Lição 1: Noção e Extensão
Inspiração Bíblica: noção
O estudo da Bíblia deve começar pela prerrogativa que cristãos e judeus reconhecem a este livro: é a Palavra de Deus inspirada. Por causa disto é que tanto a estimamos.
a) Mas, quando se fala de inspiração bíblica, talvez aflore à mente a noção de ditado mecânico, semelhante ao que o chefe de escritório realiza junto à sua datilógrafa; esta possivelmente escreve coisas que não entende e que são claras apenas ao chefe e à sua equipe.
Ora tal não é a inspiração bíblica. Ela não dispensa certa compreensão por parte do autor bíblico (hagiógrafo) nem a sua participação na redação do texto sagrado.
b) A inspiração bíblica também não é revelação de verdades que o autor humano não conheça. Existe, sim, o carisma (= dom) da Revelação, que toca especialmente aos Profetas, mas é diverso da inspiração bíblica; esta se exercia, por exemplo, quando o hagiógrafo descrevia uma batalha ou outros fatos documentados em fontes históricas, sem receber revelação divina.
c) Positivamente, a inspiração bíblica é a iluminação da mente do autor humano para que possa, com os dados de sua cultura religiosa e profana, transmitir uma mensagem fiel ao pensamento de Deus. Além de iluminar a mente, o Espírito Santo fortalece a vontade e as potências executivas do autor para que realmente o hagiógrafo escreva o que ele percebeu; cf. 2Pd 1,21. As páginas que assim se originam, são todas humanas (Deus em nada dispensa a atividade redacional do homem) e divinas (pois Deus acompanha passo a passo o trabalho do homem escritor). Assim diz-se que a Bíblia é um livro divino-humano, todo de Deus e todo do homem; transmite o pensamento de Deus em roupagem humana; assemelha-se ao mistério da Encarnação, pelo qual Deus se revestiu da carne humana, pois na Bíblia a palavra de Deus se revestiu da palavra do homem (judeu, grego, arameu, com todas as particularidades de expressão).
d) Notemos agora que a finalidade da inspiração bíblica é estritamente religiosa. Os livros sagrados não foram escritos para nos ensinar dados de ciências naturais (pois, estas, o homem as pode e deve cultivar com seus talentos), mas, sim, para nos ensinar aquilo que ultrapassa a razão humana, isto é, o plano de salvação divina, o sentido do mundo, do homem, do trabalho, da vida, da morte… diante de Deus. Não há, pois, contradição entre a mensagem bíblica e as das ciências naturais, nem se devem pedir a Bíblia teorias de ordem física ou biológica… Mesmo Gênesis 1-3 não pretendem ensinar como nem quando o mundo foi feito.
Inspiração Bíblica: extensão
Pergunta-se então: a Bíblia só é inspirada quando trata de assuntos religiosos? Haveria páginas da Bíblia não inspiradas?
a) Respondemos que toda a Bíblia, em qualquer de suas partes, é inspirada; ela é, por inteiro, Palavra de Deus; cf. 2Tm 3,15s. Mas há passagens bíblicas que são inspiradas por si, diretamente, e há outras que só indiretamente são inspiradas. Em outros termos: a mensagem religiosa que Deus quer comunicar diretamente aos homens, tem que aludir a este mundo e às suas diversas criaturas (céu, terra, mar, aves, peixes…); ela o faz, porém, em linguagem familiar pré-científica, que costuma ser bem entendida no trato quotidiano. Também nós usamos de linguagem familiar, que, aos olhos da ciência, estaria errada, mas que não leva ninguém ao erro porque todos entendem que essa linguagem familiar não pretende ensinar matéria científica. Tenham-se em vista as expressões “nascer do sol”, “pôr do sol”, “Oriente e Ocidente”: supõem o sistema geocêntrico, a terra fixa e o sol girando em torno da terra (ultrapassado), mas não são censuradas como mentirosas, porque, quando as usamos, todos sabem que não intencionamos definir assuntos de astronomia. Assim, quando a Bíblia diz que o mundo foi feito em seis dias de vinte e quatro horas, com tarde e manhã…, quando diz que a luz foi feita antes do sol e das estrelas, ela não ensina alguma teoria astronômica, mas alude ao mundo em linguagem dos hebreus antigos para dizer que o mundo todo é criatura de Deus; cf. Gn 1,1 -2,4a. A Bíblia não poderia transmitir esta mensagem de ordem religiosa sem recorrer a algum linguajar humano, que, no caso, é mero veículo ou suporte da mensagem religiosa.
Por conseguinte, todas as páginas da Bíblia são inspiradas, qualquer que seja a sua temática.
Acrescentemos que também as palavras da Escritura são inspiradas. A razão disto é que os conceitos ou as idéias do homem estão sempre ligadas a palavras; não há conceitos, mesmo não expressos pelos lábios, que não estejam, em nossa mente, ligados a palavras. Por isto, quando o Espírito Santo iluminava a mente dos autores sagrados, para que vissem com clareza alguma mensagem, iluminava também as palavras com as quais se revestia essa mensagem na mente do hagiógrafo. É por isto que os próprios autores sagrados fazem questão de realçar vocábulos da Bíblia; veja Hb 8,13; Gl 3,16; Mc 12,26s.
Observemos, porém, que somente as palavras das línguas originais (hebraico, aramaico, grego) foram assim iluminadas. As traduções bíblicas não gozam do carisma da inspiração. Por isto, quando desejamos estudar a Bíblia, devemos certificar-nos de que estamos usando uma tradução fiel e equivalente aos originais. Além disto, é absolutamente necessário levar em conta o gênero literário do respectivo texto, como se verá abaixo.
Lição 2: Gêneros literários
Gêneros literários: noção
Se a Bíblia é a Palavra de Deus revestida da linguagem humana, entende-se que ela utiliza os gêneros literários ou os artifícios do linguajar dos homens.
Gênero literário é o conjunto de normas de vocabulário e sintaxe que se usam habitualmente para abordar algum assunto. Assim o assunto “leis” tem seu gênero literário próprio (claro e conciso, para que ninguém se possa desculpar por não haver entendido a lei); a poesia tem seu gênero literário antitético ao das leis (é metafórica, reticente, subjetiva…); uma crônica tem seu gênero próprio, que é diferente do de uma carta; uma carta comercial é diferente de uma carta de família, uma fábula é diferente de uma peça histórica, etc.
Ora na Bíblia temos os gêneros literários dos antigos judeus e gregos; existe por exemplo, a história no sentido estrito do termo (1° Macabeus), a história edificante ou midraxe ou ainda hagadá (Tobias, Judite, Ester, Rute), a história em estilo popular (como a de Sansão em Juízes, 13,1-16,31), a parábola (Mt 13,1-51; Lc 15,1-32), a alegoria (Jo 15,1-6), a lei (Ex 20,1-17), a poesia (Isaías 5,1-7), o apocalipse (Mt 24,4-44) ; merece especial atenção a história etiológica ou a história narrada em vista de propor a causa (aitía, em grego) de um fato estranho (assim Gn 19,30-38 explica pelo incesto das filhas de Lote a inimizade existente entre Israel e os povos de Amon e Moab; tais povos seriam filhos do pecado)…
Gêneros literários: interpretação¹
Se cada gênero literário supõe regras próprias de vocabulário e redação, compreende-se que cada qual tem também suas regras de interpretação próprias. Não me é licito entender uma poesia (cheia de imagens) como entendo uma lei (que deve ser clara e sem imagens). Uma das principais causas de erros na interpretação da Bíblia está em que muitas pessoas querem tomar tudo ao pé da letra ou tomar tudo em sentido figurado.
Antes da interpretação ou da utilização de algum livro sagrado, devo certificar-me do respectivo gênero literário: estou diante de uma poesia?… diante de uma crônica? Crônica de guerra? Crônica de família? Crônica de corte real? Por exemplo: Gn 1,1-2,4a, é poesia ou hino litúrgico, e não um relato científico. Estou obrigado a não tomar essa seção ao pé da letra para não trair o autor ou não lhe atribuir o que ele não queria dizer. Mas a narração da última Ceia em Mt 26,17-29 é relato histórico, que tenho de entender ao pé da letra para não trair o autor.
Não é licito, de antemão ou antes da abordagem criteriosa do texto, “definir” o respectivo gênero literário, como quem diz: “Eu acho que isto é poesia”, ou “Para mim, isto é uma tradição folclórica”. Mas é preciso que o leitor se informe objetivamente a respeito do gênero literário do livro que está para ler, a fim de entender o livro segundo os critérios de redação adotados pelo autor. Tal informação pode ser colhida nas Introduções que as edições da Bíblia apresentam antes de cada livro sagrado. Não é necessário que todo leitor da Escritura conheça as línguas originais e sua variedade de expressionismos, mas basta que leia a Escritura com alguma iniciação, que pode ser facilmente encontrada. Todos compreenderão que não se pode ler a Bíblia escrita do século XIII antes de Cristo até o século I depois de Cristo como se leria um jornal de hoje.
Referência:
1. Interpretação = explicação, comentário.
Lição 3: Veracidade da Bíblia
Veracidade da Bíblia: âmbito
Se a Bíblia é a Palavra de Deus feita palavra do homem, entende-se que ela deva ser inerrante (sem erro de espécie alguma) ou veraz (portadora da verdade).
Mas como se pode sustentar isto, se à Escritura, à primeira vista, está cheia de “erros”? O sol terá parado no seu curso em torno da terra, conforme Js 10,12-14; Is 38,7s… Nabucodonosor era rei de Nínive, segundo Jt 1,5; Dario terá sido filho de Assuero, conforme Dn 9,1..
Eis a resposta:
- É isento de erro ou veraz tudo aquilo que o hagiógrafo como tal afirma…
- … no sentido em que o hagiógrafo o entendeu.
Comentemos:
1) O autor sagrado pode afirmar algo em seu nome, como pode afirmar em nome de outrem. Por exemplo, em Jo 1,18, o Evangelista afirma que Jesus nos revelou Deus Pai. Mas no salmo 53 (52), 2² se lê: “Deus não existe”. Como explicar a contradição? Em Jo 1,18 é o autor sagrado como tal quem afirma; a sua afirmação é absolutamente verídica; mas no Sl 53 (52), 1, o salmista apenas afirma que o insensato diz em seu coração: “Deus não existe”. Quem diz que Deus não existe, não é o autor sagrado; este apenas afirma (e afirma com plena veracidade) que o insensato nega a existência de Deus (o insensato erra ao negá-la; o salmista apenas verifica o fato).
Referência:
2 – Muitos Salmos podem ser numerados de duas maneiras (a hebraica e a grega). O cursista o aprenderá quando estudar o Módulo referente aos Salmos.
2) “… no sentido em que o hagiógrafo o entendeu”. Com outras palavras:.. de acordo com o gênero literário adotado pelo autor bíblico. Se este quis usar de metáfora, não deverei tomá-lo ao pé da letra; se quis usar de gênero estritamente narrativo, não deverei entendê-lo metaforicamente.
Voltando aos casos apontados, diremos: quando Js 10,12-14 diz que Josué mandou parar o sol, o gênero é de poesia lírica; há, pois, uma imagem literária, segundo a qual o “estacionamento do sol” quer dizer “escurecimento da atmosfera, clima de tempestade de granizo”; por conseguinte, Josué pediu a Deus uma tempestade de granizo que o ajudasse a vencer a batalha, tempestade da qual fala o texto de Js 10,11. Quando os livros de Judite e Daniel parecem errar na cronologia dos reis, estão recorrendo ao gênero do midraxe, que intencionalmente não pretende ser crônica, mas apresenta a história como veículo de edificação religiosa (ver no Léxico Bíblico anexo o verbete Midraxe). Quando Mateus 1,1-17 diz que de Abraão até Cristo houve 42 gerações (na verdade houve mais do que isto), quer jogar com a simbologia do número 42 – o que também pertence ao gênero midráxico; de resto, o assunto voltará a ser estudado na Introdução ao Evangelho de Mateus.
Veracidade da Bíblia: conclusão
Vê-se, pois, que a Bíblia é isenta de erro em todas as suas páginas, mesmo quando fala de assuntos não religiosos. Qualquer erro atribuído à Bíblia, recairia sobre o próprio Deus. Todavia a veracidade ou a mensagem de cada passagem da Bíblia deverá ser depreendida do respectivo gênero literário: a poesia tem veracidade diversa da veracidade da lei ou da veracidade do midraxe. Ademais, notemos que a Bíblia só pretende afirmar categoricamente verdades de ordem religiosa. Em assuntos não religiosos, ela não comete erros, mas adapta-se ao modo de falar familiar ou pré-científico dos homens que, devidamente entendido, não é portador de erro, como atrás foi dito.
Diante das dúvidas no entendimento da Sagrada Escritura, o cristão rezará com Santo Agostinho:
“Faze-me ouvir e descobrir como no começo criaste o céu e a terra. Assim escreveu Moisés, para depois ir embora, sair deste mundo, de Ti para Ti. Agora não posso interrogá-lo. Se pudesse, eu o seguraria, implorá-lo-ia em teu nome para que me explicasse estas palavras,… mas não posso interrogá-lo; por isto dirijo-me a Ti, Verdade, Deus meu, de que estava ele possuído quando disse coisas verdadeiras; dirijo-me a Ti: Perdoa meus pecados. E Tu, que concedeste a teu servo enunciar estas coisas verdadeiras, concede também a mim compreendê-las” (Confissões XI 3,5).
Bibliografia:
ARENHOEVEL, DIEGO, Assim se formou a Bíblia. Ed. Paulinas.
BARRERA, JÚLIO TREBOLLE, A Bíblia Judaica e a Bíblia Cristã, Ed. Vozes 1996.
CASTANHO, AMAURY, Iniciação à Leitura da Bíblia. Ed. Santuário.
CECHINATO, LUIZ, Iniciação à Sagrada Escritura. Ed. Vozes.
HARRINGTON, WILFRÍD J., Chave para a Bíblia. Ed. Paulinas.
MANNUCCI, VALERIO, Bíblia. Palavra de Deus. Ed. Paulinas.
SCHARBERJ, JOSEF, Introdução à Sagrada Escritura. Ed. Vozes.
ENCICLOPÉDIA ILUSTRADA DA BÍBLIA. Ed. Paulinas.
MUNDO DA BÍBLIA, por vários autores. Ed. Paulinas.
Perguntas sobre Inspiração Bíblica
- Que é Inspiração bíblica? Como se distingue de Revelação?
- A Inspiração bíblica se estende a todos os temas da Bíblia? E a todas as palavras? Explique.
- Que é gênero literário? E quais as normas de interpretação dos gêneros literários?
- A Bíblia não contém erros? Como?
- Como devo entenderas alusões da Bíblia, aparentemente errôneas, às ciências naturais?