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Os Livros de Samuel

Lição 1: O conteúdo de 1/2 Samuel

Na Bíblia hebraica estes dois livros constituem um só, com o título: Livro de Samuel. Foram divididos em dois pelos tradutores alexandrinos (LXX) a fim de facilitar o uso dos manuscritos. A divisão passou para as traduções latinas e vernáculas, assim como para o texto hebraico.

São Jerônimo († 421), supondo que os livros de Samuel e dos Reis fossem uma obra só, designou-os do seguinte modo: 1/2/3/4 Rs. Esta nomenclatura encontra-se em antigas edições baseadas na Vulgata latina, mas já não está em uso.

Os dois livros de Samuel continuam a história narrada por Jz, ao qual se ligam pelas figuras dos últimos juízes Eli e Samuel, e pela presença dos filisteus. Estendem essa história a partir da figura de Eli, juiz, até o final do reinado de Davi, passando por Samuel e Saul, ou seja, desde 1050 até 970 a.C.

A freqüente observação de Jz: “Naqueles dias não havia rei em Israel e cada um fazia o que bem lhe parecia” (17,6; 18,1; 19,1; 21,25) supõe certa anarquia entre as tribos de Israel introduzidas por Josué na terra prometida. Os inimigos (filisteus, madianitas, amorreus, amalecitas…) assediavam o povo por todos os lados, ameaçando a sua sobrevivência. Fazia falta um chefe único que mobilizasse todo o Israel e garantisse tanto a unidade nacional como a fidelidade religiosa das tribos.

Samuel, o último dos Juízes, foi encarregado pelo Senhor de procurar ungir o primeiro rei de Israel, chamado Saul (1Sm 8,1-10,8), da tribo de Benjamin. A monarquia correspondia a um anseio do povo, principalmente depois da derrota de Afec, infligida pelos filisteus a Israel (1 Sm 4,1-11). Saul começou a reinar por volta de 1030, apoiado por todas as tribos de Israel. O seu reinado decorreu quase todo em guerras de defesa, que terminaram com dolorosa derrota de Saul em Gelboé (1Sm 31,1-10) e a morte do rei (1010 aproximadamente). Por conseguinte, Saul não pôde cuidar da organização social, jurídica e administrativa do povo. Ademais o rei Saul foi rejeitado pelo Senhor, dado que lhe desobedecera (cf. 1Sm 13,8-15, 15,10-23). Davi, seu sucessor, da tribo messiânica de Judá, a princípio ainda teve que lutar contra os filisteus, que ele conseguiu vencer definitivamente; pôde estabelecer a capital do reino em Jerusalém, antiga fortaleza dos jebuseus; dilatou as fronteiras do território nacional e procedeu à organização administrativa do país. Todavia, quando morreu Davi, por volta de 970, a unidade nacional estava em perigo; as tribos do Norte não se harmonizavam devidamente com as do Sul; a revolta de Absalão, filho de Davi, foi apoiada por gente do Norte (1 Sm 15,1-19,44)…Tal rivalidade entre o Norte e o Sul do país explodiria no cisma das dez tribos setentrionais em 930 a.C.

Os dois livros de Samuel podem ser distribuídos em três partes:

I. Samuel é juiz: 1Sm 1,1-7,17

II. Saul é rei: 1Sm 8,1-15,35

  • A escolha de Saul: 1Sm8,1-12,C5
  • A rejeição de Saul: 1Sm 13,1-15,35

III. Davi é rei: 1Sm 16,1-2Sm 24,25 .

  • Saul e Davi: 1Sm 16.1-31,13
  • A Glória do rei Davi :2Sm 1,1-8,18
  • Crônica da família de Davi: 2Sm 9, 1-20,26
  • Apêndices referentes a Davi: 2Sm 21,1-24,25

Ponhamos em relevo especial as três figuras principais.

Lição 2: Samuel, Saul e Davi

2.1. Samuel

Uma mulher estéril, chamada Ana (= graça), sofria por não ter filhos, ou por não poder colaborar para a vinda do Messias, prometido à linhagem de Abraão. Isto lhe parecia uma maldição de Deus. Tendo rezado, obteve um filho: Samuel ( = Deus ouviu). Na Bíblia, o filho dado a uma mulher estéril tem sempre uma missão particular (ver Isaque, Gn 18,1-15; Sansão, Jz 13,1-25; João Batista, Lc 1,5-17); assim também Samuel.

De fato, Deus chamou Samuel enquanto dormia e confiou-lhe a chefia do povo em lugar de Eli, o juiz fraco que governava o povo. Compare a vocação de Samuel em 1Sm 2,1-18 com a de Abraão em Gn 12,1-3, a de Moisés em Ex 3,1¬12, a de Isaías em Is 6,1-13, a de Jeremias em Jr 1,4-10, a de Ezequiel em Ez 3.1- 11, a do Servidor de Javé em Is 49,1-9, a de Amos em Am 7,14s. Eli, sabendo que Deus rejeitara sua descendência, morreu triste aos 98 anos de idade (1Sm 4.12-18). Os filisteus então infligiram tremenda derrota a Israel, capturando a arca da Aliança em Afec (1Sm 4,1-11; 5,1-12), mas resolveram devolvê-la (1Sm 6,1-7,1).

2.2. Saul

Dada a insegurança das tribos em seus territórios, os anciãos de Israel pediram a Samuel um rei; o Senhor, consultado por Samuel, quis atender ao pedido, fazendo ver que o rei poderia extorquir os bens dos filhos de Israel (1Sm 8.1- 22). Foi escolhido, por revelação do próprio Deus, o jovem Saul, da tribo de Benjamin, que Samuel ungiu como rei (1Sm 9,1-10,16).

Desde o começo do seu reinado, Saul teve que enfrentar os inimigos estrangeiros: venceu os amonitas (1Sm 11,1-11). Mas foi rejeitado por Deus, pois transgrediu preceitos do Senhor(1Sm 13,7-15; 15,1-31).

O resto da vida de Saul é descrito em 1Sm 16-31; consta de perseguição a Davi, que Deus escolhera para lhe suceder (Saul parece ter sofrido de doença psíquica, que lhe tirava a paz e a capacidade de conviver; cf. 1Sm 18,1-16); batalhas (1Sm 14,52: “enquanto viveu Saul, houve encarniçada guerra contra os filisteus”), derrota final e morte em Gelboé (1Sm 31,1-13).

2.3. Davi

Tendo rejeitado Saul, Deus mandou que Samuel procurasse o seu sucessor: seria Davi, o mais novo dos filhos de Isaí ou Jessé, que Samuel ungiu rei (1Sm 16,1-13): “O Espírito do Senhor se derramou sobre Davi” (16,13).

Tocador de harpa, Davi foi chamado por Saul para suavizar o seu mau humor, passando assim para a corte real (1Sm 16,14-23). Os filisteus desafiavam Israel, representados pelo gigante Golias; Davi se apresentou então para enfrentar e combater Golias, obtendo, por graça de Deus, maravilhosa vitória (1Sm 17,1-58); esta aumentou muito o prestigio de Davi. O jovem guerreiro tornou-se grande amigo de Jônatas, filho de Saul, que passou a enciumar-se do seu rival e procurou ferir mortalmente Davi (1Sm 18,1-19,17); Davi teve que fugir, mas antes celebrou uma aliança com Jônatas (20.1-21,1). Começou então a via dolorosa de Davi, que vivia em cavernas (1Sm 22,1-23) e no deserto (1Sm 23.1- 24,23). Apesar da malvadez de Saul, Davi soube ser generoso para com o rei, que ele podia ter assassinado (1Sm 26,1-25).

O segundo livro de Samuel é inteiramente consagrado a Davi, visto que a princípio constituía uma só e mesma obra com o precedente. Notemos que 2Sm tem seu paralelo em 1 Cr 11-29; é interessante ler este outro livro depois de 2Sm para se perceberem as diferenças de enfoque: o 2Cr omite as faltas de Davi, procurando pôr em relevo a figura do rei “segundo o coração de Deus”.

Em 2Sm merecem atenção o cap. 7, com a sua profecia messiânica (7,5¬17), os cc. 11 e 12, que falam do pecado e do arrependimento de Davi (o rei procedeu como um homem sensual e cruel, mas soube reconhecer Natã o enviado de Deus), o c. 24, que narra outro pecado de Davi, do qual o rei se arrependeu. Diz S. Ambrósio que pecar é comum a todos os homens, mas arrepender-se é próprio dos santos.

Lição 3: Origem e historicidade de 1/2 Sm

1. Quem lê 1/2Sm com atenção, verifica que não foram escritos de uma vez nem pelo mesmo autor, mas que são obras de compilação. Com efeito, aí se encontram numerosas repetições:

Em 1Sm 16,14-23; 17,1-11.32-39, Davi é introduzido na corte como músico que acalma o espírito atormentado do rei. Mas em 1Sm 17,12-31.40-58; 18.1- 5 Davi aparece como jovem pastor que casualmente entra no acampamento dos israelitas e é admitido à corte de Saul depois de ter derrotado Golias(1 Sm 17.12- 31.40-58; 18,1-5).

Há dois atentados contra a vida de Davi: 1Sm 18,10s e 19,9s. Há duas narrações da instituição da monarquia: uma favorável à monarquia (9,1-10,16; 11.1- 15), outra desfavorável (8,1-22; 10,17-25; 12,1-25).

Duas vezes são narrados o sucesso e a popularidade de Davi, 1 Sm 18.12- 16 e 25-30.

Duas vezes ocorre a promessa de dar como mulher a Davi uma filha de Saul: 1Sm 18,17-19 e 20-27.

Duas vezes Jônatas intervém em favor de Davi: 1Sm 19,1-7 e 20,1- 10.18-39.

Duas vezes é narrada a fuga de Davi: 1Sm 19,10-17 e 20,1-21,1

Duas vezes Davi poupa a vida de Saul: 1 Sm 24 e 26.

Duas vezes é relatada a morte de Saul: 1Sm 31,1-6; 2Sm 1,1-16.

Por conseguinte, Samuel não é o autor de 1/2Sm, mas uma das suas principais figuras. Estamos diante de uma obra que tem vários autores desconhecidos, que elaboraram paulatinamente a narração na base de documentos e fontes (cf. 2Sm 1,18: o Livro do Justo é citado). Deram-lhe a forma final possivelmente no séc. VIII a.C.

2. A fidelidade histórica de 1/2Sm se deduz das seguintes considerações:

  • as fontes usadas pelos redatores são assaz antigas, como reconhecem os pesquisadores. Em parte, trata-se de narrações confeccionadas na corte mesma do rei Davi, que tinha seus escribas ou cronistas. Os acontecimentos relativos a Saul foram consignados por escrito pouco depois de ocorridos (ver especialmente 1Sm 9,1-10,16). O chamado “ciclo da arca” (1Sm 4-6; 2Sm 6) deve derivar-se do colégio de sacerdotes do tempo de Davi e Salomão.
  • os livros de 1/2Sm descrevem com imparcialidade as fraquezas e desgraças pessoais e familiares não só dos personagens menos importantes como Eli e seus filhos (1Sm 2,12-17.27-36; 3,11-18; 4,12-18), mas também de Samuel (1 Sm 8,1-14), de Saul (1 Sm 13;15) e Davi (2Sm 11,1-12,23).

Essa maneira objetiva de apresentar personagens históricos é pouco habitual nas crônicas da antiguidade oriental, que se caracterizavam por histórias fabulosas (no Egito) ou por secos anais (Assíria e Babilônia). Somente os historiadores gregos possuíam tal senso de objetividade. Aliás, somente em Israel e na Grécia a história foi, na época pré-cristã, cultivada com seriedade. Em Israel, o fato se explica pelo conceito que os israelitas tinham de história: consideravam-na revelação de Deus, discurso do Senhor que se dava a conhecer através de fatos históricos e de palavras protéticas; as palavras explicavam e interpretavam os fatos, estes confirmavam e ilustravam as palavras. Na verdade, o judaísmo e o cristianismo são religiões baseadas na história, que é altamente estimada pelas duas tradições.

3. Do ponto de vista religioso, 1 /2Sm têm especial importância por apresentarem a figura de Davi, “o homem conforme o coração de Deus” (1Sm 16,14). Sem dúvida, Davi foi homem sensual, violento, fraco em relação aos filhos. Mas também foi penitente e piedoso. Tinha confiança no auxilio de Deus (1Sm 17,45-47), zelava pelo culto de Deus (2Sm 6,1-22; 7,1s); ouvia reverente as palavras do Senhor (1 Sm 30,8s; 2Sm 2,1 s; 12,13); sabia ser grato pelos benefícios da Providência (2Sm 7,18-29; 22,1 -51); orava e adorava a Deus com fervor (2Sm 12,20; 15,25s)… Recebeu do profeta Natã a promessa de um trono perpétuo, sobre o qual se sentaria seu Filho por excelência, o Messias Jesus (2Sm 7,1-17, especialmente 12-16), por isto, a partir de Davi a esperança messiânica em Israel e nas Escrituras está associada a Davi. Os profetas, ao anunciarem o Messias, propõem-no como Filho de Davi, cf. Jr23,5s; Ez 34,23s; Is 9,1-6; 11,1-9; Am 9,11; Os 3,5. Mesmo depois que em Judá a monarquia caiu, persistiu a fé nas promessas de Deus em favor de Davi, cf. SI 68(69), 20-52; Jr 33, 14-26; Is 55,3s.

Por isto também os Evangelhos apresentam Jesus como Filho de Davi: Mt 1,1;2,5s; Jo 7,42; Mc 10,47s; 11,1. O reino, porém, do Messias não é simplesmente a continuação do reino terrestre de Davi, mas não é reino deste mundo (Jo 18,36).


Para ulterior aprofundamento:
BALLARINI, I., Introdução à Bíblia M/2. Ed. Vozes 1974.
CASTANHO, A., Iniciação à leitura da Bíblia. Ed. Santuário 1980.
GRUEN, W., O tempo que se chama hoje. Ed. Paulinas 1977.
LÃPPLE, A., Bíblia: interpretação atualizada e catequese. Antigo Testamento l. Ed. Paulinas 1978.

Perguntas sobre os Livros de Samuel

1) O cântico de Ana em 1Sm 2,1-10 lembra-lhe algum cântico do Novo Testamento? Compare os dois entre si.
2) Em 1Sm 13,8-15 e 15,7-23 narra-se a rejeição de Saul. Explique porque se deu em cada caso.
3) Em 2Sm 1,18 é citado o Livro do Justo. Aparece esta fonte em outra passagem bíblica? Indique onde.
4) Em 2Sm 5 procure as palavras com que os jebuseus zombavam de Davi. Que significam ?
5) A construção do templo não foi permitida a Davi (cf. 2Sm 7,5-11). Mas em 2Sm 24,18-25 Davi não prepara a construção do templo? Ver 1Cr21,18-22,19 e explicar a aparente contradição.