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São João em Samaria. Martírio de seu irmão Tiago. O concílio. A dispersão

Capítulo 11: São João em Samaria. Martírio de seu irmão Tiago. O concílio. A dispersão

I

Entretanto a caridade começara seu reinado nessa bela comunidade da Igreja do cenáculo, que ia tornar-se o tipo ideal das Igrejas e cuja lembrança pura devia iluminar as últimas instruções de São João em Éfeso.

“Os discípulos perseveravam na doutrina dos apóstolos, na participação a fração do pão e na oração. Todos que acreditavam eram considerados iguais; seus bens estavam em comum. Iam orar juntos no templo, partindo o pão pelas casas com alegria e simplicidade de coração. Louvavam a Deus, agradavam ao povo, e cada dia via-se crescer o número daqueles que se haviam de salvar nesta união” (At 2, 42)

Com efeito, o Evangelho não era mais o pequenino grão de mostarda da parábola; a árvore saia da terra. A verdade não se levantara ainda para os povos sentados à sombra da morte; mas uma cidade, uma província até então cismática, entreabria os olhos a claridade celeste; e, coisa extraordinária! Era esta mesma Samaria, outrora inóspita e sobre a qual João pedira a Jesus que fizesse descer o fogo do céu. Convertidos por Felipe, um dos sete novos diáconos, e batizados por ele, os Samaritanos esperavam que a mão dos apóstolos, únicos investidos do poder, lhes conferisse o Espírito Santo. Pedro foi designado para essa missão. João não podia separar se dele, partiram, pois juntos (1). Convinha que aquele que outrora chamara o fogo vingador sobre os Samaritanos, sabendo enfim agora de que Espírito era fizesse cair sobre suas cabeças mais propícia chama.

Impuseram pois as mãos aos neófitos. Assim juntava-se a palavra ao exercício de um ministério mais elevado: a administração das graças sacramentais em toda a plenitude do poder apostólico.

Foi ali que João se achou pela primeira vez na presença de uma dessas heresias filosóficas e místicas ao mesmo tempo, que, com o nome de gnosticismo, devia ser o campo de futuros combates. Nessa província de Samaria achava-se um mágico conhecido pelo nome de Simão, o qual fazia desde então, na sua vida e doutrina, uma dessas falsificações miseráveis do Evangelho que tentavam as maiores ambições.

Simão era da aldeia de Gitton ou Gitta na Samaria. Propunha-se aos Judeus como aquele que ditara a lei no Sinai. Aos pagãos, ele se dizia o Zeus soberano, dando o nome de Minerva ou Sabedoria encarnada a uma mulher perdida, que encontrara em Tyro e que ele chamava Helena. Pelo seu sistema, era ela que representava o princípio passivo e material, que ele, Salvador, vinha reabilitar no mundo. Quando apareceu o cristianismo, não o repudiou; fez-se batizar; e, tomando da doutrina do Evangelho o que podia adaptar-se a seus sonhos e suas vistas, deu-se em pessoa como o Redentor. Não era ele, com efeito, o libertador das almas degradadas no corpo? Não era ele o bom pastor que viera procurar e salvar nos baixos do mundo onde ela se perdera, esta Helena desgraçada, esta ovelha ferida e perdida no deserto das paixões grosseiras?

Ia, portanto, semeando as doutrinas e os prestígios em Samaria e em outras províncias. A Síria, a Fenícia, talvez mesmo Roma, viram-no maravilhar a multidão, menos pela sedução de suas mágicas, que pelo orgulho de sua vida; fazendo-se passar, segundo São Jerônimo, pelo verbo divino.

“Eu sou o Verbo, dizia ele, a palavra de Deus, o Belo, o Paráclito, o Todo-Poderoso, o Todo de Deus”

Simão era testemunha dos milagres operados sobre os neófitos da Samaria pela imposição das mãos dos dois apóstolos; e esses dons do Espírito Santo, que o enchia de admiração, excitavam-lhe também a inveja. Vendo ali apenas o efeito de prestígios empregados por concorrentes mais hábeis, o mágico propôs a Pedro e a João comprar-lhes o segredo. Mas, aqueles que acabavam de dizer ao mendigo da porta do templo que não possuíam ouro nem prata, repeliram as ofertas interesseiras do impostor dizendo-lhe: Que teu dinheiro pereça contigo! O Senhor assim o tinha ordenado:

«O que recebestes de mim gratuitamente, dai-o também gratuitamente»

E o tráfico das coisas santas a que os apóstolos lançaram anátema, devia de agora em diante, com o nome de Simonia, perpetuar a lembrança de seu primeiro autor, assim como o anátema lançado contra ele.

Desde então, tomou São João parte no ministério da eleição e promoção dos pastores. Naquele tempo designaram os apóstolos a um deles, Tiago, denominado o Menor ou o Justo, filho de uma irmã de Maria, e parente de Jesus, para exercer as funções de bispo de Jerusalém. A tradição da Igreja, a mais respeitável, baseada sobre uma epístola do papa Anacleto, citado por Clemente de Alexandria, e conservada por Eusébio, dá a honra desta escolha a Pedro, João e Tiago (2). O espírito de força que recebera no cenáculo não se desmentia na sua vida nem na sua morte. Tiago o Justo, pela grande santidade, alcançou a veneração dos Judeus, assim como a dos cristãos. Breve o veremos junto de Maria e João, e poderemos avaliar que irmão este achou nele, quando o seu próprio irmão foi chamado pelo Senhor.

II

Com efeito, Tiago, irmão de João, foi o primeiro apóstolo mártir. No Evangelho, as existências desses dois filhos de Zebedeu parece fundir-se numa só, sem que um só traço denote a personalidade distinta de São Tiago. Criados na mesma barca, convidados no mesmo dia a tornarem-se pescadores de homens, juntos associados à divina confidência da transfiguração, da agonia e das últimas manifestações de Jesus, parecia que deviam ser inseparáveis na morte como o tinham sido na vida. Não fora a ambos e na mesma circunstância que o Senhor dissera que beberiam de seu cálice? Mas o cálice de um não devia parecer-se com o do outro. Para João, a dor amarga foi de ver sofrer seu irmão e ele ficar. Para Tiago, foi de se separar de João e partir.

“Naquele tempo, dizem os Atos, o rei Herodes meteu mãos a maltratar alguns da Igreja. E matou à espada Tiago, Irmão de João” – Eodem autem tempore misit Herodes rex mannus ut affligeret quosdam de Ecclesia.

Occidit autem Jacobum fratrem Joannis gladio (At 12, 1)

Passava-se isto onze anos depois da morte de Jesus, no 44° ano de sua Encarnação, no 2º do reino de Cláudio, sendo cônsules Quintius Crispinus e Marcus Statilius Taurus.

Aquele que assim fazia correr o sangue do apóstolo era o celebre Herodes Agripa do qual Josepho contou a vida tão agitada (3). Favorito de Antônia, mãe de Germânico, partidário e íntimo da casa de Druso, embalado nas intrigas assim como nas orgias do palácio de Tibério, Agripa possuía os princípios fáceis e a corrupção dos costumes dos perseguidores. Seu avô, Herodes o Grande, fora o assassino das crianças de Belém, que atentara contra a vida de Jesus. Sua irmã era aquela adúltera, Herodíades que pedira a cabeça de João Batista, e sabe-se que gênero de celebridade estava reservado no tempo do império à sua filha, a famosa Berenice. Audacioso e hábil, dominador e cortesão, Agripa possuía a flexibilidade de caráter dos Romanos da decadência, cujo fim único era a fortuna, única moral o sucesso. Depois de protegido por Caio, foi parar numa prisão infamante, e subitamente da desgraça e do exílio, passou para o trono de sua pátria, sem que lhe viessem do infortúnio a virtude.

As perversidades, porém, da existência romana, não impediram de mostrar um certo gosto oficial pela religião dos Judeus, o que dava lugar à ser bem recebido pelo povo e pelos sacerdotes. Além disso, era um espírito culto e polido; não se comprometendo com crimes inúteis; sectário da justiça, enquanto não se tratasse dos próprios interesses, mas pronto para tudo e nunca hesitando diante de uma crueldade que lhe pudesse servir.

Foi o que sucedeu nessa circunstância. Agripa voltava de Roma. O imperador Cláudio, a quem muito auxiliara a subir ao trono, não contente de confirmá-lo na posse da Galileia assim como na antiga tetrarquia de Felipe, acabava de dar-lhe a Judeia, a Samaria e todas as terras do Líbano e um tratado de aliança, cheio de elogios; tinha sido gravado numa placa de bronze fixada no Foro. Forte pelo apoio do príncipe, Agripa queria selo da afeição de seus súbditos; e como, no seu regresso, achasse o país profundamente dividido pela invasão progressiva da religião cristã, pensou, diz a Escritura, que um dos meios mais certos de popularidade, era proceder com rigor contra essa minoria odiosa (4).

Era no tempo dos ázimos que precede a Páscoa. Agripa, que em geral, residia na Cesareia, foi à cidade santa para essa solenidade. A multidão era grande em Jerusalém; e os da dispersão vindos pressurosos à festa, só falavam nesses Judeus que se viam por toda a parte pregando um novo Deus. Suas conquistas amedrontavam os sacerdotes e os rabinos, ameaçados em sua jurisdição e ensino. Indiferente sem dúvida à questão de doutrina, Agripa o era menos ao reino proclamado do novo rei dos Judeus. Era mister uma vítima à cólera pública; Tiago foi o escolhido.

O apóstolo foi denunciado pelo judeu Ozias, que o entregou aos soldados de Agripa. Viu-se então, conta Clemente de Alexandria, citado por Eusébio, o que se devia depois encontrar tantas vezes na história dos santos. O próprio acusador horrorizado de seu crime e impressionado com a plácida firmeza do mártir, declarou-se cristão, com o risco da própria vida. Ambos foram condenados. Ora, como caminhavam juntos para o suplício, diz-se que Ozias, lançando-se aos pés do santo, pedia-lhe com insistência que lhe perdoasse. Tiago parou um momento. Já de coração lhe perdoara, mas lembrando-se que Ozias não era batizado, hesitava em dar o ósculo dos irmãos aquele que não fora regenerado na fé. Deus então revelou-lhe que esse homem já estava batizado na graça e que breve o seria no sangue. Tiago então abraçou-o dizendo-lhe por despedida a palavra do Senhor: «A paz seja contigo!» Em seguida foram ambos decapitados (5). A Escritura específica esse gênero de martírio, que era o suplício reservado aos homens livres e aos cidadãos romanos.

Passou-se isto aos vinte e cinco de Março. Havia onze anos, que nesse mesmo dia da Páscoa, morria o divino Mestre, perdoando também ele a seus carrascos, pensando nessa mesma cidade que apedrejava os justos e matava os profetas. Doze anos antes, tendo perguntado a Tiago se teria coragem de ser mergulhado depois dele no batismo de sangue, este respondera com bravura: «Posso!» Acabava de cumprir a palavra.

João que recebera idêntica promessa e tomara o mesmo compromisso, não ia tão cedo entrar na posse da divina herança. Mas o martírio do irmão foi o primeiro sacrifício que Deus exigia dele, e é o que faz dizer a São João Crisóstomo que assim morreu o apóstolo muitas vezes (6). Moisés escrevera no livro do Levítico:

“Oferecer-se-ão à Deus dois pássaros puros. Um será imolado; o outro tinto com o próprio sangue, e dar-se-lhe-á a liberdade para voar” (Lv 14, 4)

Ora foi conforme este rito que as coisas se passaram. Tiago tinha sido a vítima escolhida. Coberto com o sangue do irmão, João não tardará a abrir as asas e voar.

III

O martírio de São Tiago foi o sinal da primeira dispersão dos apóstolos (7). Vendo que o rei Agripa preparava a mesma sorte a Simão Pedro, seu chefe, e que este só uma vez escapara graças a um anjo libertador, os discípulos lembraram-se da palavra do Senhor:

«Se uma cidade vos repelir, refugiai-vos noutra»

Sacudindo, portanto, a poeira dos pés, dispuseram-se a afastar-se de Jerusalém.

Uma tradição antiga, conservada por Eusébio, e antes dele, transmitida por Apolônio, escritor do segundo século, nos conta que Jesus recomendara aos apóstolos que ficassem na Judeia durante doze anos, antes de se dispersarem para missões longínquas (8). Era a explicação da palavra Evangélica:

«Ide primeiramente às ovelhas de meu rebanho de Israel»

Estava esse termo prestes a expirar. Conforme tinha predito, as tendas de Israel iam-se dilatar; e já Pedro tivera revelação de que, doravante, não mais haveria para a nova religião distinção de raça. Com efeito, ele, como príncipe da Igreja Universal, fora o primeiro a conferir o batismo de Jesus Cristo a um centurião das legiões de Tibério, o soldado Cornélio, descendente talvez dessa gens Cornelia outrora tão importante em Roma. É de crer até que dissertação de esta cidade se tenha comovido com o nome de Jesus Cristo, pois que contava cristãos em seu seio antes mesmo do apostolado de São Pedro e São Paulo; e que, segundo Tertuliano, Tibério propusera ao senado admitir o Cristo no número dos deuses (9).

A mais importante conquista da fé, porém, foi a do jovem Paulo de Tarso. Nunca o apostolado fizera mais esplêndida recruta que a deste fariseu, discípulo de Gamaliel, de origem judaica, nascido na Grécia, Romano pelo direito de cidade, pertencente por estes títulos todos aos grandes povos, e, sem dúvida, por esse motivo, predestinado por Deus a honra de ser seu mestre na doutrina cristã. Não tivera como Pedro a visão simbólica da admissibilidade igual de todas as nações no reino de Deus. Mas, como o declarava, recebera diretamente do próprio Jesus Cristo a missão de pregar aos pagãos. Tinha no entanto vindo a Jerusalém, a fim de entender-se com os primeiros missionários do Evangelho de Jesus. Ali, conta ainda ele, «aqueles que eram reconhecidos como as colunas da Igreja, Tiago, Pedro e João, deram-lhe a mão em sinal de associação, recomendando-lhe principalmente que se lembrasse dos pobres», do que não se descuidou (10).

É a primeira vez que encontramos São Paulo ao lado de São João. Será também a última. O Evangelho não nota comunicação alguma nem relação posterior entre estes dois apóstolos, chamados, no entanto, a ceifar sucessivamente no mesmo corpo da Ásia. Separados pela distância, ficaram sempre irmãos pela doutrina. Debaixo de uma diferença incontestável de linguagem, o ensino é, no entanto, o mesmo. A aliança contraída nessa entrevista, entre Pedro, Paulo e João, jamais se rompeu e em seus livros, como outrora na vida, os três apóstolos estão sempre de mãos dadas.

São João foi também um dos juízes da doutrina que tomaram parte, abaixo de Pedro, no primeiro concílio de Jerusalém, e que sancionaram com a sua autoridade a isenção para os cristãos, da circuncisão e das cerimônias prescritas pela lei de Moisés. Esta questão estabelecida no berço da Igreja, era no fundo, a questão de sua universalidade e de sua livre difusão no mundo. Menos que qualquer outro, pretendia São João prender a Igreja à Sinagoga, porque melhor que ninguém, sabia e proclamava que «era chegada a hora em que se adoraria não somente em Jerusalém e no monte Garizim, mas que Deus acharia por toda a parte adoradores em espírito e verdade». Sabia que o Bom Pastor tinha outras ovelhas além das do antigo rebanho de Israel, e queria fazer de todas um só rebanho com um único Pastor. A religião nacional ia doravante suceder a religião católica, isto é, universal. Ora, esta universalidade essencial à Igreja acarretava, como consequência, a abolição dos ritos que a prenderiam ao templo de Jerusalém.

O único ponto sobre o qual ainda se manifestavam algumas hesitações no seio do apostolado primitivo, era a maneira e o momento em que melhor conviria suprimir esses ritos. O concílio concedeu mesmo que conservassem alguns, ao menos temporariamente, a fim de aproximar os espíritos divergentes, e fundir o helenismo e o judaísmo. Mas no dia em que a Igreja tivesse reunido os dissidentes, estas disposições simplesmente de disciplina, achavam-se suprimidas, como os andaimes que caem logo que o edifício está construído.

O papel que a tradição desses tempos designou a João, é justamente um papel de conciliação (11). Ele, o pregador do «Novo mandamento», ele, que fez cair a barreira de preconceitos e ressentimentos que separava Samaria de Jerusalém, e que vai abrir a toda a Ásia grega as fontes que jorram para a vida eterna, nos é também representado, durante sua longa existência, como um religioso observador da lei paterna, no que tinha ela de compatível com a nova ordem. Celebrava a Páscoa cristã no mesmo dia marcado para a Páscoa da antiga lei (12); trazia na fronte consagrada pelo sacerdócio, a lâmina de ouro que usava o grão-sacerdote no templo (13). No Evangelho cita com prazer a Escritura, e declara que «é dos Judeus que deve vir a salvação». Enfim, o Apocalipse deixa por toda a parte perceber, através das revelações sobre a Igreja do futuro, as afeições fiéis à pátria do passado. A adoração do Verbo, o apelo de todas as nações à graça e à glória, o sacrifício perpétuo oferecido em toda a parte, lembram bem sem dúvida o apóstolo católico; mas conserva-se Israelita pelo coração como pela raça, e quando João quiser pintar a coroação gloriosa de tudo, Jerusalém é que lhe aparecerá brilhante e as doze tribos serão o emblema vivo do catolicismo da Igreja triunfante.

Pouco tempo depois do concílio, os apóstolos se dispersaram: não os veremos mais reunidos. Não se pode precisar o lugar nem a época desta última e definitiva separação; e é muito provável que a partida dos irmãos se tenha feito sucessivamente sem solenidade alguma, cada apóstolo indo para onde o chamavam o Espírito Santo e a necessidade dos povos. Convém tomar como pura imaginação o quadro de Lucio Dexter no qual nos mostra Maria, cheia de plenitude do espírito de Pentecostes, entre Pedro e João, como o presidente de honra desse conselho (14), enquanto todos os corações que na terra havia a curar, ignorâncias a esclarecer, crimes a perdoar, ficavam de seu lado para dizer-lhes: Vinde a nós!

São João Crisóstomo lembra que São Pedro e São João mais unidos entre si, suportaram mais dolorosamente o sacrifício necessário da separação. Calcula que era à essa necessidade que Jesus os queria preparar de antemão, quando dizia a Pedro:

«Se eu quiser que este fique até que eu venha, que te importa? Tu, segue-me?»

Como se tivesse querido dizer:

«Não poderás viver separado desse caro companheiro? Não poderás fazer este penoso sacrifício por amor de mim? Deixa-o a seu trabalho e cumpre o teu» (15)

Mas Pedro e João bem compreenderam. Se os corpos se separaram, as almas ficaram enlaçadas uma na outra «nos laços da caridade», que devia por muito tempo unir o Oriente ao Ocidente, de que iam tornar-se os primeiros apóstolos.

Qual era, com efeito, a parte que coubera a João nesta partilha? Entre o Taurus e a margem dos rios famosos, onde a Escritura coloca o paraíso terrestre, estende-se uma vasta região no seio da qual se agitavam, havia mais de três mil anos, os destinos do mundo. O oriente, pai da luz, tinha sido também o berço predestinado à todas as obras divinas e humanas. Os impérios decaídos ali tinham belíssimas ruínas; as histórias extintas guardavam grandes recordações; no entanto, um céu deslumbrante ali era menos ardente do que as almas; e, mesmo no seio da heresia, um profundo misticismo fazia lembrar o país das revelações primitivas e das santas visões. Em tempos menos remotos, ainda era a Ásia que vira levantar-se os dois nomes que a história coloca acima dos outros: Cyro e Alexandre. Dispersando os Judeus, e dando á Sinagoga plena liberdade, Cyro lançara em seus vastos Estados as folhas dos Livres santos, propagando assim a doutrina primordial da unidade de Deus. Meditando a unidade de uma única pátria, de uma só civilização, de uma única filosofia, Alexandre fundara ao menos, do Indos ao Nilo, a unidade de linguagem: devia ser a língua de São Paulo e São João. Nos conselhos de Deus, esses grandes homens só tinham lavrado a terra a fim de que a verdade ali fosse espalhada em profusão pelos «semeadores de palavras», como os Atenienses chamavam os apóstolos. Assim o mundo oriental, o mundo helênico, enfim o mundo romano, tinham ouvido o grito do Precursor!

«Parate vias! Preparai os caminhos!»

Estando, pois, livres os caminhos, partiram os conquistadores.

Daqui por diante, e particularmente nos três capítulos que se seguem, a vida de nosso apóstolo não será mais iluminada pela luz do Evangelho. É à luz, muitas vezes um tanto sombria de tradições posteriores, por vezes alteradas e desfiguradas pela imaginação dos escritores orientais, que temos de procurar os traços meio apagados de seus passos. Era nosso dever dizê-lo.

Temos ainda outro: o de perguntar aos Padres e escritores eclesiásticos de todos os tempos, o que conheceram eles na falta do Evangelho, o que pensaram, o que se conheceu, o que se pensou em redor deles, sobre a vida e a pessoa do santo apóstolo, cuja história escrevemos. Reproduziremos com seus nomes, com a veneração devida à autoridade e antiguidade de muitos deles, mas também com a reserva necessária a fazer sobre a credibilidade de alguns outros. Enfim, não nos será proibido realçar e vivificar pelo pensamento e eloquência dos mestres, doutores, teólogos, autores místicos, que lançaram sobre o mesmo objeto de suas meditações e contemplações o que a Escritura chama «os olhos iluminados do coração».


Referências:

(1) Cum autem audissent Apostoli, qui erant Jerosolymis, quod recepisset Samaria verbum Dei, miseru it ad eum Petrum et Joannem (At 8, 14)

(2) Da consagração de São Tiago pelos três santos apóstolos data o uso adotado de três pontífices consagradores para a sagração de um bispo

(3) Joseph. Ant Jud. lib. XIX, cap. IV.

(4) Videns autem quia piaceret Judaeis (At 12, 2)

(5) Clemens Alex in titut. Lib. VII; apud Euzeb. Lib. II, cap. IX, p. 47

(6) Nam et Jacobo gladio caput abscissum est, et multotiés mortuus est Joannes (S. Chrysost. Oper., t.1, p. 775).

(7) V. sobre o tempo da dispersão dos apóstolos, a dissertação de Tillemond, Memoires pour l’Histoire eccl., t. II, noite 4, sur S. Matth., p. 647.

Baron. Annal. Eccl., ad na. 44, 14.

(8) Apollonius, script. 2di saeculi; apud Euseb. Hist eccl. lib. V, cap. XVIII, p. 186.

Clemente de Alexandria cita identicamente as expressões do Senhor: Post duodecim annos exite in mundum, ne quis dicat: Non recepimus verbum (Stromat. VI, 5)

(9) Tertull. Apol., cap. V, p. 6, XXI, p. 22.

(10) Jacobus et Chephas et Joannes, qui videbantur coluniæ esse, dextras dederunt mihi, et Barnabæ societates.

Tantum ut pauperum memorea essemus, quod etiam soliicitus fui hoc ipsum facere (Gl 2)

(11) Apostoli Petrns et Jacobus, et Joannes, religiosè agebant circà dispositionein legis quae est secundúm Moysen (S. Iren. C. Heeres.. III, 12)

(12) Euseb. Hist. Eccl. V, 23.

(13) Euseb. Hist. Eccl. III, 31. Item S. Hieronym. De Scriptor ecc. XLV).

(14) Lucii Dextri Chronícon; Lugduni, 1627.

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(BAUNARD, Monsenhor L’abbé Loui. O Apóstolo São João. Rio de Janeiro, 1974, p. 176-191)