade como por seu poder, por sua misericórdia assim como pelas suas maravilhas. «Só Deus é bom», dizia Ele um dia. Sim, e o que nos prova que sois Deus, Senhor, é que jamais alguém foi bom como Vós.
E assim como este fato pinta Jesus como pessoa verdadeiramente divina, assim os fariseus ali são representados ao vivo na realidade histórica de seus costumes. Jesus Cristo poderia dizer-lhes que «suas obras eram más e o demônio seu pai»: a história justifica a invectiva divina. Os livros reputados sagrados, ditados por esses hipócritas, dão ao rabino uma lei de «andar lentamente um tanto curvado, com a cabeça baixa, com vestes escuras, cobertos com um véu preto, afetando nunca falar a uma mulher» (7). É o «exterior da taça» mas o interior está cheio de veneno; e o mesmo livro permite as torpezas secretas que esses homens falsos puderem esconder. João bem os conhece: esses velhos são desmascarados com mais certeza do que os seus infames antepassados não o foram por Daniel; o discípulo penetrou bem os costumes daquela época.
VI
A cura do cego de nascença desencadeou novas tempestades contra Jesus. O quadro que João traça do drama, reflete perfeitamente tudo. Começa por uma discussão levantada entre os discípulos sobre a origem do mal; fazendo-os deste modo entrar em cena logo no princípio: Quem pecou?, perguntam eles, este cego ou seus pais? — Não, respondeu o divino Mestre, nem ele nem seus pais pecaram, mas assim sucedeu a fim de que nele se manifestassem as obras de Deus… Enquanto estou no mundo, sou a luz do mundo, repete Ele com imponência; e logo dá a prova do que diz, curando o cego com um pouco de terra molhada na saliva com a qual lhe toca os olhos. Por estes singelos pormenores reconhece-se a exatidão de João: isso não se inventa.
Vai, diz em seguida Jesus ao mendigo, e lava te na fonte de Siloé. Ora, segundo a antiga profecia, Siloé era o emblema da graça divina:
“Por isso, disse o Senhor falando a Isaías, que meu povo abandonou as águas de Siloé que correm silenciosamente, eu farei rolar sobre eles o rio da Assíria”
Achava-se aberta aos espíritos uma fonte mais elevada de graça e de verdade; e quantos irão a Ele para recobrar a vista!
Apenas feito o milagre, é logo contestado. João, testemunha da discussão, narra-nos todos os incidentes, para fazer sobressair a divindade de Jesus, fim principal de seu Evangelho.
Primeiramente, os vizinhos do cego que, vendo curado o homem que sempre encontravam sentado à porta do templo, pedindo esmola, custam a crer no prodígio. É ele, dizem uns. — Não, mas é alguém que com ele se parece, dizem outros. Mas ele respondia: Sou eu mesmo!
Depois do povo, é o Sanhedrim que por sua vez se comove e prepara um inquérito. O cego comparece, conta o fato simplesmente, porém afirma-o com energia; o conselho, confuso, agita-se em sentidos diversos: Este homem não pode ser de Deus, uma vez que não observa o Sábado. — Mas, retorquiram os outros, como pode um pecador fazer tais prodígios? Era difícil, e perturbados, esses sábios pediam a opinião de um homem do povo. — Que dizes tu daquele que te abriu os olhos? — Que é um profeta, respondeu terminantemente.
Sem dúvida, mais de um doutor ali presente via-se forçado a pensar como ele. Estavam, portanto, divididos. Mas quem sabe se o mendigo não era mesmo cego? É necessário certificar-se. Imediatamente são intimados os pais da testemunha e confrontados com ele: É este o vosso filho? — É — Tinha ele nascido cego? — Sim. Como então está ele vendo agora? — Isso não o sabemos, diz essa pobre gente atemorizada, em risco de ser considerada fora da lei. E acrescenta:
“Além disso, perguntai a ele próprio; já tem idade para falar por si” (Jo 9, 21)
Ali a fidelidade da testemunha justifica-se pela sua simplicidade.
Intimam de novo o mendigo, era preciso a todo o custo, destruir o crédito de Jesus, arrancando uma retratação à testemunha importuna de seu poder divino. — Dá glória a Deus, gritam aqueles hipócritas; e é com esse nome sagrado que eles o conjuram a mentir, acrescentando uma blasfêmia:
“Sabemos que este homem é um pecador!”
Mas nada há mais terrível para o sofisma sinuoso do que a retidão de um coração simples. Ele lhes responde:
“Se é um pecador não sei; o que sei é que eu estava cego e agora vejo!”
Só há um expediente: é ver se seu testemunho se contradirá. Recomeça então o interrogatório:
“Que te fez Ele? Como foi que te abriu os olhos?”
A esta pergunta, o mendigo impaciente, lança-lhes uma sentença de uma ironia vingadora:
“Já vo-lo disse, por que quereis tornar a ouvi-lo? Quem sabe se também não quereis ser seus discípulos?”
Eles, discípulos do Galileu! Irritam-se, protestam que são discípulos de Moisés e que quanto a este não sabem de onde ele vem. Não deixa de ser admirável, responde o mendigo com sua temível e intrépida inocência, que vós não saibais de onde Ele vem e que, todavia, me abrisse os olhos! Depois, cansado de ouvir tratar de pecador e de malvado ao profeta seu benfeitor, opõe-lhes este argumento para sempre invencível:
“Sabemos que Deus não ouve os pecadores, mas, se alguém o venera, a esse Ele atende. Em tempo algum se ouviu dizer que alguém tivesse aberto os olhos de um cego de nascença. Se este não fosse de Deus, não poderia fazer coisa alguma” – Nisi hic esset a Deo, non poterat: facere quidquam (Jo 9, 33)
Era essa a verdadeira conclusão; mas quanto mais justa mais irritante era ela. Rompeu-se o seu furor:
“Tu és todo pecado, e vens dar-nos lições?”
Pronunciaram contra ele a exclusão da sinagoga. Mas Jesus consolou-o a seu modo, como sabe consolar os que por Ele sofrem, dando à sua alma uma luz divina mais elevada do que a que tinha restituído a seu corpo. O mendigo só conhecia o seu benfeitor como um profeta; o Senhor revelou-se a ele como um Deus.
“Como se encontrasse com ele perguntou-lhe Jesus: Crês no filho de Deus? — Quem é ele, Senhor, para que eu creia? Já o viste, respondeu-lhe Jesus, é aquele mesmo que contigo fala. Creio, Senhor disse o pobre homem, e prostrando-se adorou-o” – Dixit ei Jesus: Tu credis in Filium Dei? — Quis est, Domine, ut credam in eum? — Et dixit ei Jesus: Et vidisti eum, et qui loquitur tecum ipse est (Jo 9, 35-37)
«E eu também creio, escrevia um convertido ilustre, depois da leitura dessa página incomparável, e eu também Vos adoro, adorável autor da narrativa e do milagre, que ambos são de Deus. Eu também era cego, não de nascença mas de orgulho, e Vós tivestes piedade de mim e me abristes os olhos! Não permitis que jamais eles se fechem depois de ter visto Vossa luz, nem que as maldições da impiedade jamais fechem minha boca, depois que consentistes que Vos confessasse, apesar de toda sua indignidade. — O tom desta narração verdadeiramente divina assim como de todas desse livro, acrescenta o mesmo escritor, é deveras inimitável. É a linguagem da pura verdade, tomada ao vivo, e da qual se pode repetir a palavra do profeta: Os testemunhos do Senhor são verdadeiros e justificam-se por si mesmos» (8)
VII
No entanto a vida de Jesus não se achava mais em segurança entre os fariseus, aos quais cada dia mais irritavam as provas e testemunhos de sua divindade. Teve Ele, conta São João, de atravessar de novo o Jordão, retirando-se por algum tempo para a província da Peréa, que se estende pela margem oriental do rio, do monte Hauran até os confins do deserto, ao sul do Mar Morto.
Ali vivia entre populações felizes de possuir por sua vez, o grande profeta de Israel, a quem apresentavam os doentes para curar, os filhos para abençoar; quando a doença depois da morte de Lázaro O fizeram voltar à Judeia para um milagre ainda maior dos que até então fizera. Se jamais, em algum lugar notamos o olhar e o coração de João, é bem neste quadro tão empolgante de verdade e de vida, como de majestade e ternura. Para ele assim como para nós vai abrir-se a aldeia bendita de Betânia, situada, diz João, à quinze estádios de Jerusalém (9). É a cidade cujas casas brancas estão ainda dispostas em forma de escada nos flancos do monte das Oliveiras, encobertas pela folhagem, envoltas pelas alturas que as ocultam ao mundo; foi ali, nesse asilo de paz, retiro religioso, que o Senhor achou o único bem da terra: corações que o compreendiam e correspondiam ao seu.
Ora, Betânia era a aldeia de Maria e de Marta sua irmã. O discípulo não nos faz conhecer de outra forma a família em cujo seio nos vai introduzir. Mas, referindo-se a um episódio relatado pelos outros Evangelistas, aquele da primeira unção de Jesus por essa mulher fiel:
“Maria, diz ele, era aquela que ungiu, com bálsamo perfumado, os pés do Senhor e enxugou-os com os próprios cabelos, e era seu irmão Lázaro que estava doente”
Assim como São Mateus e São Marcos mostram-nos a alma ardente, porém moderada, inteiramente entregue a contemplação, silenciosa aos pés do Mestre, assim encontramo-la agora, nos traços fiéis daquele que a viu, ainda uma vez imersa num único sentimento, só sabendo chorar; quieta em sua casa, só levantando-se quando seu Deus se aproxima, para ir lançar-se a seus pés adorados, vagarosos em vir consolá-la.
“Ora Jesus, diz São João, amava a Marta e a Maria sua irmã, assim como a Lázaro” – Diligebat antem Jesus Martham et sorcrem ejus Mariam et Lazarum (Jo 11, 5)
Nada mais é preciso dizer. Amados de Jesus também o seriam de João, cuja narrativa nos comunica sua compaixão para com esse irmão, esse doente querido do Deus da caridade.
João seguindo a norma dos que escrevem memórias, faz-nos sentir primeiro a emoção do momento em que O surpreendeu a notícia da doença de Lázaro e as impressões diversas que ele e seus irmãos entre si trocaram. O recado que Marta e Maria mandaram era curto; constavam apenas destas palavras:
“Senhor, eis que está enfermo aquele que amais” – Domine, ecce quem amas infirmatur (Jo 11, 3)
Não lhe pediam que voltasse à Judeia, devido às ameaças dos Judeus; contentavam-se apenas em fazer um apelo àquele coração que bem conheciam. Não se enganaram, pois Jesus Cristo disse logo a seus discípulos:
“Esta enfermidade não é para a morte, mas para a glória de Deus a fim de que o filho de Deus seja glorificado por ela” – Infirmatas haec non est ad mortem, sed pro gloria Dei, ut glorificetur Filius Dei per eam (Jo 11, 4)
Como outrora para o cego de nascença, aqui também o milagre é anunciado de antemão; é uma promessa. Deus, porém, é senhor do tempo, e só dois dias depois, São João mesmo o observa:
“Jesus disse a seus discípulos: Volvamos à Judeia”
Mas ir à Judeia era entregar-se à morte.
“Mestre, há bem pouco ainda queriam os Judeus apedrejar-te e voltas para o meio deles?”
É preciso, no entanto; pois, nesse intervalo, Lázaro morreu, e Jesus anuncia aos seus com estas palavras de esperança imortal e divina: Lázaro, nosso amigo dorme! Se dorme será salvo, responderam os discípulos. João confessa que se enganaram no sentido deste sono, até que Jesus, dignando esclarecê-los:
“Lázaro morreu, mas vamos vê-lo!”
Estava acabado, só restava segui-lO, e foi então que Tomé pronunciou aquela palavra que João repete com admiração:
“Vamos também nós e morramos com Ele!”
Depois deste prólogo, passado na Peréa, a ação transporta-se para a aldeia de Betânia. Ali os discípulos, bem como São João, desaparecem. Não é mais que o espectador atento e enternecido, o relator fiel desse drama que apresenta aos nossos olhos, ora lacrimosos, ora fascinados pela luz.
Em primeiro lugar aparece Marta, ativa, impetuosa, correndo ao Mestre, dirigindo-Lhe uma palavra onde a censura se mescla ao amor:
“Senhor, se estivésseis aqui meu irmão não teria morrido!”
Depois uma palavra de fé:
“Mas sei que mesmo agora tudo o que pedirdes a Deus ele vo-lo concederá” – (Jo 11, 22-23)
— Teu irmão ressuscitará, disse o Mestre! Ao ouvir esta promessa, ela adora-o, invoca-o:
“Ele é o filho de Deus vivo que veio ao mundo”
E ligeira vai ter com Maria que ficara em casa, e diz-lhe baixinho que o Senhor havia chegado.
Entra então em cena Maria, a contemplativa. Fala menos, mas chora. Jesus Cristo chora também e em parte alguma São João é tão comovente como neste trecho:
“Jesus tanto que a viu chorando, e a chorarem também os judeus que tinham vindo com ela, alterou-se no íntimo e turbou-se ele próprio e disse: Onde o puseste? Responderam-lhe: Senhor, vinde e vede! e Jesus chorou. Disseram então os Judeus: vede como o amava” – Et lacrymatus est Jesus. Dixerunt ergo Judaei: Ecce quomodo amabat eum! (Jo 11, 36)
São frases estas que deveriam ser lidas de joelhos e são elas que fazem do Evangelho de São João não só o livro mais humano como o mais divino. A antiguidade austera escrevera que «chorar não era digno de um filósofo»; João nos mostra que chorar é digno de um Deus.
Jesus encaminhou-se para o sepulcro. Ali nos conduz São João!
“Era, diz ele, uma gruta cavada no rochedo, cuja entrada estava fechada com uma pedra”
Havia quatro dias que ali estava encerrado o cadáver que já exalava mau cheiro. Levanta-se a lápide. Em voz alta e poderosa, o Verbo de Deus, «que é ressurreição e vida», ordena ao morto que se levante: Lázaro, sai! No mesmo instante levanta-se Lázaro conservando as ataduras com que ligavam o corpo dos Orientais; a face coberta com o sudário. Desatai-o e deixai-o ir embora! Todas as minúcias deste milagre, as impressões dos assistentes, cada passo das duas irmãs, cada palavra de Jesus, sua oração, os olhos voltados para o céu, o frêmito e o tom de voz, tudo o que uma testemunha pôde ver e ouvir não se apagara da memória de São João. É a memória do coração, e de nada nos esquecemos, absolutamente nada, quando amamos.
Muitos dentre os Judeus, conclui o contemplador da vida de Jesus, que vieram visitar a Maria e a Marta, e foram testemunhas do que fizera, creram nEle (Jo 11, 45). A mesma observação faz depois de cada um dos grandes milagres do Mestre, pois era esse o fruto que o Salvador do mundo queria colher, e é ainda o que produz em toda alma reta o testemunho de João pondo-nos em presença dessas mesmas realidades.
«Eis uma das páginas do Evangelho de que Russeau dizia: “Meu amigo, não é assim que se inventa”
Sente-se o espectador que tudo viu, o observador atento e emocionado em quem esta cena produziu impressão indelével; dela não esqueceu um só pormenor. A bondade e a autoridade do Mestre, a franqueza dos discípulos e sua nobre dedicação, essa troca afetuosa de sentimentos e pensamentos que existia entre Jesus e os seus, a diferença de caráter de Marta e de Maria, e consequentemente a diferença de conduta; tudo isto foi apanhado em flagrante, tomado ao vivo: é a fotografia que se revelou neste espírito, e se imprimiu neste coração.
«Mas o que se nota, ainda mais que o observador atento e profundo que viu, é o pintor diante do qual alguém maior que ele, pousou. Nem com o talento, nem mesmo com o coração, podia João conceber semelhante fisionomia: ela o excede completamente. Este Jesus, é homem, como pôde ressuscitar Lázaro? Ele é Deus, e eis que se perturba e chora: ressuscita-o chorando… Como reunir traços tão diversos, tão opostos? Perguntai-o a João. Não sabe. Ele viu, descreveu, nada mais pode dizer.
«E todos estes traços com efeito opostos, parecendo estranhos à primeira vista, resolvem-se na perfeita unidade. O humano e o divino confundem-se harmoniosamente e nos fazem ver, num só ato, a beleza total do Cristo. Ele é homem, na verdade, homem pelas alegrias, pelas inquietações, pelas agitações e ternuras de amor. Mas ao mesmo tempo é Deus e o amor arma-lhe o o braço com todas as forças divinas. Tal coisa nunca se havia visto, e jamais ver-se-á neste mundo de sombras, onde perto daqueles a quem amamos, que sofrem, que nos chamam em seu auxílio, deseja-se tanto e faz-se tão pouco!» (10)
O próprio João nos diz que não contou todos os milagres que viu. Omitindo primeiro os já mencionados pelos outros Evangelistas, escolheu em seguida entre os fatos de que foi testemunha ocular, aqueles cujo brilho, grandeza e notoriedade punham mais em evidência a divindade de Jesus (11). Uma vez escolhidos esses fatos, ele os reproduz simplesmente, porém, de modo tão verdadeiro, tão vivo, que parece estar-se assistindo com ele. Às vezes, repete, retrata-se, volta sobre o que afirmou, a fim de dar mais pormenores, como faria um narrador pouco habituado a escrever, mas que conta as coisas conforme se recorda, e que se empenha em não deixar passar nada do que viu. De sorte que a impressão que se tem desse livro é a de uma certeza, de uma verdade tal que, uma simples leitura feita de boa fé, fala mais em favor de sua autenticidade do que todas as apologias. Em presença desse tecido sobre-humano de fatos singelos, de preceitos sublimes, de simples parábolas, de milagres incontestáveis e de santos exemplos apresentados com uma candura inimitável, não mais se pensa em discutir. Então, se crê; crê-se tudo, e por fim se diz com o Evangelista:
“João escreveu estas coisas, e sabemos que seu testemunho é verdadeiro”
A crítica mordaz sente-se desarmada, e deixa cair no meio de estranhas contradições uma confissão decisiva, apóstrofes comoventes:
«Fariseus rigoristas, que laváveis vossas mãos com tanta unção, escribas pedantes, sacerdotes lisonjeiros e altivos, saduceus céticos e escarnecedores, demoníacos curiosos, não podendo resistir ao santo de Deus, cobradores convertidos, pobres pecadores muito felizes em banhar com vossas lágrimas os pés de vosso santo Amigo… mulher de Betânia com o vaso de alabastro cheio de óleo perfumado. E tu, Madalena, apenas livre dos sete demônios que te possuíam, tu, a última junto da cruz, a primeira no túmulo de teu libertador! Vós todos, seres encantados ou sombrios, vós todos, figuras sensíveis ou terríveis, vinde, pois, dizer a nossos modernos visionários, que vivestes, que tivestes carne e osso, e sangue nas veias; que não há no mundo poder plástico capaz de forjar arbitrariamente criaturas tão palpáveis, tão reais como vós! Será que a terra outrora não era habitada senão por sombras, que quiseram reduzir-vos ao papel de seres fantásticos, aparecidos não se sabe como, na visão da primeira Igreja? E como teria então nascido essa Igreja, se não a tivésseis fundado, vós por vossos ódios, vós, por vossos amores?» (12)
Referências:
(1) V. Le Talmud, citado pelo doutor Sepp Vie de Jésus
(2) Le livre des Principes, Talmud. p. 488, 511
(3) V. M. Le Hir, Les trois Témoins célestes
(4) V. Le Talmud, p. 521
(5) Talmud, Livre efes Principes, t. II, p, 513-527
(6) V. M. Wallon, de la Croyance due à l’Evangile
M. l’abbé Deramey, le Quatrième Evangile, 3. E partie, art, III, p. 366
(7) V. Gfroerer, Jahrhundert des Heils, ch. II, p. 166-167
(8) La Harpe, Apologie de la Religion
(9) A duas léguas de Jerusalém
(10) Mr. Bougaud, Jésus-Christ, 2º édit. In-12, p. 446.
(11) Observação de São João Crisóstomo: Non enim studuit (Joannes) universa annuntiare, sed ex multis magna et pauca (Chrysost. Homild. XLI in Joan).
(12) M. Alb. Révlille. – V. Revue des Deux. Mendes juin 1866
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(BAUNARD, Monsenhor L’abbé Loui. O Apóstolo São João. Rio de Janeiro, 1974, p. 51-80)