Lição 1: Generalidades
1. A palavra “Evangelho” vem do grego “evangélion“, o que significa “Boa Notícia”.
Entre os cristãos, este vocábulo passou a designar a mensagem de Jesus Cristo, “aquilo que Jesus fez e disse” (At 1,1). Dai fez-se a expressão “Evangelho de Cristo”, que significa o Evangelho pregado por Jesus Cristo e a mensagem que Ele nos trouxe da parte do Pai.
O Evangelho, segundo a linguagem do Novo Testamento, é mais do que uma doutrina; é força renovadora do mundo e do homem; produz uma nova criação, como se deduz das palavras de Jesus:
“Ide e anunciai a João o que ouvistes e vistes: os cegos vêem, os coxos andam, os leprosos são curados, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e os pobres são evangelizados” (Mt 11,46)
O membro final da frase “os pobres são evangelizados” resume os antecedentes: o Evangelho, levado a todos os carentes, implica a instauração de nova ordem de coisas; o homem ferido pelo pecado é redimido deste e das conseqüências deste, das quais a mais grave é a morte (ver penúltimo membro da frase citada).
2. A Igreja reconhece quatro narrações do Evangelho ou quatro Evangelhos canônicos: os de Mateus, Marcos, Lucas e João. Destes, os três primeiros são chamados “sinóticos” porque podem ser lidos em sinopse ou em três colunas paralelas; o quarto Evangelho segue roteiro assaz diferente do dos anteriores.
Existem também Evangelhos apócrifos (de Tomé, Tiago, Nicodemos…), que a consciência cristã não reconheceu como Palavra de Deus; contêm traços de história e verdade, – ao lado de seções fantasiosas e heréticas. Quem compara o texto dos apócrifos com o dos Evangelhos canônicos, verifica que aqueles são exuberantes, tendentes a mostrar um “Jesus maravilhoso”, ao passo que os
Evangelhos canônicos são muito sóbrios; não precisam de “ornamentar” a figura de Jesus, porque o sabem aceito por seus leitores.
3. Os Evangelhos são simbolizados pelos animais descritos em Ez 1,10 e Ap 4,6-8: o leão (Mc), o touro (Lc), o homem (Mt), a águia (Jo). A tradição cristã adaptou esses símbolos aos autores sagrados levando em conta o inicio de cada Evangelho: visto que Mateus começa apresentando a genealogia de Jesus, é simbolizado pelo homem; Marcos tem início com João Batista no deserto,… deserto que é tido como morada do leão; Lucas se abre com Zacarias a sacrificar no templo; por isto é simbolizado pelo vitelo, vitima do sacrifício; João começa apresentando o Verbo preexistente que se fez carne, à semelhança de uma águia que voa muito alto para, depois, dar o bote na terra. Esta atribuição de símbolos aos evangelistas não se deve aos autores de Ez e do Ap, mas é obra de escritores cristãos dos séculos II/IV.
Lição 2: De Jesus ao texto dos Evangelhos
Sabemos que Jesus pregou entre 27 e 30 sem nada deixar por escrito. Também não mandou os Apóstolos escreverem; conseqüentemente, o Evangelho foi primeiramente anunciado de viva voz, e só aos poucos consignado por escrito. Há, pois, um intervalo de 20, 30 ou mais anos entre Jesus e o texto definitivo dos Evangelhos. Depois de muito estudar o texto sagrado e a história da Igreja nascente, os bons autores (e, com eles, a Igreja na sua Instrução “Sancta Mater Ecclesia“, de 21/04/1964) admitem três etapas nesse período de tempo:
1) De Jesus aos Apóstolos. Jesus pregava a Boa-Nova utilizando recursos de linguagem dos rabinos, como são as parábolas. Antes de Páscoa, a compreensão dos ouvintes era lenta; mas depois de Pascoa-Pentecostes, os Apóstolos, guiados pelo Espírito Santo, penetraram profundamente na mensagem do Senhor.
2) Dos Apóstolos às comunidades cristãs antigas. A mensagem de Jesus foi levada de Jerusalém (após Pentecostes) para a Samaria, a Galiléia, a Síria, a Ásia Menor, a Grécia, Roma… O núcleo da pregação era sempre a vitória de Jesus sobre o pecado e a morte obtida na Páscoa: a este núcleo se acrescentavam as narrações de milagres (para comprovar o poder de Jesus), de parábolas (para manifestar a doutrina de Jesus sob forma de catequese), de disputas com os fariseus, de profecias, etc. A pregação devia adaptar-se aos diversos ambientes nos quais ela se realizava, a fim de tornar-se viva e significativa ou ter seu Sitz im Leben (lugar na vida dos ouvintes). Isto não quer dizer que a doutrina ia sendo deturpada. Não; os Apóstolos eram muito ciosos da fidelidade a Jesus e ao passado; não queriam ser senão testemunhas (cf, At 1,8.22; 2,32; 3,15; 5,32; 1029.41; 13,31; 20,24…); sempre que alguma inovação estranha se quisesse introduzir na mensagem, condenavam-na (cf. Gl 1,8s; 2Ts 2,1s; 1Tm 4,1-3; Tt2,1.8). Ademais sabemos que o Senhor não abandonou sua mensagem ao bel-prazer dos homens, mas acompanhou-a enviando o Espírito Santo à Igreja para que orientasse os Apóstolos na fiel pregação do Evangelho. Este se foi desabrochando homogeneamente, mostrando suas conseqüências na vida dos fiéis, como a semente se abre homogeneamente, passando a ser grande árvore, cujas virtualidades são as da própria semente.
Ao propagar-se, a mensagem foi tomando formas literárias diversas, como a da catequese sistemática, a da oração litúrgica, a da apologética (destinada a provar a Divindade e a Messianidade de Jesus), a da controvérsia (destinada a desfazer dúvidas dos ouvintes)…
À medida que iam pregando o Evangelho, os Apóstolos experimentaram a necessidade de consignar por escrito ao menos algumas partes do mesmo, a fim de facilitar a aprendizagem dos discípulos. Como a arte de escrever fosse rara, difícil na antiguidade, a escrita era esporádica: escreviam-se séries de parábolas, de milagres, de profecias, de ensinamentos, as narrativas da Paixão e Ressurreição… com fins estritamente didáticos, ou seja, para promover a transmissão das verdades da fé.
3) Das comunidades cristãs aos Evangelistas. Aos poucos, os cristãos perceberam a vantagem de compilar num só todo sistemático esses fragmentos da pregação evangélica. Esta tarefa foi empreendida por diversos discípulos, como atestava São Lucas entre 70 e 80:
“Muitos se propuseram escrever uma narração dos fatos que ocorreram entre nós como no-los transmitiram os que deles foram testemunhas oculares desde o começo e, depois, se tornaram ministros da Palavra” (Lc 1,1s).
Das diversas compilações assim feitas, quatro foram reconhecidas pela Igreja como canônicas, ou seja, como autêntica Palavra de Deus: as de Mateus, Marcos, Lucas e João. Os três primeiros estão em dependência entre si, de acordo com o seguinte esquema:
Notemos: as datas acima são aproximadas, mas muito prováveis. A primeira redação do Evangelho deu-se por obra de Mateus na terra de Israel e, por isto, em aramaico. Esta redação serviu de modelo para Marcos e Lucas, que utilizaram o esquema mateano, acrescentando-lhe características pessoais. O texto de Mateus foi traduzido para o grego, visto que o aramaico entrou em desuso quando Jerusalém caiu em 70; o tradutor, desconhecido a nós, retocou e ampliou o texto aramaico servindo-se de Mc. Isto quer dizer que o texto grego de Mateus (único existente, porque o aramaico se perdeu) é, segundo alguns aspectos, o mais arcaico, e, segundo outros aspectos, o mais recente dentre os sinóticos (1).
Lição 3: A fidelidade histórica dos Evangelhos
Muito se tem perguntado se os Evangelhos, resultantes de tal processo, são o eco fiel da verdade histórica. Há quem diga que, ao passar de instância a instância antes de ser redigida de modo definitivo, a mensagem foi deturpada.
Em resposta, ponderemos:
1) A mensagem de Jesus Cristo não se propagou a esmo, ou sem o acompanhamento dos Apóstolos. Lembremo-nos, por exemplo, de que, “quando os apóstolos souberam em Jerusalém que a Samaria tinha recebido a palavra de Deus, enviaram Pedro e João para lá” (At 8,14), a fim de formar a comunidade respectiva. “Pedro viajava por toda a parte” na terra de Israel, a fim de atender às necessidades dos cristãos (cf. At 9,32). São Paulo mantinha intercâmbio com as comunidades da Ásia Menor, da Grécia e de Roma, recebendo mensageiros e enviando cartas às mesmas, como se depreende do seu epistolário. O mesmo se diga a respeito de outros apóstolos cujos escritos atestam o zelo pela conservação íntegra da doutrina de Jesus Cristo: São Mateus, São João, São Judas, São Tiago… Vejam-se também At 11,27-29; 15,2; 18,22; 1Cor 16,3; 2Cor 8,14, textos que mostram o contato constante das novas comunidades com a Igreja-mãe de Jerusalém.
2) Os Apóstolos tinham consciência de lidar com uma tradição (parádosis) santa e intocável. Por isto, dizia S. Paulo aos coríntios a propósito da ressurreição e da Eucaristia: “Eu vos transmiti aquilo que eu mesmo recebi” (1 Cor 15,3; 11,23). O Evangelho que ele pregava aos gentios, fora autenticado pelos grandes Apóstolos de Jerusalém (cf. Gl 2,7-9). Em conseqüência, os tessalonicenses eram exortados a manter a tradição recebida e a afastar-se de quem não a seguisse (cf. 2Ts 2,15; 3,6). Insiste em que Timóteo transmita o depósito santo a homens de confiança que sejam capazes de o passar a outros: cf. 2Tm 2,2. É dever fundamental dos ministros de Cristo que sejam fiéis; cf. 1Cor4,1s; 7,25; 1Ts 2,4.
3) Não há dúvida, na Igreja nascente houve tentativas de deteriorar a mensagem evangélica. São Paulo se refere a fábulas, erros gnósticos, dualistas, docetistas (2)…, que ele compreendia sob a palavra grega mythoi, mitos; e cuidou fortemente de que tais mitos não se mesclassem com a autêntica doutrina de Cristo chamada lógos, Rm 10,8; Tg 1,22s; a palavra da salvação, At 13,26;… da verdade, 2Tm 2.15;… de Deus, 1Ts 2,13; 2Tm 2,9; Ti 2,5… da vida, 1 Jo 1,1…
Observemos como São Paulo tem consciência de que mitos não fazem parte da mensagem evangélica e, por isto, devem ser banidos da pregação: 1Tm 1,4; 4,7; 2Tm 4,4; Tt 1,14; cf. 2Pd1,16.
Donde se vê que não se deve admitir tenha sido a mensagem cristã penetrada por mitos e confundida com eles.
4) Os muitos erros e desvios ocorridos na pregação da mensagem crista dos primeiros séculos foram recolhidos na chamada “literatura apócrifa”, cujo estilo é evidentemente imaginoso e fictício. A Igreja teve a assistência do Espírito Santo para discernir claramente o autêntico e o não autêntico na caudal de doutrinas propostas aos cristãos dos primeiros decênios.
5) Os mitos todos têm estilo vago, do ponto de vista da cronologia e da topografia; não podem propor quadro geográfico e histórico preciso; é o que os isenta de controle. Ora, dá-se o contrário nos Evangelhos; como se verá, a topografia da Palestina é por estes minuciosamente mencionada; também a cronologia é assaz exata, como se depreende das menções de César Augusto (Lc 2,1), Tibério César, Pôncio Pilatos, Herodes, Filipe, Lisânias… (Lc 3,1s).
6) Nenhum criador de mitos teria “inventado” o mito do Evangelho, cujos traços são desafiadores e exigentes para a mente humana: a mensagem de Deus feito homem e, mais,… crucificado era escândalo para os judeus e loucura para os gregos (1 Cor 1,23); a promessa de ressurreição ou de reunião da alma com o corpo era contrária ao pensamento grego; a moral cristã, que valorizava a mulher, a criança mesmo indesejada, a família, o trabalho manual, o escravo, a estrita .. só podia encontrar oposição da parte da filosofia greco-romana.
Donde se vê que a mensagem do Evangelho é de origem divina e não pode ter sido produto do ficcionismo de judeus ou de pagãos da antiguidade.
Estes dados sumários nos preparam para entrar no estudo de cada Evangelho em particular.
Referências:
(1) Não podemos deixar de mencionar as importantes descobertas do Pe. José O’Callaghan S. J. Famoso papirólogo, encontrou em Qumran (Palestina) um fragmento manuscrito (7Q5), que deve datar de 50 a. C. aproximadamente. Após longos estudos desse minúsculo documento, o Pe. O’Callaghan afirma que apresenta o texto de Mc 6,52s – conclusão esta que vários estudiosos aceitam igualmente. Ora, se a descoberta é autêntica, deve-se recuar a data de redação de Marcos ou de parte de Marcos para o quarto decênio do século I (45-50). Isto, sem dúvida, provocará revisão das demais datas de composição do Novo Testamento. O caso, porém, ainda é discutido.
(2) Erros gnósticos são os que apregoam um conhecimento superior, reservado a homens espirituais, cuja salvação estaria garantida. Erros dualistas são os que admitem antagonismo entre matéria e espírito. Erros docetistas são os que negam tenha Jesus assumido realmente a natureza humana.
Para ulteriores estudos, ver
BALLARINI, T., Introdução à Bíblia, vol. IV Ed. Vozes 1972, pp. 67105.
BARBÀGLIO, FABRIS, MAGGIONI, Os Evangelhos I e II. Ed. Loyola 1990.
BEA, A., A historicidade dos Evangelhos. Ed. Paulinas 1966. LAMBIASI Autenticidade histórica dos Evangelhos, Ed. Loyola 1978. LATOURELLE, R., Jesus existiu? Ed. Santuário 1989.
PIAZZA, W., Os Evangelhos, Documentos da Fé Cristã. Ed. Loyola. TERRA, J. E. M., Jesus. Ed. Loyora1977.
* * *
Perguntas sobre os Evangelhos
- Que significa a palavra Evangelho? Explique
- Que são Evangelhos canônicos?… sinóticos?… apócrifos’?
- Como se explicam os símbolos dos quatro evangelistas?
- Quais as etapas entre Jesus e os escritos evangélicos?
- O Evangelho segundo Mateus é o mais antigo ou o mais recente?
- João depende da tradição sinótica ? Explique.
- Qual o significado de Tradição (parádosis) para os Apóstolos?
- Como se comportavam os Apóstolos diante de mitos na Igreja nascente?
- Poderia a mensagem dos Evangelhos ser mero produto da mente humana?