II. Sermão para a Festa de Todos os Santos
SUMÁRIO
Exordio. Desenvolvimento do texto. Deus é tudo pela imensidade da sua essência, está em todos pela incompreensível fecundidade com que se comunica.
Proposição e divisão. Para tornar o homem feliz, devemos dar-lhe a verdade, a alegria e a paz. No céu teremos:
1.° A presença de Deus, o verdadeiro e mais nobre exercício do nosso espirito;
Neste 1.º Ponto – Os bem-aventurados possuem pela presença de Deus a verdade sem erro, sem dúvidas, sem fadigas. Felizes, os que têm o coração puro, porque verão a Deus devendo purificar-se neste mundo.
2.° No gozo de Deus, a perfeita alegria dos nossos corações;
Neste 2.º Ponto – As alegrias do mundo não passam de ilusões. No céu, a nossa alma flutuará eternamente na mais nobre e perfeita alegria. Aspiremos a essa alegria.
3.° Na tranquila posse de Deus, a imutável firmeza do nosso repouso.
Neste 3.º Ponto – No céu eternos repousos. A nossa paz não será perturbada como neste mundo.
Peroração. Meditemos esta felicidade. Votos pela glória e pela felicidade do rei neste mundo e no outro.
Ut sit Deus omnia in omnibus.
Deus será tudo em todos. (I Cor 15, 28)
Senhor.
Vai ser hoje o assunto da nossa atenção aquilo que os olhos não viram, que os ouvidos não ouviram, que nunca penetrou no coração humano.
Esta solenidade foi instituída para que ponderemos as infinitas graças que Deus preparou aos seus servos para eles serem eternamente felizes, e uma só palavra do Apostolo nos vai explicar estas maravilhas.
Diz ele:
«Deus será tudo em todos»
Haverá nada mais conciso? E pode imaginar-se nada de mais vasto e imenso? Deus é um e, ao mesmo tempo, é tudo. E, sendo tudo para Si próprio, porque lhe basta a Sua grandeza, é também tudo para os Seus eleitos porque enche com a Sua plenitude toda a sua capacidade e todos os seus desejos.
Se precisam dum triunfo para honrarem a Sua vitória, Deus é tudo. Se têm necessidade de repouso para se refazerem dos seus longos trabalhos, Deus é tudo. Se pedem consolos depois de terem chorado santamente no meio dos espinhos da penitência, Deus é tudo.
Deus é a luz que os ilumina. Deus é o prazer que os extasia. Deus é a vida que os anima. Deus é a eternidade que lhes dá uma morada de glorioso repouso.
Ó amplitude! Ó profundidade! Ó extensão sem limites e ó inacessível altura! Poderei eu encerrar-Vos num só discurso?
Vamos todos, meus irmãos, e entremos neste abismo de glória e de majestade.
Lancemo-nos confiadamente a este oceano. Mas chamemos o nosso pai e a nossa estrela, isto é, a Virgem Santíssima, e imploremos a assistência do Espirito Santo. Ave.
Pode discutir-se se o homem, para ser feliz, tem ou não necessidade de possuir mais do que uma coisa, ou se a felicidade é um conjunto de vários elementos e o concurso de muitos bens reunidos.
E, em primeiro logar, afigura-se que o coração, que se divide, confessa, dividindo-se, a fraqueza do atrativo que o domina e que o coração assim dividido ruais procura, do que realmente encontrou, a sua felicidade. Porque, se por um lado parece que só um objeto deve contentar-nos, por não termos mais dum coração, por outro lado, parece que nos são necessários muitos bens por termos muitos desejos. Na verdade, desejamos a saúde, a vida, o repouso, a glória, a abundância, a liberdade, a ciência, a virtude, e que não desejaremos nós mais ainda?
Como seria possível, pois, esperarmos satisfação completa, por meio dum só, objeto, duma tão grande multiplicidade de desejos e inclinações que nós mesmos alimentamos?
Conciliou o Apóstolo estas aparentes contradições no texto que eu escolhi, porque nele nos mostra, um mesmo objeto, primeiro a simplicidade, porque é uno, e depois a variedade, porque é infinito.
Diz ele:
«Deus uno é tudo em todos»
É um e é tudo.
É tudo não só em Si mesmo pela imensidade da Sua essência, mas também é tudo em nós pela incompreensível fecundidade com que se comunica às Suas criaturas: Erit Deus omnia in omnibus.
Mas o que pelo apóstolo São Paulo nos foi proposto num sentido genérico, explica-o em particular Santo Agostinho quando, ao interpretar a Epístola aos Corintios, apresenta este belo comentário:
«Deus, diz ele, será todas as coisas em todos os bem-aventurados, porque será o seu comum espetáculo, será a sua comum alegria e será a sua paz comum» – Commune spectaculum erit omnibus Deus, communis gaudium erit omnibus Deus, communis pax erit omnibus Deus (S. Agost. in Psal LXX IV, II, 10)
E, na verdade, para sermos felizes segundo as máximas do mesmo santo, devemos não ser enganados, nada sofrermos e nada temermos. Porque, sendo a verdade tão preciosa, por maiores que sejam os outros bens que o homem possua, carece dum grande tesouro, se for enganado e, embora conheça a verdade, não vive decerto contente com isso, se sofre; e, ainda que não sofra, não tem tranquilidade, se teme.
Portanto lá, na Jerusalém Celeste, não haverá erro, porque se verá Deus; não haverá dor, porque se gozará Deus; não haverá receio nem inquietação porque se repousará para sempre em Deus.
E por isso nós lá seremos bem-aventurados porque teremos naquela presença de Deus um Verdadeiro exercício do nosso espírito; saborearemos nesse gozo a perfeita alegria dos nossos corações; possuiremos nessa paz a firmeza imutável da nosso repouso.
Eis as três verdades sublimes que Santo Agostinho nos expõe e que me esforçarei por vos tornar sensíveis, se me dispensardes a vossa atenção, para que vos convenceis de que, como não há liberdade maior do que Deus, concedendo-nos tão grandes dons, nada também há mais ingrato e cego do que o homem que não souber aproveitar tão grande Beneficência.
PRIMEIRO PONTO
Se o apóstolo São Paulo disse que os fiéis são um espetáculo para o mundo, para os anjos e para os homens (I Cor 4, 9), podemos nós acrescentar que são um espetáculo para o próprio Deus.
Ensina-nos Moysés, que esse grande sábio e arquiteto, diligente contemplador da sua própria obra, ia admirando todas as partes do belo edifício do mundo, que ia construindo: Vidit Deus lucem quod esset bona (Gn 1, 4); que, tendo formado o todo, ele o tinha amado, e porque, na verdade, a beleza arquitetônica resplandece no todo e mais ainda no conjunto do que em cada uma das suas partes, o achará perfeitamente belo; Et erant valdé, bona: e, finalmente, que se contentara consigo mesmo, vendo nas Suas criaturas reflexos da Sua sabedoria e da efusão da Sua bondade.
Mas, como o prodígio da Sua graça e a obra-prima do Seu poder são o justo e o homem de bem, é este o melhor espetáculo para os Seus olhos: Oculi Domini super justos (Sl 23, 15). «Os olhos de Deus, diz o Santo Salmista, fixam-se sobre os justos» não só porque Deus vela por eles, para os proteger, como porque se compraz em contemplá-los do alto dos céus, como o objeto mais querido das suas complacências.
«Não vistes, diz ele, quanto o meu servo Jó é reto, justo e temente a Deus, como evita o mal com escrúpulo e não tem ninguém igual na terra?» (Jó 1, 8)
Como é feliz o soldado que combate aos olhos de seu capitão e de seu rei aos quais o seu valor invencível parece um espetáculo tão belo! Deus quer, se os justos são o seu espetáculo, ser por seu turno o espetáculo deles. Comprazendo-se em vê-los, quer que eles também o vejam. Extasia-os pela completa visão da Sua eterna beleza e mostra-lhes límpida a própria verdade em luz tão pura, que dissipa todas as trevas e nuvens.
Mas, perguntareis vós, que é a verdade: Que imagem nos dais dela? Em que forma aparece ela aos homens ?
Mortais grosseiros e carnais, nós julgamos tudo pelo aspecto corporal. Pretendemos sempre imagens e formas concretas.
Não poderei eu despertar-vos os olhos espirituais e interiores que tendes ocultos no fundo da vossa alma, afastá-los, por um momento, dessas imagens vagas e vacilantes que são imprimidas pelos sentidos, e habituá-los a encarar a verdade pura?
Tentemos, esforcemo-nos, vejamos.
Por isso vos rogo, meus senhores, que atendais apenas ao que fazeis, e que penseis na ação que hoje vos reúne neste lugar sagrado. Prego-vos a verdade e vós escutais-la. Ora a verdade que especialmente vos proponho é que só é feliz quem não está sujeito ao erro, e que não se engana nunca. É uma segura e incontestável verdade. Não carece de demonstração, porque a vedes em toda a evidência.
Mas, meus senhores, onde é que vós a vedes?
Porventura nas minhas palavras? De maneira alguma, crede. Porque, assim como eu, designando-vos com o dedo um quadro ou um adorno da capela real, apenas dirijo a vossa vista, e não vos dou luz, nem vos posso inspirar o sentimento, assim eu vos falo neste púlpito. Falo-vos, advirto-vos, estimulo-vos a atenção. Mas há uma voz secreta da verdade que fala em mim, dentro de mim, e essa voz é a que vos fala também. Se ela não existisse, as minhas palavras cortariam o ar inutilmente e apenas aturdiriam os ouvidos. Assim, se, conforme a sábia organização do ministério eclesiástico, uns são pregadores e outros ouvintes, todos, segundo a ordem desta oculta inspiração da verdade, são ouvintes e são discípulos.
É certo que, olhando as coisas superficialmente, eu falo e vos escutais. Mas, a rigor, vós e eu ouvimos no fundo da consciência a verdade que nos fala e nos ensina. Eu vejo a verdade. Vós vede-la também. E vêmo-la todos juntos, porque a verdade é uma. E vêem-na em toda a terra os olhos que estão abertos à verdadeira luz. Portanto, não se pode determinar onde é que ela está, apesar de não faltar em parte alguma. Apresenta-se a todos os espíritos, mas, ao mesmo tempo, está acima de todos. Podem os homens cair no erro. Ela subsiste sempre. Podem eles aproveitá-la ou desprezá-la, serem mais ou menos instruídos: a verdade nem aumenta nem diminui.
Sempre uma, sempre igual, sempre imutável, julga tudo e não depende do julgamento de ninguém.
Como diz Santo Agostinho, «casta e fiel, própria para cada um, embora comum a todos» – et omnibus communis est et singulis casta est, (De Lib. Arb. II, n. 37) é feliz quem a possui e só nos prejudicamos a nós mesmos, quando a rejeitamos.
Constitui, portanto, a verdade, a bem-aventurança e o suplício de todos os homens porque «os que se furtam a considerá-la são punidos pela sua própria cegueira e pelas suas trevas – Cum integra et incorrupta, et conversos laett tificet lumine et aversos puniat coecitate (De Lib. Arb. Ibid.).
Eis o que é a verdade. E, meus irmãos, esta verdade, se pensarmos bem, é Deus.
Ó verdade! Ó luz! Ó vida! Quando vos verei e conhecerei eu? Conhecemos nós a verdade nestes dias cheios de treva?
De onde a onde, entrevemos apenas o luzir dum tíbio clarão seu. E por isso a nossa razão vacilante não sabe a que apegar-se nem no que firmar-se no meio de tantas sombras. Se ela se satisfaz seguindo os seus sentidos, apenas distingue a superfície das coisas e, se pretende avançar, confunde-a a sua própria sutileza.
Não são obrigados os mais sábios a conter o espírito a cada passo? Ou evitam as dificuldades, ou as dissimulam, aparentando tranquilidade, ou se arrojam a afirmar o que lhes ocorre sem o compreenderem, ou visivelmente se iludem e sucumbem debaixo de tal fardo.
Até nas questões terrenas, a verdade dificilmente é conhecida. Os cidadãos desconhecem-na, embora pretendam criticar tudo, por não terem amplitude de conhecimentos, nem as necessárias relações.
Os governantes, ocupando situação mais elevada, descobrem indubitavelmente melhor as consequências das coisas, mas estão arriscados aos mais artificiosos disfarces.
Eis a razão porque um sábio antigo (Senec. Epist. XLVI ad Lucil) dizia a um seu amigo que perderão favor do soberano:
«Como sois feliz agora por não terdes nada na vossa fortuna que vos obrigue a mentir e a enganar-vos a vós próprios!» – Felicem te, qui nhil habes propter quod tibi mentiatis!
Que hei de fazer? Para quem me voltarei, sendo cercado por todos os lados pela mentira e pelo erro? Desconfio dos outros e não me atrevo a acreditar na minha própria razão. Apenas julgo ver o que vejo e possuir o que possuo, descubro quase sempre que a minha razão me engana.
Mas, ah! Achei um remédio para me preservar do erro. Suspenderei o meu espírito. Contendo a sua indiscreta e leviana mobilidade, terei ao menos dúvidas, já que me não é permitido ter a verdade rigorosa. Mas ó meu Deus, que fraqueza e que miséria, Não me atrevo a sair do meu lugar nem a mexer-me! Só com o medo de cair. Miserável refugio contra o erro ver-me constrangido a mergulhar na incerteza e a desesperar da verdade!
Oh! Felicidade da vida futura!
Porque ouvi o que promete Isaías aos bem-aventurados cidadãos da celeste Jerusalém:
«O vosso sol nunca terá ocaso e a vossa lua não terá minguante» – Non occidet ultra sol tuus, et luna tua non minuetur (Is 60, 20)
Quer dizer, que não só a verdade brilhará sempre, mas que o vosso espírito será sempre iluminado uniforme e igualmente.
Oh! Que felicidade nunca ser enganado, nunca surpreendido, nunca transviado, nunca deslumbrado pelas aparências, nunca suspeitoso nem apreensivo!
Não me assombra, cristãos, que São Gregório Nazianzeno (Orat. XL) chame aos bem-aventurados deuses, visto que este título melhor lhes cabe a eles do que aos príncipes; e aos reis do mundo a quem é conferido por Davi:
«Eu disse-o: Vós sois deuses em tudo e sois filhos do Altíssimo!» – Ego dixi: Dii estis et filii Excelsi omnis (Ps. 81, 6)
Mas notai o que ele diz a seguir.
Contudo, acrescenta o Salmista, ó deuses de carne e de sangue, ó deuses de terra e de pó, não vos deixeis deslumbrar por esta divindade efêmera e emprestada.
«Porque afinal vós morreis como homens e, do trono, haveis de descer ao túmulo» – Veruntamen sicut homines moriemini; et sicut unus de principibus cadetis
A majestade, confesso-o, nunca se dissipou nem aniquilou, e vemos que ela vai toda revestir os sucessores de quem a teve. O rei, dizemos nós, não morre nunca, porque a imagem de Deus é imortal, mas, entretanto, o homem cai e a glória deixa-o à porta do sepulcro. Não acontece o mesmo aos imortais cidadãos da pátria celeste.
Não só são deuses, porque não mais morrem, mas também são por outra forma deuses, porque estão livres da mentira.
Disse Davi num seu transporte: «Todo o homem é mentiroso» (Sl 115, 11), todo o homem pode enganar e ser enganado, é capaz de mentir aos outros e de mentir a si próprio. Portanto vós, bem-aventurados espíritos que reinais com Jesus Cristo, já não sois rigorosamente homens, porque estais tão unidos à verdade que nunca mais haverá nuvem que vo-la oculte, nem ambiguidade que vo-la perturbe, nem dúvida que a enfraqueça.
Por isso nesse feliz estado não serão precisos grandes esforços para encontrar a verdade, nem arrancá-la do fundo, como que por meio de máquinas e artifícios, por meio de séries longas de efeitos ou grandes torneios de arrazoados.
A verdade oferecer-se-á por si mesma, completamente pura e evidente, sem confusão, sem mistura, e «tornar-nos-á semelhantes a Deus, porque nós o veremos como Ele é, realmente», diz São João: Cum apparuerit, similes ei erímus, quia videbimus eum sicuti est (Jo 3, 3).
Mas atendei à sequência desta bela passagem:
«Quem tiver em Deus esta esperança, conservar-se-á puro como o próprio Deus é puro» – Omnis qui habet hanc spem in eo, sanctificat semetipsum, sicut et ille sanctus est (Ilid. 3)
Nada impuro pode entrar no reino de Deus.
Passar-se-á pela prova dum rigoroso exame, para que uma beleza tão pura não seja vista nem aproximada de espíritos impuros, e foi isto o que fez dizer ao Salvador no Evangelho deste dia:
«Bem-aventurados os que têm o coração puro, pois que eles verão a Deus» (Mt 5, 8)
Ouvi, espíritos temerários e desvairadamente curiosos, que dizeis: Nós queríamos ver, nós queríamos ouvir todas as verdades da fé. Chegou o tempo de vos purificardes e ainda não chegou o de verdes.
Deixai tratar dos vossos olhos doentes; permiti que vo-los lavem, e os fortifiquem, porque, se depois não puderdes ainda suportar a luz do pleno dia, já gozareis ao menos a suave impressão duma claridade moderada.
E, se todas as luzes do cristianismo são para nós trevas, metei a mão na vossa consciência. Quais são as vossas ocupações? Em que costumais pensar? Sobre que costumais discorrer? Poderei eu dizer neste púlpito, contido pelo Santo Apóstolo (Ef 5, 3):
«Que estas coisas nem sequer sejam nomeadas entre vós?»
Pois quê? Enquanto meditais apenas sobre a carne e o sangue, na frase da Sagrada Escritura, podeis esperar impressões de discursos espirituais? Como se haviam de insinuar em vós as verdades castas e puras do cristianismo? Há de descer do seu trono a sabedoria a ensinar-vos, quando vós a não procurais?
Vivamos, pois, cristãmente e a verdade nos será patente um dia. E nunca tereis respirado ar mais suave. Nunca a vossa fome terá sido saciada por maná tão delicioso. Nunca tereis extinguido a vossa sede com tão salutar consolo.
Nada mais harmonioso do que a verdade. Não há melodia mais doce, concerto mais amplo, beleza mais perfeita e arrebatadora.
Atendei um pouco, cristãos, esta imortal beleza que todo o cristão deve servir.
Não ostenta esta beleza divina aos nossos olhos nem graça artificial, nem adornos emprestados, nem mocidade efêmera, nem brilho sempre moribundo. Tem ela a graça e a duração, a majestade e a doçura, a gravidade e o agrado, a honestidade e o prazer e a alegria.
É o que nós vamos ponderar na segunda parte do meu sermão.
SEGUNDO PONTO
A mais completa ilusão de todas as paixões é a alegria.
Nunca o Sábio falou com mais acerto do que quando disse no Eclesiastes «que considerava o riso um erro e a alegria uma mentira» – Risum reputavi errorem; et gaudio dici: Quid frustra deciperis?
E na verdade, não devemos acreditar que este lugar de confusão, onde os bons vivem misturados com os maus, possa ser a mansão das verdadeiras alegrias.
«Outros são os bens que Deus deixa para a consolação dos cativos; outros os que Ele reservou para fazer a felicidade dos Seus filhos» – Alind solatium captivorum, aliud gaudium liberorum (S. Agost. In Psal. 136, n. 5).
Mas, para dar-vos ideia mais nítida dos verdadeiros prazeres que inebriam os bem-aventurados, filosofemos um pouco, antes do mais, sobre a natureza das alegrias do mundo.
Que me importa, diz o epicurista, a causa da minha alegria, se eu estou contente?
Verdade ou erro, é sempre doloroso repelir a alegria, venha ela donde vier.
Mas o Espírito Santo afirma pelo contrário quanto é insensato aquele que se alegra com coisas vãs, e diz ser abandonado de Deus aquele que se alegra com coisas más. Finalmente acha desgraçado aquele que só ama os prazeres condenados ou desprezados pela razão.
Acima de tudo, pois, devemos ponderar donde nos vem a alegria e qual o seu objeto. E, em primeiro lugar, cristãos, todas as alegrias derivadas dos bens da terra são cheias de ilusão e de vaidade. E é por isso que, nas questões terrenas, o mais sensato é aquele que menos se deixa arrebatar pela alegria. Ouvi a bela sentença pronunciada pelo Eclesiástico:
«O homem inconsiderado ri constantemente com ruído; e o sábio apenas ri com moderação» – Fatuus in risu exaltatvocem suam, vir autem sapiens vix tacite ridebit (Ecl 21, 23)
Efetivamente, ao ver-se um homem impulsivo que, deslumbrado ou pela sua posição ou pela sua fortuna, se entrega à alegria sem conter-se, nós ficamos convencidos de que é uma alma sem ponderação, e que a sua leviandade o há de tornar constante joguete de todas as ilusões do mundo. O sábio, pelo contrário, pensando constantemente nas misérias e vaidade da vida humana, nunca se persuade de que possa haver na terra nenhum verdadeiro motivo de alegria.
É por isso que ele ri, tremendo, como dizia o Eclesiástico, isto é, suprime ele próprio a sua indiscreta alegria por uma certa altivez de alma que nega a sua fraqueza e que, conhecendo ter nascido para os bens celestes, se envergonha de sentir tão forte atração para as coisas desprezíveis.
Depois de termos visto a origem da nossa alegria, devemos considerar para onde nos leva ela.
Porque, ó prazeres, aonde nos conduzis? A que esquecimento de Deus e de nós mesmos?
Não foram estes desregrados prazeres os conselheiros de todos os crimes, os nocivos aduladores e infiéis conselheiros que todos os dias em nós arruínam a alma, o corpo, a glória, a fortuna, a religião e a consciência?
Porque qual é o seu principio universal? Não é que folguemos com o que não devemos?
A razão, portanto, obriga-nos a desconfiar dos prazeres.
Finalmente devemos meditar pobre a duração da alegria.
Porque Deus, que é a própria verdade, não permite o duradouro reinado da ilusão.
É ele, diz o Rei-Profeta, quem se compraz, para punir o voluntário erro dos que se comprazem em ser enganados, «em aniquilar na sua santa cidade todas as felicidades imaginárias e quem, para punir o voluntário erro dos que se comprazem em ser enganados, faz suceder males pungentemente reais à passageira mentira das suas fantasias:
Velut somnium sargentium, Domine, in civitate tua imaginem ipsorum ad nihilum rediges (Sl 72, 20)
Concluamos, pois, cristãos, que, se a felicidade é uma alegria, é só quando fundada na verdade, gaudium de veritate, como a definiu Santo Agostinho. (Confes. V, 23).
Assim é a alegria dos bem-aventurados não só uma alegria, mas alegria sólida e real, cuja essência é a verdade, cujo efeito é a santidade, cuja duração é a eternidade.
Assim é a alegria dos bem-aventurados cuja plenitude é infinita, cujos transportes são inefáveis e os excessos absolutamente divinos.
Afastemos do pensamento as alegrias sensuais que perturbam a razão e impedem a alma de se possuir a si própria. Aqui é vivamente impressionada no mais profundo do seu íntimo, no que tem de mais delicado e sensível; completamente fora de si; e toda de si própria, possuindo Aquele que a possui e tendo a razão sempre atenta e satisfeita.
Mas, meus irmãos, devo desistir de publicar tais maravilhas, se o Espírito Santo tão vivamente nos representa a triunfante alegria da Jerusalém celeste pela boca do profeta Isaías:
«Diz o Senhor: criarei um novo céu e uma nova terra e todas as angustias serão esquecidas e nunca mais voltarão» – Oblivioni traditae sunt angustiae priores, et non ascendent super cor (Is 65, 16ss)
«Mas ficareis extasiados e a vossa alma mergulhará na alegria durante toda a eternidade nas coisas que eu crio» – Gaudebitis ei exultabitis usque in sempiternum in his quae ego creo
Porque farei que Jerusalém viva no êxtases e que o seu povo viva todo na alegria. Et exultabo in Jerusalem, et gaudebo in populo meo.
Eis como o Espírito Santo nos representa as alegrias dos seus filhos bem-aventurados.
Depois, voltando-se para os que estão na terra, na Igreja Militante, convida-os nestes termos a tomar parte nos transportes da santa e triunfante Jerusalém:
«Congratulai-vos com ela, diz ele, ó vós que a amais, congratulai-vos com ela em grande alegria e sugai com ela o úbere das suas consolações, para que tenhais abundantes delícias, porque o Senhor disse: Farei correr sobre ela um rio de paz, e esta torrente a trasbordará com abundancia; todas as nações da terra tomarão parte nela e eu vos consolarei com a mesma ternura da mãe que acaricia o filho» – Laetamini cum Jerusalem, et exultate in ea, omnes qui diligitis eam; gaudete cum ea in gaudio… ut sugatis et repleamini ab ubere consolationis ejus, ut mulgeatis et deliciis affluatis ab omnimoda gloria ejus. Quia haec dicit Dominus: Ecce ego declinabo super eam quasi fluvium pacis et quasi torrentem inundantem gloriam gentium… Quomodo si cui mater blandiatur, ita ego consolabor vos (Is 65, 17ss)
Qual seria o coração insensível a estas, ternuras divinas?
Aspiremos a estas alegrias celestes, as quais serão tanto mais tocantes quanto serão acompanhadas por um repouso perfeito, porque não as poderemos nunca perder.
Deixemos, meus irmãos, todos os nossos prazeres vãos.
Quão diferentes não são os desejos dos doentes! E é a doença quem tem desejos: a saúde volta e todos esses apetites desregrados se dissipam.
Não julguemos que a felicidade é a satisfação dos irregulares apetites despertados pela doença. Que tem o mundo de comparável? Mas, se ele se vangloria de vos dar alegrias, nunca se atreve a prometer-vos repouso. É que isso é a herança dos Santos, é o quinhão dos bem-aventurados, e é tratando deste ponto que eu vou concluir.
TERCEIRO PONTO
O eterno repoiso dos bem-aventurados foi-nos figurado logo no princípio do mundo, quando Deus, tendo tirado do nada as suas criaturas e tendo-as disposto tão bem em seis dias, estabeleceu e santificou o repouso no dia em que, como diz a Sagrada Escritura, descansou de toda a sua obra (Gn 2, 2).
Sobejamente sabeis, cristãos, que Deus, fazendo tudo sem esforço, não tem necessidade de descansar depois do trabalho. E sabeis também que Deus, consagrando o dia de descanso, não cessou depois de trabalhar incessantemente.
«Meu Pai, diz o Filho de Deus, trabalha constantemente» (Jo 5, 17)
E, se ele por um momento deixasse de sustentar o universo pela força do seu poder, o sol afastar-se-ia do seu caminho, o mar transporia todos os seus limites, a terra cairia do seu eixo; em suma, toda a natureza se afundaria, de golpe, não digo no velho caos, mas na sua total ruína, no não-ser.
Quando, pois, aprouve a Deus santificar o sétimo dia, e dele fazer dia de descanso, quis fazer-nos compreender que, depois da ação contínua pela qual desenvolve toda a ordem de séculos, designou um dia que é o dia da eternidade no qual ele repousará com todos os seus eleitos: ou, para melhor nos exprimirmos, no qual os seus eleitos repousarão eternamente nele mesmo.
Tal é o misterioso sabbat, o dia de repouso reservado ao povo de Deus, segundo a doutrina do Apóstolo: Itaque relinquitur sabbatismus populo Dei, diz a profunda Epístola aos Hebreus (4, 9 ).
A base deste repouso dos predestinados é que a eternidade lhes fica assegurada.
Porque, meus irmãos, o Eterno medita coisas eternas e toda a ordem dos seus conselhos, por diversas revoluções e por diversas mudanças, deve terminar finalmente num estado imutável.
É por isso que depois destes dias de fadiga, destes dias do antigo Adão, dias penosos, laboriosos, de gemidos e de penitência, em que devemos subsistir e ganhar o pão da vida à custa do nosso suor, seremos conduzidos à cidade santa e lá o Espírito Santo nos assegura «a que repousaremos de todas as dores» (Ap 14, 13).
Foi atendendo à eternidade desta cidade triunfante que São Paulo a chamou «uma cidade firme e que tem uns alicerces» – fundamenta habentem civitatem (Hb 11, 10). Não há alicerces na terra. Quando julgamos repousar, arrebata-nos o tempo, e somos presa da nossa própria duração. Se fixardes um pouco os olhos, haveis de ver tudo em movimento ao redor de vós.
Girará tudo, ou giraremos nós? Tudo gira e nós todos juntos giramos, porque a figura deste mundo é passageira (I Cor 7, 31).
E, se não sentimos sempre esta violência, é porque somos arrebatados com tudo o mais sob a mesma rapidez. Onde estão, pois, a solidez e a consistência? Em vós, ó santa Sião, cidade eterna, «cujo arquiteto e fundador é Deus» – cujas artifex et conditor Deus (Hb ibid. ).
Em vós é que está a consistência, porque a Sua mão soberana é o nosso imutável amparo, e o Seu poder invencível é o vosso inabalável alicerce.
«Esforcemo-nos, pois, diz o Santo Apóstolo, por entrar nesse eterno repouso» (Ibid. 4, 11)
Qual de nós não deseja o repouso? E aquele que lida em sua casa, que trabalha no campo, e o que navega nos mares, e o que negocia na terra, e o que serve nos exércitos, e o que intriga nas cortes, todos aspiram a algum repouso. Mas nós queremo-lo honesto e sobretudo certo.
Se é assim, cristãos, não o procureis na terra.
«Levantai-vos, caminhai sem descanso, porque aqui não pode haver repouso para vós», diz o profeta Miquéias, – Surgite et ite, quia non habetis hic requiem (Mq 2, 10)
Raciocinai um pouco comigo sobre este importante assunto, ou antes metei a mão na vossa própria consciência, e, enquanto eu falar, consultai a vossa experiência.
Ponho de parte palavras sonoras, fujo aos grandes movimentos da arte oratória para convosco ponderar friamente, as coisas de ânimo seguro.
Nesta inconstância das coisas humanas e no auge de tantas e tão violentas agitações, como as que ou nos perturbam, ou ameaçam perturbar-nos, julgo verdadeiramente feliz quem pode ter um refugio, porque, sem ele, cristãos, nós estamos por demais sujeitos aos ataques da sorte para podermos ter algum descanso.
Por exemplo, viveis vós aqui na Côrte. Sem devassar os vossos negócios particulares, eu quero crer que a vida se vos afigure suave. Mas não vos esquecestes tanto das procelas convulsas deste mar, que vos arrojeis a confiar cegamente nesta bonança. E eis a razão porque não conheço homem sensato que não ambicione viver longe do bulício, olhando essa vida tranquila como um porto em que se abrigue, quando for batido por ventos adversos. Mas esse abrigo que há tanto tempo procurais é ainda duvidoso e, por mais ampla que seja a vossa previdência, nunca podereis combater os caprichos da fortuna.
Julgareis estar, defendidos por todos os lados, e o vosso edifício pode desabar de repente. Se os alicerces são sólidos pode vir de cima um raio e fulminá-lo de alto a baixo.
Quero eu dizer em linguagem simples, sem figuras de retórica, que por muitos modos nos assaltam e penetram as desgraças para podermos estar prevenidos e defendidos por todos os lados.
Nada do que é terreno e em que confiamos, quer sejam os filhos, quer sejam as posições e os cargos, é seguro, e até deixa de poder dar-nos uma infinita amargura.
Seríamos excessivamente ignorantes da história da vida humana, se ainda precisássemos de provas para reconhecermos esta verdade.
Estabeleçamos, pois, para nós que o que pode acontecer e mil vezes temos visto suceder aos outros, também nos acontece a nós mesmos.
Porque não há dúvida de que, apesar dos vossos títulos, não tendes salvaguarda contra a fortuna, pois não há privilégios nem isenções contra as misérias humanas.
Julguemos, portanto, possível que a esperança da nossa fortuna pode ser arruinada por qualquer desgraça, que a nossa família pode ser infelicitada por qualquer desastrosa morte, que a nossa saúde pode ser destruída por uma doença cruel.
Se não tiverdes um lugar onde encontreis abrigo, sofrereis com dureza o furor dos ventos e das tempestades. Mas onde encontrareis esse abrigo? Percorrei tudo à volta com o olhar. O dilúvio inundou a terra inteira. Toda a superfície dela está coberta de males. Não tereis onde pôr o pé enxuto.
É-vos, pois, necessário procurar o meio de sair de todo o ambiente do mundo.
É Verdade que há uma parte de nós mesmos em quem a fortuna não pode exercer a sua força.
É o nosso espírito, a nossa razão, a nossa inteligência.
E só por nossa culpa, dela, que era livre e independente, fizemos existência interessada nos bens mundanos, e por isso a submetemos com tudo o mais aos golpes da fortuna.
Imprudentes! A própria natureza ensinou aos animais perseguidos, quando o corpo está descoberto, a esconderem a cabeça, e nós, cuja parte principal estava naturalmente livre dos insultos de todos, fomo-la descobrir, expondo a todos os golpes o que era inacessível e invulnerável!
Que resta, portanto, agora senão, arrancando do meio do mundo esta parte imortal, irmos dar-lhe morada na cidade Santa que Deus nos preparou?
Talvez julgueis não poderdes ir viver, onde não entrais e que em vão vos falo da terra e da segurança do porto enquanto vogais no meio das ondas.
Pois quê! Não vedes aquele navio que, afastado do seu porto, e batido pelos ventos e pelas ondas, voga num mar desconhecido! Se os vendavais o sacodem, se as nuvens toldam o sol, o piloto hábil, temendo esbarrar com os cachopos, manda lançar a ancora. E essa ancora dá ao navio a consistência, e a terra no meio das ondas é uma espécie de porto seguro na imensidade e no tumulto do oceano.
Assim, diz o Santo Apóstolo:
«Firmai no céu a vossa esperança que servirá para a vossa alma como uma âncora firme e segura» – quam sicut anchoram habemus animae tutam ac firmam (Hb 6, 19)
Lançai essa sagrada âncora cujas garras nunca se quebram na bem-aventurada terra dos vivos e podeis crer que, encontrando vós um fundo tão sólido, essa âncora servirá de alicerce para o vosso navio até que ele chegue ao porto.
Mas, meus senhores, para termos esperança, é preciso termos fé.
E por isso todos os dias nos dizem: Dai-me a fé, e eu deixo tudo. Convencei-me sobre a vida futura e por uma esperança tão bela troco tudo quanto amo.
Mas que dizes tu, homem? Poderás acreditar que tudo em nós é corpo, matéria? Pois quê! Tudo morre e se sepulta? O túmulo iguala-vos aos animais irracionais e não tendes dentro de vós nada que lhes seja superior?
Bem sei, meus senhores, que tendes o espírito cheio de tantas belas doutrinas.
São dum Montaigne — digo-vos o nome do autor delas – foi ele quem vo-las ensinou.
Dizem-vos elas que os animais irracionais são preferíveis ao homem, que o seu instinto vale mais do que a vossa razão, que a sua natureza simples e inocente —palavras de Montaigne — é preferível às vossas astúcias e malícias.
Mas dize-me, filósofo, que tão ironicamente te ris do homem, porque julgas ser alguma coisa, achas de nenhuma importância conhecer Deus?
Achas nulo conhecer uma natureza primaria, adorar a sua eternidade, admirar a sua omnipotência, louvar a sua sabedoria, abandonarmo-nos à sua providencia, obedecer à sua vontade? É isto tão pouco que não nos distinga dos animais irracionais?
Têm então esperado baldadamente em Deus todos os Santos cuja memória gloriosa nós hoje honramos?
E só os epicuristas é que têm conhecido bem o que é o homem?
Não vedes antes que, se uma parte de nós depende da natureza concreta, a parte que conhece e ama a Deus, que nisso a Ele é semelhante, porque Ele mesmo reconhece e ama, necessariamente depende de princípios mais elevados?
Oh! Não! Podem os elementos pedir-nos que lhes restituamos o que nos deram, porque Deus pode pedir-nos a alma que Ele criou à Sua semelhança!
Devem morrer todos os pensamentos que dedicamos às coisas mortais, mas o que nasceu digno de Deus tem de ser imortal como Ele.
Portanto, homem sensível, que não renuncias à vida futura senão por temeres os seus justos suplícios, não podes esperar o nada. Não, não o esperes. Quer o queiras, quer não, a tua eternidade é segura. E, na verdade, só de ti depende torná-la feliz. Mas, se tu recusas essa dádiva divina, espera-te uma outra, eternidade e tu serás digno dum mal eterno por teres perdido voluntariamente um bem que eterno podia ser.
Ouvis estas verdades? Que réplica lhes dais? Julgais-vos invencíveis com os vossos raciocínios frívolos e com as vossas forçadas zombarias? Murmurai e zombai quanto quiserdes. O Omnipotente tem as Suas leis imutáveis apesar de murmúrios, sarcasmos e ditos chistosos e Ele vos fará compreender quando lhe aprouver, o que vos recusais a acreditar agora.
Ide, correi todos os perigos, ostentai bravura e intrepidez, arriscando todos os dias a vossa eternidade. Mas vós, cristãos, temei cair nas suas terríveis mãos. Remediai as desordens das consciências gangrenadas.
Pecadores, há já muito tempo «que a dilatação, das vossas chagas não tem ligadura, que as vossas velhas feridas não foram friccionadas por nenhum balsamo» – Vulnuus et livor, et plaga tumens; non est circumligata, nec curata medicamine, neque fota oleo (Is 1, 6).
Procurai médico que vos trate. Procurai um confessor que vos faça a ligadura duma salutar disciplina. Sejam os seus conselhos o vosso óleo. Seja a graça do Sacramento um benigno bálsamo para as suas chagas. Ou, se vos aproximastes de Deus, se fizestes penitência nesta grande solenidade, ide e não mais pequeis! (Jo 8, 11).
Pois quê! Esperais tudo só desta vida! Ah tais pensamentos não são inspirados pela razão, e sim pelo despeito e pelo desespero. Se assim fosse, cristãos, se todas as nossas esperanças se limitassem ao mundo, teríamos então alguma razão em nos julgarmos inferiores aos animais irracionais.
As nossas doenças, as nossas angústias, as nossas loucuras ambiciosas, as nossas tristes e desgraçadas previsões, que precedem os males, em vez de lhes impedirem o curso, levariam as nossas misérias ao seu auge.
Despertai, pois, ó filhos de Adão, mas despertai ó filhos de Deus, pensando na nossa origem.
Senhor, seria aborrecido de Deus e dos homens quem não desejasse a nossa glória mesmo nesta vida e quem se recusasse a concorrer para ela com todas as suas forças por meio de serviços leais.
Mas eu seria desleal e traidor para com Vossa Majestade, se eu limitasse os meus votos a essa vida perecedoura. Vivei, pois, sempre feliz, sempre ajudado da fortuna e da vitória sobre os vossos inimigos, como o pai dos vossos povos: mas vivei sempre bem, sempre justo, sempre humilde e sempre piedoso, sempre devotado à religião e protetor da Igreja.
Assim vos veremos sempre rei, sempre augusto, sempre coroado, neste mundo e no outro. E é a felicidade que vos desejo com o Pai, com o Filho e com o Espirito Santo. Disse.
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(BOSSUET, Jacques-Bénigne. Sermões de Bossuet, Volume I. Tradução de Manuel de Mello. Casa Editora de Antonio Figueirinhas 1909 – Porto, 1909, Tomo I, p. 39-62)