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Eleição e vocação de São João

Capítulo 2: Eleição e vocação de São João

I

Havia um ano que João Batista pregava, anunciando a magnificência mais que humana d’Aquele «que estava entre os homens, mas que os homens ainda não conheciam». Quanto a Ele, reconhecera-O antes à margem do Jordão, e dava disso testemunho dizendo:

“Eu vi o Espírito Santo descer do céu em forma de pomba, e pairar sobre Ele. Eu o vi, e dei testemunho de que este é o Filho de Deus” (Jo 1, 32-34)

O filho de Zebedeu ainda não O tinha visto, mas tudo o que ouvia dizer desse Mestre sobre-humano incitava cada vez mais o desejo de conhecê-lO e despertava-lhe os primeiros ardores daquela caridade que ia tornar-se inseparável de seu nome.

A escola de João Batista era para seu discípulo uma escola de doutrina superior e toda celestial, e ao mesmo tempo o noviciado de uma vida santamente contrita. Seguindo o exemplo do Mestre, dedicou-se ao nazaritismo, instituto de perfeição em que os Judeus se consagravam mais particularmente a Deus, fazendo voto de abster-se de qualquer licor fermentado e de deixar crescer intacta a cabeleira (Nm 6, 1-21). É de crer que recebera também o batismo do Precursor. Porém este rito exterior era apenas o sinal da pureza espiritual, e da renovação moral que o grande Profeta exigia, como preparação ao batismo d’AqueIe que devia batizar com o fogo e o Espírito. O discípulo bem o compreendera; preparara nele os caminhos do Senhor, e tornara retas suas veredas: o Senhor podia vir.

Jesus Cristo, Filho de Deus, veio à Judeia nas margens do Jordão no 15° ano do reinado de Tibério, o 30° da era vulgar, e, segundo o cálculo de sábios cronologistas, no começo da primavera.

Havia ali um lugar chamado pelos Hebreus «Bethabara» e que o Evangelho chama também «Betânia» ou «casa dos navios». Fôra ali que outrora os Hebreus, guiados por Josué, tinham atravessado o Jordão; e era costume estacionarem nesse lugar os barcos que estavam de passagem. Como esta praia era muito frequentada por causa da peagem, João, filho de Zacarias, ali batizava.

Naquele dia só estavam ao pé de João Batista, dois de seus discípulos (1). O evangelista São João diz que um deles era André, irmão de Simão. Não diz qual o segundo, mas quando se conhece à sua maneira de falar, «este silêncio do historiador ao nomear todos os outros o designa suficientemente» (2). Porque não se vê aqui o nome do outro discípulo? Pergunta São Crisóstomo. É que este outro é o próprio que fez essa narrativa e que seguiu a Jesus (3).

São João conserva na memória todos os pormenores. Foi, diz ele, na décima hora depois do nascer do sol, correspondente mais ou menos à nossa quarta ou quinta hora da tarde. Essa hora, observa Bossuet, era aquela em que os padres do templo de Jerusalém ofereciam o Sacrifício da tarde, imolando um cordeiro (4). Vendo chegar o divino Salvador Jesus, o Precursor aproveitou a ocasião para designá-lo aos dois discípulos por estas simples palavras:

“Eis aí o Cordeiro de Deus!” – Et respiciens Jesum ambulantem, dicit: Ecce Agnus Dei (Jo 1, 37)

Foi esse o nome pelo qual João, filho de Zebedeu, pela primeira vez aprendeu a conhecer a Jesus. Ele jamais o esquecerá: esse apelido sagrado achar-se-á mais tarde nos escritos do Evangelista e do Profeta de Patmos. Será mesmo uma particularidade de sua linguagem e de seu estilo; e ver-se-á nisso uma lembrança daquele grande dia e como que uma herança de João Batista, seu primeiro Mestre (5).

Com efeito, não era possível dar ao Filho de Deus feito homem, um nome que realçasse sua pessoa com mais vivo esplendor.

Jesus Cristo é o Cordeiro, isto é o Santo de Deus, segundo o sentido desta palavra em língua sacra (6). Nele não há mácula alguma; nEle só a inocência é uma realidade; e essa coisa pura, absolutamente pura, que, desde a mancha original não era neste mundo senão um sentimento e uma lembrança, do seio de Deus acabava de descer entre nós.

O Cordeiro, que é a santidade, é também a doçura. Ei-lO! Veio, não com o espírito de terror com que já outrora abalara o topo do Sinai. Não é mais a lei do temor, é a lei da graça; não é mais o leão de Judá, é o manso «Cordeiro de Deus» (7).

Veio Ele inaugurar o reinado da Caridade, e, como a maior caridade é o dom da própria vida, eis que este nome de Cordeiro, símbolo de santidade, emblema de doçura, irá significar ainda mais a vítima do sacrifício. Era preciso que ela fosse tão pura! Havia tantos séculos que o mundo culpado implorava à virtude, à mocidade, à beleza, à todas as graças da alma, da idade e da vida, um sangue imaculado que o resgatasse e satisfizesse a Deus! O resgate será pago: Ecce qui tollit peccatum mundi. E desta vez o sacrifício será digno de Deus, pois a vítima será o próprio filho de Deus: Agnus Dei.

Também de agora em diante não haverá outro sacrifício sobre os altares da terra, senão este. Quando Deus estiver irritado, quando os homens sofrerem, quando os corações estiverem à míngua e clamarem pela vida, será esta mesma vítima que há de abrandar a Deus, esta mesma Hóstia que será apresentada aos homens com as mesmas palavras: Ecce Agnus Dei.

Enfim, não haverá também mais outro sacrifício nos altares do céu. E quando, abrindo-se o céu sobre a cabeça de São João, o apóstolo pôde entrever as alegrias eternas, o que lhe foi mostrado em seu Apocalipse, foi este mesmo Cordeiro, esta mesma santidade, mesma doçura, a mesma vítima oferecida desde o começo, e que ele encontrara nas margens do Jordão, que vira imolada no Calvário, e que o Anjo lhe mostrava coroada e gloriosa: Ecce Agnus Dei (Ap 24, 1ss).

Com certeza os dois discípulos, ouvindo pela primeira vez a palavra do divino Precursor, não lhe puderam logo penetrar completamente o mistério. Compreenderam, porém que se tratava do Messias, e imediatamente decidiram seguir este novo Rei (8).

Andavam com Ele, diz o próprio João ao longo do rio sagrado. É natural, acrescenta São Crisóstomo, que, tendo consciência de serem tão simples e tão rústicos, temiam acercar-se dEle e conservavam-se à distância por timidez e respeito (9). Mas Jesus, voltando-se e caminhando-se para eles, disse lhes:

“Que procurais?”

A bondade, a beleza, a majestade da face adorável do Cristo que lhes aparecia pela primeira vez, logo os conquistou. Jesus perguntava-lhes o que procuravam; mas haverá no mundo alguma coisa que possa ainda tentar, depois que se viu a Jesus? Eles nada mais queriam, e num só ímpeto responderam-Lhe:

“Mestre, onde morais?”

Este nome de mestre era já uma promessa de que lhe pertenceriam (10).

Todavia, Deus não quer que se decida subitamente a questão de vida e da eternidade. Só depois de ponderado exame é que se devem entregar a Ele; é necessário uma prova: vinde e vede, diz Ele. Vieram, viram onde habitava Aquele que não tinha uma pedra onde apoiar a cabeça, e com Ele ambos permaneceram todo o dia (11).

Mas, que viram, que acharam nAquele que encontraram? pergunta Santo Agostinho a si mesmo. Oh! Discípulos, qual foi a cor que vos apareceu? Qual a forma, qual a beleza do corpo? Nada de tudo isto? Por que então sois assim atraídos? É que a beleza divina se vos manifestou com todo o seu esplendor.

Será alguma beleza susceptível de arrebatar o olhar? Não, é a beleza incorruptível da justiça, da santidade, da virtude; beleza que o olhar interior pode sempre perceber, e que o impressiona tanto quanto mais puro for ele (12).

Ora, São João era puro.

Segundo a suposição melhor fundamentada dos doutores, tinha nessa época perto de 25 anos, idade em que o homem se dedica ao exercício ou ao sacerdócio (13). A iconografia cristã atribui-lhe plena mocidade. Mas a graça que sobre ele atraiu o olhar de Jesus foi mais secreta, mais rara e toda imaterial. Todos os padres têm repetido e toda a Igreja o proclama que João era virgem. No reinado de Tibério, no país de Herodes, naquela Galileia pagã, chamada “Galileia das nações” cheia de prazeres e de atrativos empolgantes, João conservara-se casto (14).

Ora, nunca se poderá compreender que afinidade profunda existe entre a pureza, a virgindade do homem, e a perfeição inviolável deste Ser todo espírito que, acima da matéria, ouve as miríades de seres espirituais como Ele, dizer-Lhe eternamente que Ele é o Santo dos Santos:

“Bem-aventurados os corações puros porque verão a Deus” – Beati mundi corde, quoniam ipsi Deum videbunt (Mt 5, 8)

Estas palavras são para sempre um pacto entre Deus e as almas exclusivamente apaixonadas por sua beleza ideal. Assim entre os futuros apóstolos de Jesus, aquele, realmente, que primeiro O viu era o mais puro.

Ele obedecia à lei de atração virginal das almas que, dirigindo-as no tempo, dirigi-las-á na eternidade.

“No céu, diz São João, as virgens seguirão o Cordeiro por toda a parte” (Ap 14, 4)

A Igreja Católica fez dela a lei do sacerdócio; e a virgindade que, pela exaltação de Maria, recebera na mulher uma consagração quase divina, ia receber no padre, por intermédio de São João, uma glorificação ainda mais surpreendente.

“A incorruptibilidade, diz o livro da Sabedoria, nos aproxima de Deus” – Incorruptio facit esse proximum Deo (Sb 6, 20)

É por ela que o padre e o Cordeiro divino se podem encontrar na hora do Sacrifício, caminhar ao longo das mesmas torrentes de graça purificante, viver sob o mesmo teto, sentar-se à mesma mesa, e não separar-se nem de dia nem de noite. Essa é a primeira condição da nossa força. Se o sacerdócio tem ainda nas mãos as promessas de vida, é a essas energias de graça continente que deve as suas conquistas:

“Como é bela em sua glória a geração casta! – diz o Sábio dos livros sacros. É considerada por Deus e pelos homens. Caminha coroada, triunfa e alcança o prêmio dos mais puros combates!” – O quam pulchra est casta generatio cum claritate! Immortalis est enim memoria illius: quoniam et apud Deum nota est, et apud homines; et in perpetuum coronata triumphat, incoinquinatorum certaminum praemium vincens! (Sb 4, 1 e 2)

Continua o Evangelho: Chegava à noite. Os discípulos e o Mestre estiveram juntos o dia inteiro; o que, pelo modo de contar dos Hebreus, compreende também a noite. O colóquio começado no fim do dia, continuou pela noite além. Passou-se toda ela, acrescenta Santo Agostinho, em íntima palestra, e João e seu amigo puderam pressentir o mistério do reino dos céus (15).

E Bossuet, comentando admiravelmente toda essa passagem:

“Ditoso dia, ditosa noite, aquele que se passa com Jesus Cristo em sua casa! Senhor onde habitais? Dizei onde é a Vossa morada, a fim que ali possa eu também fixar a minha… Não quero apegar-me senão a Vós. Oh! Vinde! Vede! Ficai! Quão doces são estas palavras! E como é bom saber-se onde habita Jesus!” (16)

Da parte de Nosso Senhor, já era um primeiro mistério de eleição. Ele nos amou primeiro! Devia dizer um dia São João. Primeiros passos admiráveis, atenções misteriosas que só conhecerão os homens resolvidos a procurar Deus, e a entregar-se a Ele.

Santo Irineu, que foi da mesma escola e quase do mesmo tempo, conta que São João ainda se recordava de tudo em seus derradeiros anos.

“Todos os anciãos, diz ele, que na Ásia cercavam a João, o discípulo do Senhor, afirmam que ele contava como foi que Jesus, na idade de trinta anos, se mostrou e ensinou aos homens. Alguns souberam não só pelo próprio João, mas pelos outros discípulos, que dão disso pleno testemunho. Portanto, a quem se deve crer de preferência? A testemunhas dessa ordem, ou a um Ptolomeu qualquer, que não viu os apóstolos, e, nem sequer em sonho, não seguiu a nenhum deles?” – Quam habens aetatem triginta annorum Dominus noster docebat, sicut Evangelium et emnes senlores testantur, qui in Asia apud Joannem discipulum Domini convenerunt, id ipsum tradisse Joannem (S. Iren. Adv, Haer, lib. Il, cap. XX, pag. 148; Edit. D. Massuet, Paris, 1772)

II

Entre esta eleição misteriosa de São João e sua vocação ao apostolado de Jesus Cristo ocorreram alguns acontecimentos. Entre os evangelistas, só João os relatou, porque os testemunhou; fazem parte de sua história assim como da do seu divino Mestre.

Estes acontecimentos passaram-se na Galileia. A notícia do encontro dos dois discípulos com o Salvador não tardou a espalhar-se entre os pescadores do lago de Genesaré. André, o companheiro de João naquela noite feliz passada com Jesus, não pôde calar a sua ventura; e, apenas de volta, encontrando Simão, diz-lhe:

“Nós encontramos o Messias”

E logo levou seu irmão ao novo Mestre (17).

No dia seguinte é Felipe, também de Betsaida, a quem o Senhor se chega e induz a segui-lO. Por seu lado, Felipe encontra Natanael, seu amigo e informa-o que acaba de descobrir aquele que Moisés e os profetas anunciaram. Natanael duvida:

“Que pode sair de bom de Nazaré?”

Mas Jesus vira esse bom Israelita quando estava ainda debaixo da figueira. Lembra-lhe a hora, as circunstâncias e talvez os segredos. Subjuga-o ainda mais pelo amor do que pela luz, e o discípulo vencido adora o Mestre, o Filho de Deus, o Rei prometido a Israel (18).

Tal é a narrativa de São João, tais são as reminiscências do princípio de sua vida, passada junto de Jesus, na sua aldeia, no meio de seus irmãos e companheiros, convertidos como ele. Mil particularidades pessoais, alusões locais, a simplicidade da descrição, um tom de verdade realmente inimitáveis, dão a essa narrativa o mesmo interesse e encanto de sinceridade que a presença da testemunha às memórias íntimas. Enquanto os outros historiadores se contentam em relatar a vocação definitiva desses pescadores do lago, ao apostolado do Evangelho, São João, testemunha dos fatos, nos conduz preliminarmente à sua conversão, mostrando primeiro os discípulos d’Aquele de quem deviam mais tarde tornar-se apóstolos. Assim voltamos com ele à própria fonte do Evangelho; é ele o historiador por ter sido a primeira conquista; foi dele, foi de André, foi de Betânia e em seguida de Betsaida, que partiu a vibração das ondas luminosas que em breve irão agitar todos os recantos do mundo (19).

A primeira reunião desses discípulos e a primeira manifestação de sua glória são da mesma época, e é a mesma testemunha que no-la conta. Natanael, a quem Jesus acabava de se mostrar, habitava a aldeia de Cana, a moderna Kafr-Kenna, a três milhas mais ou menos de Nazaré, e a pequena distância de Betsaida (20).

Celebravam-se bodas em uma família daquele lugar, talvez na sua própria, como alguns o supõem, e foram convidados Jesus, sua Mãe e alguns pescadores, seus discípulos. Eram apenas seis, todos da mesma terra, de condição igualmente humilde, uma pequena intimidade que encerrava em gérmen a universalidade da Igreja cristã.

Não é verosímil, como têm dito alguns, que São João fosse o esposo nessas bodas milagrosas, e que foi daí que Jesus o chamou à honra da virgindade (21).

Basta para justificar as circunstâncias dessa narrativa, que ele tenha sido, como tudo o indica, convidado e conviva.

Deu-se ali o encontro preparatório de Jesus com seus humildes ministros, ainda bem inconscientes da obra que se preparava. Nem pompa nem discursos, nada de manifestações ruidosas à maneira dos homens. Um jantar familiar inaugura o novo reino, assim como uma ceia de despedida devia coroá-lo. Jesus começou por mudar a água em vinho, assim como um dia o veremos converter em vinho o seu sangue. Mas, diz Bossuet, segundo Santo Agostinho, já este milagre figura e inaugura a conversão da água da antiga lei no vinho evangélico que vai inebriar as almas em núpcias divinas (22). Eis que essas almas mesmo começam a inflamar-se por Ele.

“Tal foi o princípio dos prodígios de Jesus, disse São João; manifestou assim a sua glória, e seus discípulos creram nEle” – Hoc fecit initium signorum Jesus in Cana Galilæœ. Et manifestavit gloriam suam, et crediderunt in eum discipuli ejus (Jo 2, 2)

Aí termina a vida privada de Jesus. No Evangelho de São João também para aí a narrativa dessa preparação. Quando pela primeira vez João encontrou Jesus Cristo, nas margens do Jordão, ele O tinha admirado e amado como mestre. Nesta segunda manifestação de sua glória, nas bodas de Caná, João crê nEle, e já O adora como Deus. Está subjugado, conquistado para sempre.

Tinha chegado a hora de organizar a conquista. Se Jesus só tivesse consultado os mais simples princípios da prudência terrestre, ter-se-ia lembrado dos reis que prosternara no seu presépio, ou dos sábios que maravilhara no templo; e Ele, que bastava falar a seu Pai para que uma legião de anjos baixasse à terra, não teria ido buscar seus colaboradores em barcos de pesca. A obra teria sido então de uma sabedoria humana: mas não teria sido de uma ternura infinita e de uma força divina. Eis porque o Senhor só se lembrou dos ingênuos, dos pobres e dos pequenos. Lembrou-se mormente daqueles que O tinham amado. Abandonando, portanto, os palácios e as escolas, desceu à praia do mar de Galileia.

Jesus, passando ao longo do mar de Galileia viu dois irmãos, Simão, mais tarde chamado Pedro, e seu irmão André, lançando as redes ao mar, pois eram pescadores. E disse-lhes:

“Segue-me e eu vos farei pescadores de homens” (Mc 1, 16-18)

Pela ordem de chamada ao apostolado, e pela escolha que fez dos príncipes de sua Igreja é à barca de Pedro que Jesus se dirige em primeiro lugar. Uma vez fixada, desde o primeiro dia, a supremacia hierárquica, Jesus dirige-se à João:

“E um pouco adiante, viu Jesus dois outros irmãos: Tiago, filho de Zebedeu, e João, que estavam também numa barca, concertando as redes, e chamou-os. Eles deixaram imediatamente seu pai e suas redes e seguiram a Jesus” (23)

João abandonou suas redes: relictis retibus. Era a lei, o exemplo e a consagração do espírito de sacrifício e de pobreza da futura Igreja. Nas sociedades antigas tinha-se visto o mesmo homem ser sacerdote, príncipe do povo, governador de um grande Estado, e até comandante de exército. O espírito do novo sacerdócio não será o mesmo, e não seria bastante para um primeiro movimento, que o apóstolo se elevasse pela virgindade, se um segundo impulso não o erguesse acima da região ínfima, onde a plebe procura suas prezas de orgulho e de fortuna. «Excelsior caelis, mais alto que os céus» eis a definição do sacerdote, segundo São Paulo. Deus o quis assim, da mesma forma o conceberam os homens; assim elevado sobre a terra, esse homem, desprendido de tudo, atrairá tudo a si. São Bernardo bem o dizia:

“A pobreza é como uma grande asa que nos conduz rapidamente para o reino dos céus” (24)

O evangelista acrescenta que João deixou seu pai: relicto patre. O abandono da família é o segundo, e é o mais doloroso. Dedicar sua vida à tarefa de consolar a todos, sem ter perto de si alguém que o console, que o reanime e ajude; renunciar ao lar do futuro como do passado; e assim transitar por uma velhice solitária a um túmulo que não recebeu os ossos de seus antepassados; eis o sacrifício que exigia o novo apostolado:

“Aquele que ama a seu pai e sua mãe mais do que a mim, não é digno de mim. Aquele que ama a seu filho ou sua filha mais do que a mim, não é digno de mim” (Mt 10, 37.38)

Deixar tudo, romper com tudo, tudo imolar a Deus: acha-se isto e ainda mais neste relicto patre, que seria uma palavra cruel se o Evangelho não acrescentasse logo: Relicto patre, secuti sunt Jesum.

Resta-nos, pois, Jesus, e as almas e o céu: A Igreja bem o sabia. Ela sabia que a esta palavra de heroica renúncia: «Eis, Senhor, que tudo abandonamos para te seguir», podia responder sem enganar a coração algum.

“Aquele que tiver deixado sua casa, seus irmãos, suas irmãs, seu pai, sua mãe, seus filhos, suas terras por mim e pelo Evangelho, achará desde já e mesmo na terra cem vezes mais: irmãos, irmãs, mães e filhos com perseguições, é verdade, mas também com a vida eterna para o futuro” (25)

Podia, pois, sem temor, direi mesmo sem escrúpulo e sem remorsos, pedir a seus ministros, um sacrifício que não era mais que um capital a juros eternos.

Eis a eleição, eis a vocação.

Em primeiro lugar, do lado de Deus, uma preparação longínqua, a da família, da pátria, da escola do seu predestinado. Depois, um pequeno adiantamento misericordioso, uma proposta feita a nossa liberdade, e subordinada a nosso consentimento; uma prudente expectativa, uma demora, como para provação; enfim, uma vez feita a escolha, chegada a hora, um apelo decisivo que rompe todos os laços.

Em segundo lugar, do lado do homem, uma disposição religiosa e virtuosa, inclinação para o que é puro e belo, zelosa vigilância em torno desses tesouros, e, para isso, a solidão, o silêncio, o deserto, a aprendizagem secreta das lutas interiores e o batismo da penitência; depois, uma grande atenção para com Jesus Cristo que passa; ouvido alerta a tudo o que fala nele, fidelidade em segui-lO, amor a sua morada, desejo de lá recolher-se algum tempo em sua companhia. Enfim, a generosidade; a corajosa expectativa de suas ordens, sejam elas quais forem; e a primeira palavra, o abandono de tudo para só pertencer a Ele.

De quantas almas tudo isto ia tornar-se a história, e que reinado inaugurava Jesus Cristo neste mundo!


Referências:

(1) Alterá die iterúm stabat Joannes, et ex discipulis ejus duo (Jo 1, 35)

(2) M. Wallon, de la Croyance due à l’Evangile, ch. V p. 196.

Item Dr. Reithmayr, traduzido por M. de Valroger, Introduction aux livres Nouveau Testament, t, II, p.88 et 96.

L. Stolblberg, Vie de Notre-Seigueur Jesus-Christ, t. I ch. I, p. 166.

(3) S. Chrisost. in cap. I Ev. Joan. Homil, XVIII, p. 116: Quarè altérius nomen non ponitur? Quia ipse est: qui escribit Joannes:

Ità terè omnes scriptores sacri: S. Epiphan. – S. Cyrill. Euthymius. – Teophylact. – Alcuin. – S. Thomas Aquin. – Beda, apud Maldonat. In Joan., cap. I, 40. – Cornelius à Lapide, ibid. – Nicol. De Lire, Glossa t, V, col. 1037.

(4) Bossuet, Elévations sur les mystères, XXXIV semaine, IV élévation.

(5) Joannes in Apocalypsi gaudet Christum vocare agnum, quasi qui hoc nomen audierit et imbiberit a magistro suo Joanne Baptista (Cornel, à Lapid in Joan. I, 37.)

(6) Iste enim singulariter decitur agnus, solus sine peccato: non cujus maculae abstersae sunt, sed cujus macula nulla fuerit (S. Aug. in Joan. Trac. VI.)

(7) Quandó venit tempus ut misereretur Deus, venit Agnus, et sanguine Agni victus est Leo (S. Aug. t. in Joan. Tract. VII, cap. I, 6.)

(8) Et audierunt eum duo discipuli loquentem, et secuti sunt Jesum (Jo 1, 37)

(9) Credibile erat eos subvereri et formidare cum se rudes intelligerent, et tantum de illo magistri accepissent testimonium (S. Chrys. Homil. ln Joan, cap, I, 38)

(10) Conversus autem Jesus et videns eos sequentes se, dicit eis: Quid quæritis? Qui dixerunt ei: Rabbi, ubi habitas? (Jo 1, 38)

Theophylact: “Interrogat eos: Quid, non quem quæritis? Ut mercedem habeant respondentes. Hic rem ostendit, ilii personam respondente” (Apud. Glossa ordin. t, V. col. 1035).

Beda: “Quandò dicunt Rabbiti, id est magister, èt sequntur eum, utique magistrum sequuntur et dicunt”

(11) Decit eis: Venite et videte. Venerunt et viderunt ubi maneret, et apud eum manserunt die illo (Jo 1, 39)

(12) S. Aug. de divers Sèrmon., XXVII, c. 6.

(13) Tilemont, Mêm. pour servir à l’hist. ecclés., t. I, p. 607, note XV, e p. 608.

(14) Tertulian. Lib. de Monogamia, cap. XVII, página 688.

S. Aug. in Joan. Homil. CXXIV, CVIX. – De Virginibus, cap. XLIX

S. Hieronym. In Isaiam, cap. LVI, 5 – In Jovinian. Lib. I, cap. XIV, 26 – Epistol ad Princip. XCVI, Op. T. IV, p. 780.

S. Ambros. de Institutione Virgen, cap. VII, p. 423.

S. Igat. Martyr, ad Philadelph: O.

Theophylact. In Joan. praemium Op. t. I, p. 554.

Citarei somente o texto de São Jerônimo, que é um resumo dos outros: “Joannes unus ex discipulis, qui minimus aetate traditur fuisse inter apostolos, quem fides Christi virginem reperat, virgo permansit. Et ideo plus amatur à Domino et recumbit super pectus ejus.

Exposuit, virginitas quod nuptiae scire non poterant, Et ut brevi sermone cuncta comprehendam doceamque cujus privilegii sit Joannes: A Domino virgine mater virgo virgini discipulo commendatur” (Contra Jovin., cap. I, 26)

(15) Quam beatum diem duxerunt, quam beatam noctem! Quis est qui nobis dicat quæ audierint illi à Domino? (S. Aug.)

Chrysostomus, Cyrillus, Tbeophylact. et Euthymius non obscurè significant non tantúm horas reliquas hujus diei, nemdè duas, sed per totam noctem apud Jesum, ejus doctrinæ gustum capiendo, mansisse (Maldonat. in Joan. cap. I, num. 216, col. 1295).

(16) Bossuet, Elévations sur les mystères, XXIV semaine, IV élévation

(17) Invenit hic (Andreas) primùm fratrem suum Simonem, et dicit ei: Invenimus Messiam (quod est interpretatum Christus) (Jo 1, 12)

(18) Respondit ei Natanael, et ait: Rabbi, tu es Filius Dei, tu es Rex Israel (Jo 1, 49)

(19) Ipse Johannes circumstantias loci et temporis describit quasi ille qui præsentialiter vidit (Nicol. de Lire in cap. I. Joh. Glossa, t. V, col. 1037)

(20) M. de Saulcy, Voyage dane les terres bibliques, t II, p. 452.

(21) S. Agostinho dissera: Joannem Dominus de fluctivagà nuptiarum, tempestate vocavita

Cornelius à Lapide explica: Intellige nuptiarum non initarum, sed ineundarum, seu quas inire potuisset (In Joan. cap. II, 2, p. 277)

Beda compreendeu mal Santo Agostinho e inventou esta fábula: Dominus vocavit Joannem de nuptiis, et ipse reliquit conjugem et secutus est eum. Et propter hoc amavit eum Jesus plus omnibus discipulis, quia traxit eum de amore mulieris, et castus permansit (Varii Serm., p. 353. — De S. Joanne Evangel.)

(22) Bossuet, Sermon pour le deuxiême dimanche aprês l’Epiphanie, ler point.

(23) Et progressus iudé pusillúm, vidit Jacobum Zebedaei et Joannem fratem ejus, et ipsos componentes retia in mari.

Et statim vocavit illos. Et relicto patre suo Zebedaeo cum mercenariis, secuti sunt eum (Mc 1, 19-20)

Illi autem statim, relictis retibus et patre, secuti sunt eum (Mt 4, 21-22)

(24) S. Bern. Sermo IV de Adventu.

(25) Et coepit ei Petrus dicere: Ecce nos dimisimus omnia, et secuti sumus te.

Respondens Jesus ait: Amen dico vobis, nemo est qui reliquerit domum, aut fratres, aut sorores, aut patrem, aut matrem, aut filios, aut agros, propter me et propter Evangelium.

Qui non accipiat centies tantúm, nunc in tempore hoc, demos et fratres, et sorores, et matres, et filios, et agros, cum persecutionibus, et in futuro saeculo vitam aeternam (Mc 10, 28-30)

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(BAUNARD, Monsenhor L’abbé Loui. O Apóstolo São João. Rio de Janeiro, 1974, p. 14-31)