Capítulo VI
A morte de Jesus é nossa vida.
1. Escreve São João que nosso Redentor, antes de expirar, inclinou a cabeça:
“E tendo inclinado a cabeça, entregou seu espírito” (Jo 19,30).
Inclinou a cabeça para significar que aceitava a morte, com plena submissão, das mãos de seu Pai, a quem prestava humilde obediência.
“Humilhou-se a si mesmo, fazendo-se obediente até à morte, e morte de cruz” (Fl 2,8).
Jesus, estando na cruz com os pés e as mãos nela cravados, não tinha liberdade de mover outra parte do corpo além da cabeça. Diz Santo Atanásio que a morte não ousava tirar a vida ao autor da vida e por isso foi preciso que ele mesmo, inclinando a cabeça (única parte que podia mover), chamasse a morte para que viesse tirar-lhe a vida (Quo. Antioc.). Referindo-se a isso, diz Santo Ambrósio que São Mateus, falando da morte de Jesus, escreve: “Jesus, porém, clamando outra vez com grande voz, entregou o espírito” (Mt 27,50), para significar que Jesus não morreu por necessidade ou por violência dos carrascos, mas porque o quis espontaneamente, para salvar o homem da morte eterna a que ele estava condenado.
2. Isso já tinha sido predito pelo profeta Oséias:
“Eu os livrarei das mãos da morte, eu os resgatarei da morte. Ó morte, eu serei a tua morte; ó inferno, eu serei a tua mordedura” (Os 13,14).
Os santos padres São Jerônimo, Santo Agostinho, São Gregório e o próprio São Paulo, como veremos brevemente, aplicam este texto literalmente a Jesus Cristo, que com sua morte nos livrou das mãos da morte, isto é, o inferno, onde se sofre uma morte eterna. No texto hebraico, como notam os intérpretes, e vez da palavra morte, está a palavra “sceol”, que significa inferno. Como se explica que Jesus Cristo foi a morte da morte? “Serei tua morte, ó morte!” Porque nosso Salvador com sua morte veio destruir a morte a nós devida pelo pecado. Por isso escreve o Apóstolo:
“Tragada foi a morte pela vitória. Onde está, ó morte, a tua vitória? Onde está, ó morte, o teu aguilhão? O aguilhão da morte é o pecado” (1Cor 15,54).
O Cordeiro divino Jesus, com sua morte, destruiu o pecado, que era a causa da nossa morte, e esta foi a vitória de Jesus, pois que ele, morrendo, tirou do mundo o pecado e, conseqüentemente, nos livrou da morte eterna a que estava sujeito até então todo o gênero humano. A isso corresponde aquele outro texto do Apóstolo:
“Para que pela morte destruísse aquele que tinha o império da morte, isto é, o demônio” (Hb 2,14).
Jesus destruiu o demônio, isto é, destruiu o poder do demônio, o qual em razão do pecado tinha o império da morte, a saber, tinha o poder de dar a morte temporal e eterna a todos os filhos de Adão, contaminados pelo pecado. E esta foi a vitória da cruz, na qual morrendo Jesus, que é o autor da vida, com a sua morte recuperou-nos a vida. Por isso canta a Igreja:
“A vida suportou a morte e pela morte produziu a vida”.
Isso tudo foi obra do amor divino, que como sacerdote sacrificou ao Eterno Pai a vida de seu Filho unigênito pela salvação dos homens. E assim canta igualmente a Igreja:
“O amor, qual sacerdote, imola os membros do corpo sacrossanto”.
São Francisco de Sales exclamou:
“Consideremos este divino Salvador estendido sobre a cruz, como sobre seu altar de amor, onde vai morrer por amor de nós. Ah, por que não nos lançamos também em espírito sobre a cruz, para morrer com ele, que quis morrer por amor de nós?”
Sim, meu doce Redentor, eu abraço a vossa cruz e a ela abraçado quero viver e morrer, beijando sempre com amor vossos pés chagados e transpassados por mim.
Olhai para a face de vosso Cristo.
1. Mas, antes passar adiante, detenhamo-nos a contemplar o nosso Redentor já morto sobre a cruz. Digamos primeiro a seu divino Pai: “Padre eterno, olhai para a face do vosso Cristo”, vede que é o vosso único Filho, que, para cumprir com o vosso desejo de salvar o homem perdido, veio à terra, tomou a natureza humana e com ela todas as nossas misérias, exceto o pecado. Ele, enfim, se fez homem e quis passar toda a sua vida entre os homens como o mais pobre, o mais desprezado, o mais atribulado de todos, e chegou a morrer, como vedes, depois de os homens lhe haverem rasgado as carnes, ferido a cabeça com os espinhos e atravessado seus pés e mãos com os cravos na cruz. Nesse madeiro ele expira cheio de dores, desprezado como o homem mais vil do mundo, escarnecido como falso profeta, blasfemado como impostor sacrílego, por haver dito que era vosso filho; tratado e condenado a morrer como criminoso e dos mais celerados. Vós mesmo lhe tornastes a morte tão dura e desolada, privando-o de todo o alívio. Dizei-nos que delito cometeu contra vós esse vosso Filho tão querido, para merecer um castigo tão horrendo? Vós conheceis a sua inocência, a sua santidade; por que o tratais assim? Escuto a vossa resposta: “Por causa dos crimes de meu povo eu o feri”. Sim, ele não o merecia, nem podia merecer castigo algum sendo a inocência e santidade mesma. O castigo vos era devido por vossas culpas, pelas quais merecestes a morte eterna, e eu, para não vos ver a vós, minhas amadas criaturas, condenadas eternamente, para nos livrar de tão grande desgraça, entreguei este meu Filho a uma vida tão atribulada e a uma sorte tão acerba. Pensai, ó homens, até que ponto eu vos amei.
“Assim Deus amou o mundo, que lhe deu seu Filho unigênito” (1Jo 4,9).
2. Permiti que eu agora me volte para vós, Jesus, meu Redentor. Eu vos vejo sobre essa cruz, pálido e abandonado, sem fala e sem respiração, porque já não tendes mais vida; sem sangue, porque já o derramastes todo, como havíeis predito antes de vossa morte:
“Este é o sangue do Novo Testamento, que será derramado por vós” (Mc 14,24).
Não tendes mais vida, porque a destes para que minha alma vivesse, porque o derramastes para lavar os meus pecados. Mas por que perdeis a vida e dais todo o vosso sangue por nós, míseros pecadores? São Paulo dá-nos o porquê:
“Ele nos amou e entregou-se a si mesmo por nós” (Ef 5,2).
Assim este divino sacerdote, que foi ao mesmo tempo sacerdote e vítima, sacrificando a sua vida pela salvação dos homens que amava, completou o grande sacrifício da cruz e concluiu a obra da redenção do gênero humano. Jesus Cristo, com sua morte tirou o horror à nossa morte: até então ela era unicamente o suplício dos rebeldes, mas, pela graça e méritos de nosso Salvador, tornou-se um sacrifício tão caro a Deus, que, se o unimos como o da morte de Jesus, nos fazemos dignos de gozar da mesma glória que goza Deus e de ouvir um dia como esperamos:
“Entra no gozo de teu Senhor”.
Ó morte, onde está o teu aguilhão?
1. Se até então era a morte um objeto de dor e de terror, Jesus, morrendo, transformou-a em um trânsito do perigo de uma ruína eterna para a segurança de uma felicidade eterna e das misérias desta vida às delícias imensas do paraíso. Diz Santo Agostinho que os amantes do crucifixo vivem com paciência e morrem com alegria. E, como a experiência nos mostra, as pessoas, que durante a vida foram mais atribuladas pelas perseguições, pelas tentações, pelos escrúpulos ou outros acontecimentos desagradáveis, são na morte as mais consoladas pelo crucifixo, vencendo com grande paz todos os temores e angústias da morte. E se algumas vezes aconteceu que alguns santos, como se lê em suas vidas, morreram com grande pavor da morte, o Senhor o permitiu para maior merecimento deles, pois o sacrifício, quanto mais penoso e duro, tanto mais grato a Deus e mais proveitoso para a vida eterna.
Oh! como era acerba a morte dos antigos fiéis antes da morte de Jesus Cristo! Não havendo o Salvador ainda aparecido, suspirava-se por sua vinda e esperava-se por ele segundo a sua promessa, mas ignorava-se o quando, e o demônio tinha um grande poder sobre a terra, estando o céu fechado para os homens. Depois da morte do Redentor, porém, o inferno foi vencido, a graça divina foi conferida às almas, Deus se reconciliou com os homens inocentes ou expiaram suas culpas pela penitência. E se alguns, conquanto mortos em graça, não entram imediatamente no céu, isso é devido a seus defeitos ainda não inteiramente expiados: de resto, a morte nada mais faz que romper com seus laços para que livres possam unir-se perfeitamente com Deus, do qual vivem como que separados nesta terra de exílio.
Procuremos, pois, almas cristãs, enquanto neste exílio, olhar a morte, não como uma desgraça, mas como o fim de nossa peregrinação tão cheia de angústias e perigos e como princípio de nossa felicidade eterna, a qual esperamos alcançar um dia pelos merecimentos de Jesus Cristo. E como este pensamento do céu desprendamo-nos quanto possível dos objetos terrenos, que podem fazer-nos perder o céu e condenar-nos às penas eternas. Ofereçamo-nos a Deus, protestando querer morrer quando lhe aprouver, aceitando a morte da maneira e no tempo que para nós destinou, suplicando-lhe continuamente que, pelos merecimentos da morte de Jesus Cristo nos faça sair desta vida na sua graça.
2. Meu Jesus e meu Salvador, que para me obterdes uma boa morte escolhestes para vós uma tão penosa e desolada, eu me abandono inteiramente nos braços de vossa misericórdia. Há mais anos que deveria estar no inferno, pelas ofensas que vos fiz, separado para sempre de vós; vós, em vez de castigar-me, como eu merecia, me chamastes à penitência, e espero que a esta hora já me tenhais perdoado, mas, se ainda não me perdoastes por minha culpa, perdoai- me agora que, cheio de dor, me chego a vossos pés, pedindo misericórdia: desejaria meu Jesus, morrer de dores pensando nas injúrias que vos fiz.
“O sangue do inocente lava as culpas do penitente”.
Perdoai-me e dai-me a graça de amar-vos com todas as forças até à morte e, quando chegar o fim de minha vida, fazei-me morrer abrasado em amor por vós, para continuar a amar-vos eternamente. Desde já uno a minha morte à vossa santa morte, pela qual espero salvar-me.
“Em vós, Senhor, eu esperei; não serei confundido eternamente”.
Ó grande Mãe de Deus, vós sereis, depois de Jesus, a minha esperança. “
Em vós, Senhora, eu esperei, não serei confundido eternamente”.
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