Lição 1: Quem eram os Juízes
Josué, ao morrer, não deixou sucessor. As doze tribos de Israel haviam-se estabelecido em seus territórios, mas não tinham governo central. Mais ainda: viam-se em meio à população cananéia local, que não fora expulsa pelos israelitas. Esta convivência com os pagãos era nociva aos filhos de Israel: acarretava perigos, como o da corrupção dos costumes, o dos casamentos mistos e, pior ainda, o da perversão religiosa. Os antigos julgavam que cada país tinha os seus deuses, que podiam reivindicar direitos sobre a respectiva população (cf. Jz 11,24; Ri 1,15, lSm 26,19; 2Rs 17,25-33); ora os cananeus imaginavam que Baal, Aserá e Astarte eram os deuses da região, deuses que garantiam a fertilidade das colheitas e a fecundidade dos rebanhos; os israelitas deveriam, conseqüentemente, prestar homenagem e culto a essas divindades cananéias. Estas idéias exerceram sua influência sobre o povo de Deus e o levaram a um certo ecleticismo religioso; Javé continuou a ser o Deus de Israel; mas o seu culto foi assumindo expressões alheias às da Lei de Moisés; os israelitas puseram-se a cultuá-lo nos bosques, nas colinas, junto às fontes… à semelhança do que faziam os cananeus. Encontram-se vestígios desse sincretismo (ou mistura) religioso em Jz 6,25.31; 8,33; 9,4. . . Aliás, o autor de Jz nota logo no início do livro que, após o desaparecimento da geração de Josué, “seguiu-se-lhe outra, que não conhecia Javé, nem as obras que fizera por Israel. Então fizeram os filhos de Israel o que é mau aos olhos de Javé servindo aos Baals” (Jz 2,10s).
Sem governo central e sem chefe forte, as tribos de Israel encontravam na religião o vinculo que as unia entre si e que mantinha a consciência da sua identidade nacional.
Foi nesse contexto que Javé suscitou juízes em Israel. Estes eram heróis, dotados de força e carisma especiais pelo Senhor, para libertarem uma ou mais tribos de Israel, dominada(s) pelos estrangeiros. Depois de terminarem a sua obra, não tinham continuidade nem dinastia; também não promulgavam leis nem impunham tributos. Os juízes são o testemunho vivo de que Javé nunca abandonou o seu povo, mas foi dirigindo a história deste até mesmo dispensando carismas (ou dons) extraordinários.
O nome de juízes foi dado a esses homens porque a função mais freqüente que compete a um chefe de tribo, é a de julgar as causas ou os litígios da população. A autoridade de cada juiz não se estendia para além dos limites de uma ou de poucas tribos. Somente Eli e Samuel tiveram autoridade que provavelmente abrangia todo Israel; mas, à diferença dos juízes anteriores, não eram chefes de exército (cf. 1Sm 7,8-17).
Do ponto de vista social, os israelitas, após a conquista de Canaã, trocaram a vida nômade (errante) pela vida agrícola e sedentária ou semi- sedentária. Cada tribo em seu território tinha seus próprios interesses e problemas – o que dava lugar ao particularismo ou individualismo; criava-se assim um clima propício ás invasões dos povos estrangeiros, que tentavam sempre subjugar Israel. Preparava-se também o surto da monarquia, forma de governo único para todas as tribos, que garantiria a unidade religiosa e nacional e fortaleceria o povo contra as incursões dos vizinhos hostis.
Lição 2: Conteúdo de Juízes
O livro dos Juízes nos refere as façanhas de doze Juízes. Destes, seis são tidos como maiores, porque apresentados com mais minúcias; tais são Otoniel (da tribo de Judá), Aod (Benjamin), Barac (Neftali), Gedeão (Manasses), Jefté (Gad), Sansão (Da). Os outros seis são ditos “menores”, porque poucas notícias há a respeito deles; tais são: Samgar (Simeão), Tola (Issacar), Jair (Galaad), Abesã (Aser), Elon (Zabulon) e Abdon (Efraím).
Muito possivelmente existiram mais juízes nessa fase da história, mas o autor sagrado quis apresentar precisamente um de cada tribo. Os principais são, sem dúvida, Gedeão (Jz 6-8), Jefté (Jz 11 s) e Sansão (Jz 13-16). Os 21 capítulos de Jz cobrem um período de quase 200 anos, que vai aproximadamente de 1200 a 1050 a.C., ou seja, da morte de Josué até o primeiro rei de Israel, Saul.
A história de cada juiz maior é apresentada dentro de um esquema que põe em relevo a teologia ou o sentido religioso dos acontecimentos. Esse esquema é claramente proposto no inicio do livro (2,11-19) e compreende quatro tempos:
“Os filhos de Israel fizeram o mal aos olhos de Javé (caíram na idolatria)”; cf. 2,11; 3,7.12; 4,1; 6,1.
“Então acendeu-se contra Israel a ira do Senhor, que os entregou às mãos dos saqueadores“; cf. 2,14; 3,8.12; 4,2; 6,1; 10,7…
“Os filhos de Israel, em grande angústia, clamaram ao Senhor“; cf. 2,15; 3,9-15; 4,3; 6,7…
“O Senhor lhes suscitou um juiz ou salvador“; cf. 2,16; 3,9-15; 4,23s… Este liberta do domínio estrangeiro a sua gente.
Geralmente acrescenta-se o número de anos de paz que se seguiram à façanha vitoriosa do juiz. Tal número é esquemático ou arredondado (20,40 ou 80 anos), indicando um período definido, ora mais, ora menos longo; cf. 3,11.30; 5,31; 8,28; 10,2s…
Mediante este esquema, o autor sagrado quer incutir o princípio que já o livro de Josué recomendava: a infidelidade à Lei do Senhor é penhor de desgraças e ruína material para Israel, ao passo que o arrependimento e a fidelidade são penhor de bênção divina, concretizada em vitória sobre os inimigos e prosperidade material. Este modo de pensar é chamado pragmático ou também deuteronômico, porque se acha claramente exposto em Dt 11,26-32; 28,1 -68. Deriva-se do fato de que os judeus antigos não tinham noção de uma vida póstuma consciente, capaz de receber a sanção de Deus (recompensa ou punição); os israelitas, por isto, julgavam que a retribuição do bem e do mal ocorria nesta vida mesma, antes da morte; conseqüentemente identificavam saúde, vida longa, dinheiro, vitória sobre os inimigos como prêmios de uma vida virtuosa, e doença, vida breve, pobreza, derrotas como punição de infidelidade à Lei de Deus.
Eis, em síntese, o conteúdo de Juízes:
Introdução: os filhos de Israel não expulsaram os cananeus (1,1 – 3,6).
Corpo do livro: história dos doze Juízes (3,7-16,31).
Dois apêndices:
- a idolatria de Dã (17,1-18,31)
- a luxúria dos benjaminitas (19,1-21,24).
Notemos alguns problemas de redação:
- a breve notícia sobre Samgar (3,31) interrompe o relato que vai de 3,30 a 4,1;
- a história de Débora e Barac é relatada em poesia (5,1-31), que parece mais presa aos acontecimentos, e em prosa (4,1-24), que põe mais em relevo o sentido religioso da história.
- as histórias de Abimelec (9.1-57) e de Jefté (10,6-12,7) têm caráter antimonárquico, dando a ver as hesitações do povo, que também aspirava à monarquia (17,6; 18,1; 19,1;21,24s).
Julga-se que o livro dos Juízes assim redigido resulta da compilação de documentos diversos feita no decorrer de séculos e terminada em sua forma atual na época de Esdras (séc.V a. C.). Nesta fase da história era muito oportuno lembrar ao povo que voltava do exílio para sua terra: a infidelidade é penhor de desgraças; não existe vantagem em adotar costumes pagãos; o Senhor é sempre fiel às suas promessas e não abandona o seu povo, mesmo quando este O esquece.
Lição 3: A cabeleira de Sansão
A história de Sansão (Jz 13-17) nos diz que, enquanto Sansão tinha longa cabeleira, vencia seus inimigos; mas, desde que lhe cortaram os cabelos, perdeu a sua força extraordinária. Esta história é, à primeira vista, fabulosa. Todavia pode ser entendida dentro do quadro religioso de Israel.
Os israelitas praticavam o voto do nazireato, que significava total consagração a Javé. Esta implicava que nem os cabelos do indivíduo poderiam ser cortados porque pertenciam ao Senhor; o nazireu não poderia tomar vinho, nem suco de uvas nem comer uvas; não devia tocar cadáveres… Cf. Nm 6,1-21. Ora Sansão foi consagrado a Deus como nazireu; cf. Jz 13,3-5. Enquanto ele foi fiel à sua consagração e tinha a cabeleira longa, o Senhor lhe dava força para vencer qualquer inimigo; o seu poder lhe vinha de Deus e não dos cabelos (estes eram apenas um sinal da fidelidade de Sansão a Javé). Eis, porém, que Sansão foi moralmente fraco e revelou o segredo da sua fortaleza a Dalila, mulher estrangeira, à qual se entregou indevidamente; Dalila então lhe cortou a cabeleira, o que era sinal da infidelidade interior de Sansão a Javé. Em conseqüência, o Senhor já não deu ao herói a força necessária para o combate, de modo que Sansão foi vítima de seus inimigos filisteus. Vê-se, pois, que a história de Sansão nada tem de mitológico ou infantil. É verdade que ela vem descrita com um tanto de humor ou sátira: Sansão incendeia os campos acendendo tochas presas às caudas de raposas ligadas em pares (Jz 15,1-8); Sansão arranca e carrega sobre os ombros as portas da cidade de Gaza (Jz 16,1-3)…
Com outras palavras: o episódio de Sansão comprova as palavras de São Paulo: ”A força de Deus se manifesta plenamente na fraqueza do homem que se lhe confia” (2Cor 12,9).
Lição 4: O livro de Rute
O livro de Rute se prende ao dos Juízes pelas suas palavras iniciais: ”No tempo em que os Juízes governavam, houve uma fome no pais”. Há comentadores que o consideram como o terceiro apêndice de Jz.
1. Conta-nos a seguinte historia:
Numa época de fome, um homem de Belém de Judá chamado Elimelec abandonou sua cidade, juntamente com sua esposa Noemi e seus filhos Maalon e Quelion; foi para a terra de Moab1. Nesta Elimelec faleceu e, pouco depois, faleceram também os dois filhos, que tinham esposado as moabitas Orpa e Rute. Noemi então decidiu voltar a Belém; as duas noras quiseram acompanhá-la, mas a sogra as dissuadiu. Orpa acabou retirando-se, mas Rute fez questão de seguir Noemi até Belém (c. 1). Em Belém, Rute, querendo atender às necessidades da sogra, foi colher espigas num campo; soube mais tarde que tal campo pertencia a um parente próximo de Elimelec, chamado Booz. Este se interessou fortemente pela moabita (c. 2). Noemi viu que poderia suscitar uma descendência legal a Elimelec e Maalon se recorresse lei do levirato (esta mandava que, quando um homem morresse sem filhos, o parente mais próximo devia esposar a viúva para dar uma descendência legal ao falecido; cf. Dt 25,5-10). Por isto mandou que Rute informasse Booz a respeito do dever de esposar a moabita; Booz aceitou a idéia, mas observou que havia um parente ainda mais próximo, cujo direito era prioritário (c. 3). Este, porém, renunciou solenemente, de modo que Booz esposou Rute; desta união nasceu um filho, que legalmente era filho e herdeiro de Elimelec. Noemi, mãe legal da criança, deu-lhe o nome de Obed e encarregou-se de criá-lo; Obed tornou-se o pai de Jessé (ou Isaí), pai do rei Davi (c. 4).
A principal finalidade do livro é transmitir uma história edificante referente às origens da família de Davi. Este teve entre os seus antepassados uma moabita, isto é, um membro de um povo que por séculos se mostrou hostil a Israel (cf. Gn 19,30-37; 2 Rs 3,4-27); o livro, portanto, se opõe a um nacionalismo exagerado que sempre marcou os filhos de Israel; ensina a universalidade da salvação preparada por Deus para todos os homens (cf. Rt2,12), fazendo parelha assim com o livro de Jonas, que é outra obra prima do universalismo da salvação. Mateus, ao descrever a genealogia de Jesus, filho de Davi, fez questão de mencionar Rute entre os antepassados do Messias (cf. Mt 1,5), para significar que este não é filho apenas de israelitas, mas tem sangue de não israelitas e, por conseguinte, é o Salvador não só dos judeus, mas de todos os homens.
2. Notemos a delicadeza dos personagens que entram no enredo: Elimelec, para salvar da fome a família, refugia-se em terra estrangeira (Rt 1,1); Noemi, esquecendo seus interesses, preocupa-se com o futuro das noras (1,8¬13); Rute, para acompanhar a sogra, resolve abandonar a própria família, a pátria e a religião (1,14-18); Booz está disposto a cumprir a lei do levirato, ama Rute, mas quer, antes do mais, respeitar o direito de um parente mais próximo (4,1-6).
A narração é de grande valor literário; está marcada por quadros antitéticos: a tristeza do começo (1,1-5) e a grande alegria do fim (4,11-17); a instabilidade de Orpa (1,14) e a fidelidade de Rute (1,14-17); o egoísmo do próximo parente (3,12; 4,4-6) e a magnanimidade de Booz (4,9). Noemi é o símbolo da solicitude; Rute, o da docilidade; e Booz, o da dedicação à família.
3. Quanto à historicidade do livro, observemos:
Os nomes dos personagens são, em parte, simbólicos:
- Maalon significa enfermidade;
- Quelion, aniquilamento;
- Orpa, aquela que volta as costas;
- Noemi, minha doçura ou minha graciosa;
- Rute, amiga ou companheira.
Isto leva alguns estudiosos a crer que se trata de personagens imaginários, não históricos. Todavia é preciso reconhecer que estes significados não são absolutamente certos; além disto, entre os semitas os nomes próprios têm quase sempre valor simbólico.
Em favor da historicidade do livro, pode-se citar, entre outras coisas, o fato de que Davi, perseguido, pediu asilo ao rei de Moab em favor de seus genitores (cf. 1Sm 22,3). Isto leva a supor especial relacionamento de Davi com os moabitas. Em 1 Cr 2,12-15, Booz é apresentado como bisavô de Davi, noticia esta que se pode derivar de uma tradição independente do livro de Rute. É muito pouco provável que um autor posterior tenha imaginado uma mulher moabita entre os antepassados de Davi, pois havia hostilidade entre judeus e moabitas e a figura de Davi seria desvalorizada por tal parentesco. Donde se depreende que o livro de Rute se refere a verdadeiros fatos históricos.
Para melhor estudo:
BALLARINI, T., Introdução à Bíblia ll/2. Ed. Vozes 1976.
CASTANHO, A., Iniciação à leitura da Bíblia. Ed. Santuário, Aparecida 1980.
LÃPPLE, A., Bíblia: Interpretação atualizada e catequese. Antigo Testamento, Vol. 1. Ed. Paulinas 1978.
VAN DEN BORN, A., Dicionário Enciclopédico da Bíblia. Ed.Vozes 1971, verbetes “Juizes”, “Juízes (livro)”, “Rute”.
Perguntas sobre os livros dos Juízes e de Rute
1) O episódio de Jz 2,11-19 apresenta uma certa “teologia da história”. Poderia propô-la com suas palavras ?
2) Sansão propôs um enigma aos seus adversários. Qual foi esse enigma e que quer dizer? Indique as passagens de Jz.
3) Joatão propôs aos seus irmãos um apólogo ou uma fábula na qual as plantas falam. Que fábula foi essa? Que quer dizer? Indique capitulo e versículos.
4) O livro dos Juízes apresenta um poema épico ou uma canção que descreve uma vitória. Indique capítulos e versículos e diga que vitória foi essa.
5) Em Rt4,7 a sandália é símbolo de quê? Para responder, consulte Sl59(60), 10; Sl 107 (108), 10.
6) Em Rt2,12 são mencionadas “asas de Javé”. Que significam? Para responder, consulte Dt 32,11; Sl 90(91), 4; Sl 16(17), 8.