O que é a inveja
A inveja, diz Santo Agostinho, é o ódio pela felicidade dos outros: Quid invidia, nisi odium felicitatis alienae? (Homil. XX, inter L.).
O que é inveja?, perguntaram a Aristóteles. É, respondeu ele, a antagonista da prosperidade (Etich.).
A inveja é o triste e secreto efeito de um orgulho pusilânime, que se sente rebaixado ou apequenado por qualquer brilho dos outros, e não pode suportar a mais insignificante luz.
A inveja é uma paixão abominável
A inveja é a mais baixa, a mais odiosa, a mais vituperada de todas as paixões, diz Bossuet; porém, talvez a mais comum e aquela de quem poucas almas acham-se inteiramente puras. Os homens querem manifestar delicadeza, e a compaixão de nosso amor próprio nos faz tão grandes à nossa própria vista que, então, consideramos um atentado a nós mesmos a menor esperança de contradição, e arrebatamo-nos por pouco que nos fira. Porém, o mais particular e desregrado em nós, é que tão delicados somos, que os prósperos nos irritam sem fazer-nos mal, ferem-nos sem tocar-nos.
Alguém, por exemplo, faz sua fortuna inocentemente; e nos converte em inimigos seus com seu bom êxito: então, ou sua virtude nos faz sombra, ou sua reputação nos ofusca.
Os escribas e fariseus não suportavam sofrer a (presença de) Jesus Cristo, nem a pureza de sua doutrina, nem a inocente simplicidade de sua vida e de sua conduta, que confundia sua hipócrita inveja, seu orgulho e sua avareza.
Ó inveja, exclama perfeitamente São Gregório Nazianzeno, tu és a mais justa e a mais injusta de todas as paixões! Injusta certamente, porque afliges aos inocentes; porém, justa também, por outro lado, porque castigas os culpáveis. Injusta, porque atormentas a todo o gênero humano; porém, soberanamente justa, porque começas tua obra maligna pelo coração que te concebe (Anton. in Meliss., lib. I, c. XXVI).
A inveja atormenta aquele que a possui
A inveja é o tormento supremo daquele que lhe dá abrigo. Assim como a ferrugem consome o ferro do qual saiu, diz Antístenes, assim é consumido o invejoso por seu próprio vicio: Sicut ferrum consumit rubigo ex ipsomet nata, ita invidus suo ipsius vitio contabescit (Apud. Laertium, lib. VI, c. I).
A inveja, diz São João Crisóstomo, é sempre o verdugo de seu autor: ela faz mais sensível o sofrimento, atormenta o espírito, crucifica a alma e corrompe o coração. Que mais diremos? Aquele que a abriga, experimenta sua tirania e seu suplício sem término, porque é amigo do guardar a este inimigo doméstico.
Que finalidade podem ter os tormentos de quem se aflige pelo bem dos outros, daquele que se atormenta pela felicidade dos outros?[1] O invejoso está sempre agitado, está furioso como um lobo voraz, pleno de indigência e de miséria.
A inveja é um veneno lento que arruína a saúde. Conhece-se ao invejoso por seu rosto pálido e pleno de ira; imita a Satanás e participa de seu crime. A inveja cega, e amontoa a ira e a tristeza.
Sócrates compara a ação da inveja sobre o espírito com a serra no corpo: Invidia est animi invidentis serra (Anton. in Meliss., lib. I, c. XXVI).
A inveja, diz Santo Agostinho, é o verme roedor da alma, sua mancha e seu verdugo, é uma víbora: Invidia est animae linea, tabes, carnifex, vipera (De Morib.).
Perguntando-se a Sócrates que é o que é danoso aos bons e mais atormenta aos maus, respondeu: A felicidade dos maus é danosa aos bons; e a prosperidade dos bons atormenta aos maus com a inveja (Anton. in Meliis., lib. I, c. XXVI).
Os irmãos de José conceberam uma inveja mortal, porque Jacó amava mais a este que a eles. E daí nasceu o ódio, a ira e a vingança (Gn 37, 4).
O invejoso tem olhos enfermos; tudo o que é brilhante e formoso, ofende-o e prejudica-o; está agitado, atormentado pela glória e a virtude dos demais; e sua inveja aumenta à medida que se acrescentam a glória e a virtude do próximo.
O invejoso é duas vezes desgraçado; e é assim por seus males e pelos bens dos outros. O invejoso faz, muitas vezes, com sua inveja, maior e mais feliz aquele cuja posição ele cobiça; assim, os irmãos de José, com sua cruel inveja foram causa da elevação, da honra e da glória de seu irmão.
São Gregório ensina que o invejoso tem um espírito pusilânime, um coração estreito, vil e abjeto; porque, tendo inveja dos demais, prova que é menor que eles e que lhes é inferior; dá à luz sua pequenez e sua pobreza, e prova, com efeito, que não possui aquilo que inveja e tanto cobiça (Lib. V., Moral).
A inveja chega mesmo a abater e consumir o corpo. Assim dizem os Provérbios que a inveja é câncer dos ossos: Putredo ossium invidia (Pr 14, 30). A inveja é a mais cruel das enfermidades e a mais terrível morte do coração.
O invejoso sofre porque outro possua tanto quanto ele; e sente por ter menos que o outro.
Ó inveja, exclama São João Crisóstomo, manancial da morte, enfermidade que contém todas as enfermidades, e agudíssima lança que atravessa o coração! O invidia, mortis radix, multiplex morbe, cordis acutissime clave! (Anton. in Meliss., lib. I, c. XXVI).
Ó suprema injustiça da inveja! Exclama Palades: O invejoso odeia a felicidade dos outros: O maximam invidiae improbitatem! Invidiosus odit fortunatum (Apud Stobaeum, Serm. XXXVIII).
Aquele que inveja a opulência, dizem os Provérbios, não vê que cairá na pobreza: Qui aliis invidet, ignorat quod superveniet ei (Pr 28, 22).
A inveja, diz São Bernardo:
1.° É a lepra da alma;
2.° Destrói o bom senso;
3.° Queima as entranhas;
4.º Sobrecarrega o espírito de pesar;
5.° Rói o coração como um câncer; e
6.° Aniquila todos os bens com seus envenenados ardores.
O invejoso comete um pecado invejando aos demais. Ó invejosos que cobiçais a felicidade alheia, não destruas assim a vossa; porque, se a morte
espiritual acompanha sempre a inveja, não podereis simultaneamente invejar e viver[2]
A inveja, diz a Escritura, é um tormento implacável como o Inferno; suas brasas, brasas ardentes e um vulcão de chamas: Dura sicut infernos aemulatio; lampades ejus, lampades ignis atque flammarum (Ct 8, 6).
A inveja é o veneno mais poderoso do amor próprio; este veneno começa por consumir aquele que o lança sobre os outros, e o leva aos mais obscuros atentados. O orgulho é naturalmente empreendedor e quer brilhar; porém, a inveja é hipócrita: ela oculta-se sob toda classe de pretextos e deleita-se nos mais secretos e ocultos relacionamentos.
Furores e estragos da inveja
A inveja, diz São João Crisóstomo, é uma espécie de peste; e coloca ao homem na condição em que se encontra o demônio, e faz dele próprio um dos mais cruéis espíritos infernais. A primeira morte foi cometida pelas mãos da inveja; a inveja desconheceu o amor fraternal: Invidia pertiferum malum, hominem in diaboli conditionem, atque in daemonem immanissimum convertit. Invidia prima hominis cedes apparuit, invidia fraterna caritas contempla est (Homil. XLI, in Matth.).
1.º A inveja manifesta um espírito vil e desprezível;
2.° inveja não aguenta superioridades;
3.° Impede e destrói muitas vezes as maiores coisas;
4.° É amarga e está plena de fel;
5.° Compraz-se em duas principais coisas: em alegrar-se dos males alheios e em afligir-se pela prosperidade dos outros; e
6.° É a desgraça suprema do homem.
O invejoso, diz São Basílio, é aborrecido em tudo e para todos; é semelhante a um navio agitado pela tempestade; é semelhante aos demônios: Vir invidus omnibus modis execratur; invidus similis navi cum jactatur a fluctibus maris; invidus homoparticeps demoniorum efficitur (Homil. de Invid.).
A inveja foi, diz Santo Agostinho, o que afastou o Anjo do Céu e ao homem do Paraíso terrestre; foi ela que matou Abel; que muniu aos irmãos de José; lançou Daniel na cova dos leões; crucificou a Jesus Cristo, e enforcou a Judas. Ó meus irmãos, pregai em alta voz que a inveja é o animal feroz que arrebata a fé, destrói a concórdia, aniquila a justiça, e gera todos os males. Foi ela que destruiu os muros de Jerusalém, despovoou Roma, arrasou a Cartago, e devastou a cidade de Tróia[3].
Fujamos da inveja como de um mal intolerável, diz São Basílio, como sendo o resultado da ordem dada pela Serpente, a invenção do demônio, o alimento de nosso inimigo, as penhor do castigo, um obstáculo para a piedade, o caminho do Inferno, e a provação do Reino dos Céus. Os invejosos convertem em vícios até as mais belas virtudes, não deixando nunca de caluniar a tudo o que é digno de louvor[4].
Pela inveja do diabo entrou a morte no mundo, diz a Sabedoria: Invidia autem diaboli mors introivit in orbem terrarum (Sb 2, 24).
São João Crisóstomo chama a inveja de invenção de Satanás, a mais espantosa peste, o mais negro e horrível vício, a fera selvagem que a tudo destrói, fazendo desaparecer toda salvação (Homil. XXII, in Gen.).
A inveja, diz São Gregório de Nissa, é o maior dos males, mãe da morte, primeira porta do pecado, e raiz de todos os vícios: Invidia malorum princeps, mortis mater, primapeccati janua, vitiorum radix (Homil. in Gen.). A inveja, diz o mesmo Santo Doutor, é o princípio das dores, a mãe da miséria, a causa da desobediência, o manancial da ignomínia, o aguilhão envenenado, um punhal oculto, a enfermidade da natureza, uma bílis venenosa, uma chaga funesta, um dardo de fel, um potro que doma o homem, uma chama que devora o coração, e um fogo interior. Os invejosos são aves de rapina (Homil. in Gen.).
Os invejosos, diz São João Crisóstomo, são piores que leões, semelhantes aos demônios, e ainda quase pior que estes; porque os leões nos atacam movidos por fome, ou porque lhe provocam e lhe irritam. Porém, fazendo benefícios aos invejosos, correspondem aos benfeitores fazendo-lhes danos; quando são atraídos com favores, somente atacam e perseguem. E até os mesmos demônios, ainda que seja verdade que fazem uma guerra encarniçada, não se perseguem uns aos outros. Por isso, Jesus Cristo tapou a boca dos judeus invejosos, quando, movidos pelo rancor, diziam que Ele expulsava os demônios em nome de Belzebu, príncipe dos Anjos maus. Se Satanás, respondia Ele, lança fora a Satanás, é contrário a si mesmo. Como, portanto, haverá de subsistir seu reino? Por esta razão, acrescentou Ele, os mesmos demônios serão vossos juízes: Si Satanas Satanam ejicit, quomodo stabit regnum ejus? Ideo ipsi judices vestris erunt (Mt 12, 26-27). Porém, os invejosos não respeitam a seus semelhantes, nem tampouco a seus parentes. Fazem- lhes uma guerra cruel; porque um invejoso detesta ao outro invejoso, o ciumento amaldiçoa ao outro ciumento.
Este crime, acrescenta São João Crisóstomo, não é perdoável: Omnia venia caret hoc peccatum. O lascivo, com efeito, pode dar uma desculpa pela força da concupiscência; o ladrão, por sua vez, pode alegar a necessidade e a pobreza; o assassino pode desculpar-se com sua ira. Porém, vós, ó invejosos, dizei-me, qual desculpa podereis dar? Itu vero quam dices causam, rogo? Nenhuma, senão vossa perversidade sem limites: Nullam penitus, nisi tantum intensam nequitiam. Este vício é pior que a fornicação e até mesmo que o adultério: Hoc vitium, et fornicatione pejus est, et adulterio. Porque o furor do vício impuro encontra limites na mesma ação; porém, o furor e os estragos da inveja destroem a Igreja e o mundo inteiro. Pela inveja, o demônio matou ao gênero humano na pessoa de Adão (Homil. in Gen.).
A inveja motiva todos os enganos, todas as dissimulações, as suspeitas, os ódios, as guerras, as seduções, os cismas, as heresias e todas as revoluções políticas e religiosas. Morra, pois, a inveja, que tantos estragos tem causado!
A inveja alegra-se de todos os males e aflige-se a respeito dos bens do próximo. Opõe-se a todas as ações honrosas, diz Aristonyme: Invidia honestis actionibus obstitit (In Diatrib.).
A inveja é um açoite espantoso, diz São João Crisóstomo; este açoite estendeu-se pelo mundo inteiro, assolando tudo. Daí, provém a injustiça, as feridas, os ódios e a avareza (Homil. LXII in Johann.).
Os espantosos estragos da inveja são palpáveis, são inumeráveis, diz São Cipriano. A inveja é a raiz de todos os males, o manancial das disputas e pleitos, o arsenal de todos os crimes, e a matéria de todas as desordens. A inveja mata o temor de Deus e a ciência de Jesus Cristo. A inveja faz esquecer tudo: a morte, o juízo, a salvação e até Deus (Tract. de Zelo et Livore).
Os invejosos, diz São Próspero, amam o mal, e sentem e choram o bem; ardem em inimizade gratuita, e estão plenos de hipocrisia; sempre cheios de amargura, sempre vacilantes, são os amigos do demônio, e os inimigos de Deus, da sociedade e de si mesmos; são odiosos a todos os homens, atormentam-se pelo que deveria ser seu consolo, e transbordam de alegria quando deveriam chorar amargamente. Perversos e cruéis para si mesmos, eles o são também para os demais (De Vita Contemplat., lib. III, c. IX).
A inveja tem por parentes o ódio, a maledicência, a calúnia, a alegria nas desgraças, e a tristeza nas prosperidades alheias.
A inveja, diz São Cipriano, excita a ambição, o desprezo de Deus e de seu serviço; excita o orgulho, a perfídia, a prevaricação, os acessos de ira, as discórdias e crueldade; a inveja não aguenta sofrer nem conter-se quando encontra a autoridade em seu caminho. Ela rompe os laços da paz e da caridade; ela corrompe a verdade, destrói a unidade, e encaminha-se diretamente ao cisma e à heresia. Que crime mais horrível por existir que ter inveja da virtude e da felicidade dos outros, e detestar neles seus méritos naturais e sobrenaturais! Que pecados converter em mal o bem dos demais, não poder suportar o progresso dos outros, e experimentar um atroz tormento pela felicidade alheia. Que loucura e que furor o dar entrada em nosso peito a tal carrasco, a um tirano que rasga as entranhas (Serm. de Zelo et Livore).
A inveja, ao princípio, oculta-se; traduz-se primeiramente em maledicências disfarçadas; e, logo depois, em calúnias, em traições; e todos os maus artifícios, que são sua obra e herança, vem seguindo a marcha da Serpente. Porém, quando, com tão tristes e sombrios artifícios, a inveja se sobrepôs a tudo, então, explode e reúne contra o inocente, cuja glória o confunde, o insulto e a zombaria, com toda a amargura do ódio, e os últimos excessos da crueldade.
E a inveja é um mal sem fim… Os outros males, diz São Cipriano, tem um término; porém, a inveja não o tem; é um mal que sempre é mal, é um pecado sem fim: Mala coetera habent erminum, invidia hominum nom habent; permanens jugiter malum, et sine fine peccatum (Serm. de Zelo et Livore).
Remédios contra a inveja
Os remédios contra a inveja são:
1.° A humildade;
2.° A modéstia;
3.° O desprezo da glória e dos bens temporais;
4.° O desejo dos bens eternos; e
5.° A temperança em meio às riquezas exclui também a inveja; e 6° a doçura, a mansidão, a bondade e a caridade também destroem a inveja.
Fujamos da inveja
São Paulo diz aos Gálatas: Não sejamos ambiciosos de vanglória, provocando-nos uns aos outros, e reciprocamente invejando-nos: Non efficiamur inanis gloriae cupidi, invicem provocantes, invicem invidentes (Gl 5, 26).
Devemos nos alegrar quanto aos bens dos outros! Que importa, pergunta São Paulo aos Filipenses, com que de qualquer modo Cristo seja anunciado, nisto alegro-me e me gloriarei sempre: Quid enim? Dum omni Christus annuncietur, et in hoc guadeo, sed et gaudebo (Fl 1, 18).
Devemos nos alegrar com aqueles que se alegram, e participar das aflições dos tristes, sofrendo com eles!
Referências:
[1] Invidia suorum sempre carnifex extitit: extendit sensos, torquet ânimos, discruciat mentes, corda corrumpit. Quid plura? Hanc qui receperit, sua sustinet sine fine supllicia, quia in se domesticum semper diligit habet tortorem. Quis ibi malorum finis, ubi alterius bonum poena est, ubi cruciatus est aliena felicitas? (Serm. CLXXH).
[2] Invidia est animi tinea: sensum comedit, pectus urit, mentem afficit, cor hominis quase quedam pestis depascit, et cuncta bona ardore pestifereo devorat. Invidus alienum bonum suum facit invidendo peccatum. O quisquis es qui saluti invides alieuae, parcito vel tuae. Si enim ubi invidia, ibi mors, profecto non potes simul et invidere et vivere (De Interiore Domo, c. XLII).
[3] Haec est quae angelum de Coelo projecit, hominem de paradiso exulavit; abel occidit; contra Joseph fratres armavit; Danielem in lacum leonum missit, caput monstrum cruci afflixit, et Judam suspendio sustulit. Fratres mei, super tecta praedicate quod invidia est illa fera péssima quae fidem tollit, concordiam dissipat, justitiam disperdit, et omnia maça generat. Haec muros Jerusalem evertit, Romam depopulavit, Carthaginem destruxit, Trojam devastavit (Serm. XVIII de Temp.).
[4] Fugiamus intolerabile malum, serpentis praeceptum, diaboli inventum, inimici satio, punitionis arrhabo, pietatis impedimentum, via ad gehennam, regni coelorum privatio. Omnes virtutis species in vicina vitiorum nomina convertunt (invidi); nusquam calumnia rebus laudatis de deficiente (Homil. de Invid.) .