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Cólera

Cólera, Tesouros de Cornélio à Lápide

Tristes efeitos da ira, sobretudo para quem a ela se entrega

Com justiça, o homem colérico é comparado à abelha que, para vingar-se, infunde seu aguilhão no corpo daqueles que lhe perseguem, e perde-o com a vida. Como a abelha, o homem, levado pela ira, deixa ouvir um murmúrio ameaçador; para vingar-se e para ferir, fere-se a si mesmo e, muitas vezes, mancha a sua alma com um pecado mortal: porque assim diz o Real Profeta: Rodearam-me como enxame de irritadas abelhas: Circundederunt me sicut apes (Sl 117, 12).

Os pensamentos do homem que se encoleriza, diz São Jerônimo, parecem-se ao parto da víbora: causam sua morte (Ex Philon.).

A ira é a obscuridade, a turbação, o tumulto e a tempestade do espírito, sobre o qual passa como água negra e agitada.

Pela cólera, diz São Gregório, perde-se de tal maneira a sabedoria que já não se sabe como deve-se agir, nem tampouco o que se deve fazer; porque extingue toda a luz da inteligência quando turba a alma com um violento choque: Per iram sapientia perditur, ut quid quoque ordine agendum sit, omnio nesciat; quia nimirum intelligentiae lucem subtrahit, cum mentempermovendo confundit (Lib. V. Moral.).

O homem tomado pela cólera não se diferencia de um louco senão pela duração do acesso que experimenta.

Perguntavam a Platão com que sinais se poderia conhecer um homem sábio e sadio: Quando lhe vituperam e lhe rasgam, respondeu o sábio, não sente desgosto; quando lhe louvam, não se enche de orgulho; porém, o insensato é escravo da cólera, que não pode dominar suas paixões (Dialog.)

É preciso considerar a fealdade da ira…

Plutarco convida ao homem enfurecido a contemplar-se em um espelho e em sua conduta; então, vendo que seu rosto e suas ações parecem-se aos dos loucos, terão aversão à cólera e a evitará (De Morib.).

O coração, inflamado de cólera, palpita – diz São Gregório – o corpo treme, a língua balbucia, o rosto se altera, e os olhos se acendem; nem mesmo aos amigos reconhece mais. A ira faz perder o uso da razão; olha-se como justo e legítimo tudo o que ela sugere: Ira judicium rationis exasperat; omne quodfuror suggerit, rectum putat (Lib. V Moral.). A cólera é cega, e põe também uma venda aos homens: Coeca est, et excoecat (Ut supra).

A ira apaga, na alma a que domina, toda paciência, toda prudência, toda caridade, toda justiça, toda humanidade etc.

Não sejas fácil em irar-te, diz o Eclesiastes; porque a ira se abriga no coração do insensato: Ne sis velox ad irascendum; quia ira in sinu stulti requiescit (Ecl 7, 10). A ira é o sinal de ignorância, diz São Jerônimo: Ira est signum insipientiae (Epist.).

O homem oco mostra logo sua ira; porém, o varão circunspecto dissimula a injúria, dizem os Provérbios: Fatuus satatim indicat iram suam (Pr 12, 16).

O homem iracundo manifesta seu frenesi com um rosto que expressa o furor, com palavras plenas de indignação, com gestos ameaçadores etc.; levanta a voz, grita, ameaça, dá golpes com as mãos e com os pés, escapam- lhe injúrias e, muitas vezes, calúnias etc.; a ira é como a fagulha de um fogo que cai sobre estopa; se não se apaga no momento, ganha terreno, avança rapidamente, e não se detém senão quando já incendiou toda a casa e as chamas saem pelas janelas e pelo teto. O insensato que não resiste à cólera, mas obedece-lhe, ou dá-lhe carícias e calor e a alimenta, há de ser sua vítima.

O homem encolerizado assemelha-se àquele que, antes de acabar de receber uma ordem, e sem a haver compreendido, precipita-se a executá-la e engana-se, diz Aristóteles.

Os cachorros ladram quando alguém, ainda que seja seu dono, chama à porta; assim é o homem colérico: por causa de seu ardor e de seu caráter arrebatador, não escuta a voz da razão, nem a do preceito. Apressa-se a vingar-se a ferir (Lib. VII. Etich., c. VI)

O homem colérico, diz Cassiano, age sem tomar conselho, e cava pecados: Vir iracundus agit sine consilio, effodit peccata (Collat.). Duas coisas estão opostas à sã razão: apressar-se demais para agir, e encolerizar-se.

Os sinais certos pelos quais um insensato pode se dar a conhecer, diz Sêneca, são um rosto audaz e ameaçador, uma fronte triste, uma cabeça agitada, uma marcha desigual, mãos continuamente em movimento, uma cor de rosto que não é natural, suspiros, e gritos frequentes e agudos. Também indicam a ira os seguintes sinais: os olhos movem-se e chispam, o rosto acende-se, os lábios apertam-se, os dentes chasqueiam, os cabelos eriçam-se, o espírito agitado estremece-se; emitem- se sons inarticulados; soluços, gritos, rugidos, palavras vivas e entrecortadas escapam-se da boca; todo o corpo sua; tudo é uma ameaça, desde a cabeça aos pés;

o rosto toma-se horrível, espantoso de se ver; e brota dele a espuma da raiva (Lib. I, De Ira, c. I).

A cólera turba a alma, diz Santo Efrém; debilita os sentidos; os pensamentos de vingança escapam-se do coração como a água de um rio que sai do leito: Ex ira mens perturbatur, sensos debilitatur, et cogitationes vindictae fluminis instar scaturiunt (Serm. VII).

Menos se sofreria, diz São João Crisóstomo, vivendo com animais ferozes do que com um homem de caráter arrebatado. Pode se amansar um leão, porém não aquele homem (In Lib. I Reg.).

O homem encolerizado mostra seus dentes como o javali, lança dardos com sua língua como a serpente, pisoteia como o urso, agita seus braços como um touro aos seus chifres; não respeita nem ao vizinho, nem ao amigo, nem ao superior, não reconhece a ninguém. É como um energúmeno[1], e até pior, porque os movimentos do energúmeno são involuntários e esforçados.

A ira, diz São João Crisóstomo, é um fogo violento que tudo devora; perde o corpo e corrompe a alma: Ignis est vehemens ira omnia devorans; nam et corpus perdit, et animam corrumpit (In Lib. I Reg.).

A ira é uma fera selvagem e uma leoa que não se pode domar. Ela origina disputas, querelas, injúrias, maledicências, calúnias, juramentos, blasfêmias, imprecações, maldições. O homem que cede à ira é levado aos ultrajes, aos golpes, ao assassinato; nada há tão cruel e inumano que não se atreva ele a empreender quando o excita o furor; porque, desaparecendo a razão e o espírito, não faz mais que seguir a inspiração de seu furor.

A ira, diz São Gregório, destrói o encanto da sociedade, rompe a concórdia, suprime a luz da verdade e faz desaparecer o brilho que o Espírito Santo derrama na alma: Per iram gratia vitae socialis amittitur, concordia rumpitur, luz veritatis amittitur, Spiritus Sancti splendor excluditur (Lib. V Moral., c. XXX).

A ira desperta a ambição, a inveja, a luxúria, o ódio etc.; leva, sobretudo, à maldade, à vingança e ao homicídio.

O homem iracundo suscita lutas; o sofredor apazigua as que se excitaram, dizem os Provérbios: Vir iracundusprovocat rixas; quipatiens est, mitigat sucitatas (Pr 15, 18).

Semelhante a um animal feroz solto, a ira conduz a desordem a todas as coisas, diz Aristóteles. É como um lugar de onde sai a dureza e a violência; causa a injusta efusão do sangue; é a companheira da desgraça, e arrasta em sua queda a infâmia e o opróbrio (apud Stoboeum, Serm. XVIII).

Quem facilmente enoja-se estará mais exposto a pecar, dizem os Provérbios: Qui ad indignandum facilis est, erit ad peccandum proclivior (Pr 29, 22). Vê-se arrastado a uma multidão de pecados de coração, de palavras e de ações:

a) pecados de coração, isto é, murmúrios interiores, exasperação, pensamentos e desejos de vingança etc.;

b) pecados de palavras: clamores, disputas, afrontas e maldições; o homem colérico fala como um cego e como um surdo; diz o que é verdadeiro, mas misturando-o ao que é falso, exagera etc.; e

c) pecados de ação: procedimentos injustos, rapinas, golpes, morte; parece- se ao demônio, que só respira raiva e trata de incendiar tudo.

O homem dado à ira dá asilo ao demônio. E ele também é um espírito infernal

A alma inclinada à ira é o ninho do demônio; nela deposita Satanás os pensamentos culpáveis, fomenta-os e desenvolve-os.

Não deis entrada ao diabo, diz São Paulo: Nolite locum dare diabolo (Ef 4, 27). E acontece, quando se escutam as inspirações da ira e se as fomentam, que a ira abre, de par em par, as portas (da alma) a Satanás e lhe faz sala; ele se resvala muito fácil e secretamente no coração após os pensamentos de amargura; amplia desmesuradamente a injúria recebida; e, com suas sugestões e seus conselhos. empurra tudo à vingança. Por isso, a ira agita o sangue e o espírito, inflama a bílis, destrói a razão e o juízo do homem arrebatado, até o ponto de persuadir-lhe que a vingança premeditada não é vingança, senão um ‘ato de justiça ’; então, o homem não vê nem seu crime, nem os perigos a que se expõe; é menos ele que age que sua ira juntamente com o demônio que habita nele, e ao qual obedece, tal como o corpo à alma.

Onde há ira, não está o Senhor, senão esta paixão amiga de Satanás, diz São Clemente: Ubi est ira, ibo non est Dominus, sed amica Satanae (Lib. II, Constit., c. XXXVII).

Aquele que se deixa dominar pela ira hospeda em seu interior ao demônio, diz São Basílio: Qui iram habet, demonium in se continet (Homil. de Ira). São João Crisóstomo chama à ira “demônio da vontade” (Homil. in Dulc).

Este nosso amo (Nabal), avisava a Abigail que um dos criados dele é um filho de Belial, tão violento que ninguém se atreve a falar-lhe, diz o livro primeiro dos Reis: Ipse est filius Belial; ita ut nemo possit ei loqui (I Reg. XXV, 17).

São Gregório Nazianzeno diz que o homem colérico é um demônio. Ó ira, exclama este Padre, vício querido do execrável Satanás: tu és o provedor do inferno; tu precipitas ao homem no fogo eterno; tu o entregas ao espírito infernal! Sim, o homem colérico é um demônio; maltrata, grita, está furioso, debate-se, fere como se não fosse um homem, mas tão apenas um demônio (In Carm. ad Iram).

A ira parece-se ao fogo do inferno, que arde, porém, não clareia; é muito ardente, porém, está cheio de trevas. A ira apodera-se da alma, obscurece a razão até o ponto de que o homem já não vê nem o que diz, nem o que faz.

A ira manifesta a maldade do coração

A ira prova que o coração está pleno de fel. O homem que se deixa vencer pela ira e se abandona muitas vezes a este vício é um ser degredado, mau, cruel, é um flagelo para sua família e para a sociedade.

O homem levado pela ira é vingativo; examina cuidadosamente tanto a gravidade da injuria que recebeu, quanto a maneira mais cruel e selvagem que há para vingar-se. Aplica-se a desenterrar as palavras lancinantes que já caíram em desuso, e serve-se delas para humilhar profundamente aos demais.

O homem manso e paciente é feliz; agrada a Deus e aos homens; o homem colérico é desgraçado; Deus detesta-o e amaldiçoa-o; os homens também o detestam, temem-no, fogem dele e maldizem-no. O homem colérico converte-se em suplício, em inferno de si mesmo, e o é também aos demais.

Causas da ira

Se vós quiserdes vencer a ira e destruí-la, renunciai às paixões imundas e criminais; porque enquanto elas vos seduzirem, estareis sujeitos à ira.

As causas da ira são:

1.a a perda do temor de Deus e da fé;

2.a uma má educação na juventude, maus princípios dados e recebidos;

3.a o excessos de jogo, de embriaguez, de libertinagem; e

4.a Porém, a causa principal é o orgulho.

Vãs desculpas alegadas para justificar a ira

Aquele que quer justificar sua ira, diz Santo Ambrósio, não faz mais que aumentá-la e preparar uma nova falta: Qui vult iram suam justam probare, plus inflamatur, et cito in culpam cadit (Lib. de Offic.).

Não há vício que se trate de escusar tanto como a ira. Como procede principalmente do orgulho, ninguém se quer acusar a si mesmo, e todos pretendem ter razões para enraivecer-se. “Assim é meu caráter”, dizem; “Não me posso conter. Minha mulher, meus filhos, meus criados, tem culpa de meus arrebatamentos. Provocam-me sem razão” etc. E, assim, a todas as coisas acusais, menos ao culpável, isto é, a vós mesmos. Não somente todos procuram se desculpar dos arrebatamentos de ira, senão que procuram se servir deste vício para desculpar aos demais.

Por que blasfemais, homem obcecado?

A ira obriga-me a fazê-lo!

Por que vos vingais e conservais rancor em vosso coração?

Porque sou iracundo!

Por que insultastes e feristes àquela pessoa?

Estava enraivecido, etc.

Porém todas essas escusas são iniquidades! Ninguém se pode justificar um crime com outro crime!

Castigos da Ira

De sua inflexível ira, diz a Sabedoria, Deus fará para si uma aguda lança; e com Ele todo o universo pelejará contra os insensatos: Acuet autem duram iram in lanceam; etpugnabit cum illo orbis terrarum contra insensatos (Sb 5, 21).

Deus afasta-se dos homens que se abandonam à ira; Ele os amaldiçoa no tempo, na hora da morte e na eternidade. Os homens amaldiçoam-nos durante sua vida, alegram-se de sua morte e detestam sua memória. Os vivos descansam quando o homem colérico morre.

Remédios contra a cólera

Se houve debilidade que resultou em cólera, procure-se que a ira não seja de longa duração. Não aconteça que se vos ponha o sol estando, todavia, irados, isto é, não vos encolerizeis, diz São Paulo: Sol non occidat super iracundiam vestram (Ef 4, 26).

Segundo a interpretação de Santo Agostinho, Jesus Cristo não quer habitar com a ira. Deixai a cólera, expulsai-a de vosso coração antes que o sol, luz visível, desapareça; a fim de que Jesus Cristo, luz invisível, não vos abandone: Ne sol occidat, is est, ne Christus deserat mentem tuam, quia non vult Christus habitare cum iracundia. Ejuce iram de corede, antequem occidat luz ista visibilis, ne te deserat luz invisibilis (In haec verba Apost.).

Não vos apresseis em encolerizar-vos, diz o Eclesiastes: Ne sis velox ad iracendum (Ecl 7, 10); porque um dilatado retardo previne a cólera ou a apazigua.

É natural, diz Cassiano, que a ira se debilite ou se apague, se a explosão retarda; porém, cedendo-se a ela, inflama-se mais e mais: Haec est natura irae, ut data languescat etpereat, prolata vero, magis magisque conflagret (Collat. XVI, c. XXVII).

Os remédios contra a ira são:

1.° recordar que a ira está proibida;

2.° conter a língua e a mão. O Filósofo Athenodoro dizia ao Imperador César Augusto: Quando estiverdes enraivecido, não digas nada, não façais nada, e esperai ter transcorrido o tempo necessário para recitar o alfabeto grego (Plutarc. in Apoph. Roman.).

O castigo diferido pode aplicar-se, diz Sêneca; porém, uma vez aplicado tempestivamente já não poderá ser revogado: Potest poena dilata exigi, non potest exata revocari (Lib. II, De ira, c. XXVI);

3.° considerar a feiura e a deformidade da cólera;

4.° aplicar atenção ao perjúrio causado por quem cede à ira. Não é o homem que nos há de irritar, mas os seus vícios. É preciso castigar o pecado, diz Santo Agostinho, porém, respeitar o pecador (De Dulc.). É preciso imitar o médico, que não se incomoda com as injúrias que lhe dirigem os enfermos;

5.° refletir na insignificância daquilo que nos encoleriza;

6.° extirpar as paixões que as produzem;

7.° recordar a doçura e a mansidão de Jesus Cristo. Se trouxermos na memória os padecimentos de Jesus Cristo, diz Santo Ambrósio, nada acharemos tão penoso que não possamos sofrer com paciência: Si passio Redemptoris ad memoriam reducamur, nihil tam durum quod non aequo animo toleretur (Serm. V).

São Gregório Nazianzeno indica três meios para preservar-nos da ira: o primeiro, a oração; o segundo, o sinal da cruz; o terceiro, a humildade (In Distich.).

Há uma ira santa

Há duas classes de ira no homem, diz Santo Tomás:

1.a a que previne a razão, que se apodera dela e faz o homem agir; e, então, a ira é a que propriamente funciona, posto que a operação atribui-se ao agente principal: esta ira é má.

2.a Há a ira que segue as inspirações da razão, e é como um instrumento seu; então, a operação, que é um ato de justiça, não se atribui à ira, senão à razão. Assim é que se irritar contra o vício, contra as desordens, contra um corruptor etc. não é um mal; é zelo, é uma indignação santa e um dever. Por isso diz o Rei Profeta: Enojai-vos e não queirais pecar: Irascimini et nolite peccare (Sl 4, 5).

De santa ira estava animado Nosso Senhor quando expulsou do Templo aqueles que o profanavam; quando Ele desmascarava nos escribas e fariseus seu orgulho e hipocrisia, e os chamava “raça de víboras” (De Peccat.).

Em Deus, a ira não é mais que o desejo (do bem), o amor da justiça e (a promessa) de um justo castigo.


Referência:

[1] Um possesso.