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Da vida privada de Jesus Cristo e de sua humilde submissão a Maria e José

life of jesus christ

Capítulo XI

Erat subditus illis – “E Jesus estava à obediência deles” (Lc 2, 51)

Transportemo-nos, cristãos, à pequena casa de Nazaré, à humilde habitação de Maria e José. Ali serão feridos nossos olhos de um espetáculo digno de toda a nossa admiração; ali veremos o nosso Jesus submeter-se, por amor nosso, à sua criatura, e nada mais fazer, até à idade de trinta anos, do que obedecer. Erat subditus illis. A estas palavras, exclama Bossuet, fico transportado de admiração; pois este era o único emprego de Jesus Cristo, do Filho de Deus? Todo o seu emprego, todo o seu exercício, era obedecer a duas de suas criaturas. E obedecer-lhes em quê? Nos mais baixos ofícios, na prática de uma arte mecânica. Onde estão os que se lastimam que murmuram de seus cargos não corresponderem ao seu gênio, melhor digamos a seu orgulho? Que venham a casa de José e Maria e que vejam a Jesus Cristo… Ó Deus, já não estou em mim! Vem, orgulho, vem arrebentar à vista deste espetáculo! Jesus filho de um carpinteiro, ele mesmo carpinteiro, conhecido só por este ofício, e não se falar de outro emprego ou ação sua! Diz Bossuet nas “Elevações sobre os mistérios“.

Eis, ó Jesus meu! Como por amor desta pobre alma e por destruir o meu orgulho colhestes prazer em ocultar-vos tanto tempo, e encobrir aos olhos dos homens todos os tesouros da vossa divindade! Ah! Dai-me a graça de vos amar de todo o meu coração, em reconhecimento de tão bela e tão útil lição!

Quero, com meu exemplo, ensinar-te, filho meu, que toda a verdadeira e solida grandeza está em ser virtuoso sem rumor, sem ostentação, e passar uma vida dependente e oculta. Enquanto que em Nazaré assim eu vivia incógnito, em Roma e em toda a extensão do império Romano floresciam famosos oradores, egrégios capitães, ilustres poetas, hábeis políticos; a fama do seu nome retumbava em todo o mundo; de boca em boca voavam os seus louvores, e quase ninguém haveria que não invejasse tal sorte. Pensas tu, meu filho, que lá do alto dos céus de uma vã fama: Vede que reputação adquiriram, de quanta glória se cobrem? Não, meu filho, não, para a pequena casa de Nazaré é que ele lhes apontava dizia: Vede o meu filho, vede como obedece, até onde se humilha, quanto ama os homens, quanto me ama a mim mesmo. Não é, pois, o fausto e glória, não são as riquezas e grandezas da terra que atraem as vistas e admiração de Deus meu Pai! Grande pode ser um homem aos olhos do mundo, pequeno aos d’Aquele que julga das coisas por seu justo valor. A Deus, tão agradável se pode ser nos mais baixos e abjetos serviços, como nas mais honradas elevadas funções. Por aqui aprende tu a te contentares com o estado humilde em que te coloquei, e não desejes um outro em que serias menos incógnito, menos esquecido, menos desprezado. Lembra-te frequentemente que mil vezes mais vale estar oculto e desconhecido como eu, que mostrar-se.

Jesus estava à obediência deles. Ó céu, é possível que quem com tanta deferência obedece a Maria e José, seja esse grande Deus que como Senhor impera em toda a natureza! Sim, e a fé me ordena que acredite.

“É a ele, diz São Bernardo, que todos os anjos estão sujeitos, que os principados e potestades obedecem: e contudo submete-se a Maria e humildemente executa todas as suas ordens. E não é só a Maria, mas por amor de Maria também a José se submete. Duas coisas admiremos nisto, e em ambas escolhamos qual mais nos deva assombrar: se o profundo abatimento do Filho, se a alta dignidade da Mãe, mas tanto uma como outro igualmente são dignas de admiração. Que um Deus obedeça a uma mulher, humildade é esta sem exemplo: mandar uma mulher a um Deus, é autoridade e prerrogativa sublime e sem exemplo. Aprende, pois, a obedecer tu, ó homem mortal; cinca e pó, aprende a submeter-te, aprende a fazer o que te mandam… Cora de vergonha, cinza orgulhosa! O teu Deus a abater-se, e tu a elevares-te! O teu Deus a submeter-se aos homens, e tu em teu coração nutrires insensatos desejos de dominar! Tu quereres estar à testa dos mais! Tu preferistes ao teu Criador! Sim, repara bem, sempre que desejas dominar aos teus irmãos, acima de Deus te elevas e procuras usurpar os seus direitos… Ó cristão! Se, homem mortal como és, hás por indigno de ti o imitar a um teu semelhante, que te não seja indecoroso seguir as pisadas do teu Criador. Se o não podes seguir até onde se elevou, vai ao menos até onde desceu.”

E Jesus estava à obediência deles“. Que sublime lição esta para nós que de tão má vontade nos submetemos aos nossos superiores! Feliz quem dela se quiser aproveitar! Feliz quem com fidelidade caminhar na via da obediência a outrem! O caminho da obediência, diz Thomaz de Kempis, é o que conduz ao céu; assim muito mais seguro é obedecer que mandar. O homem que se submete e obedece sempre está em profunda paz; e ninguém vive em mais serenidade, ninguém com mais doce calma e segurança morre que o que sempre obedeceu. Só a obediência é a que em nossas almas faz brotar todas as virtudes; quem as cultiva, quem as pode conservar, ela é. A obediência, diz Salomão, é mui bem melhor que os sacrifícios: porque ela sacrifica a Deus a nossa própria vontade incomparavelmente mais preciosa a seus olhos que a carne dos animais que lhe é imolada. É a obediência uma vitória que o homem sobre si mesmo alcança, e mais glorioso triunfo não há para ele do que submeter a sua vontade à do outro homem seu semelhante. Deixemo-nos, pois, conduzir, se sinceramente desejamos chegar ao porto; jamais nos escapem murmúrios ou palavras picantes contra as pessoas em cuja dependência nos achamos colocados, e acabemos de persuadir-nos que com bem justa razão merecemos o último lugar, porque todos os outros tem mais virtudes do que nós.

E Jesus estava à obediência deles“. Obedece a Maria e José até à idade de trinta anos em que seu Pai o envia a evangelizar os povos da Judeia. Que motivo de vergonha para tantos filhos ingratos e desnaturados que com uma culpável ânsia sacodem o salutar jugo da obediência que devem aos autores dos seus dias!

E Jesus estava à obediência deles“. Sim, em tudo lhes obedecia. Os mais baixo ofícios de uma pobre casa não o enfastiavam, tanto a peito tomara testemunhar-nos por todos os meios possíveis a grandeza do seu amor. A quantos abatimentos, doce Jesus meu, vos não condenastes para minha instrução! Trinta anos vos aprouve ocultar sob o mais ordinário exterior a vossa divindade, para me ensinar a amar uma vida retirada, para me ensinar a encobrir sob os véus da humildade e do silêncio as graças que queirais fazer-me. Trinta anos vivestes incógnito a todo o mundo, para me ensinar a amar a humildade. Trinta anos obedecestes a vossas criaturas, para derrubar este meu orgulho que se não quer submeter, e aprender a obedecer com simplicidade a todos os que revestistes de vossa autoridade.

Perdão! Meu deus, perdão! Até aqui bem pouco me aproveitei dos vossos exemplos, mas para o futuro hei de ver se me aproveito; ajudai-me, ajudai-me. Ó Jesus meu! Dai-me a graça de renunciar à própria vontade, para não seguir senão a vossa. Dai-me a graça de caminhar sobre os vossos vestígios e procurar a santa humildade, com mais afã ainda do que põem os ambiciosos do mundo em anelar as honras. Sois o grande Deus, o soberano Senhor do céu e da terra, o Deus dos deuses, o Rei dos reis, o Senhor dos senhores, e abatei-vos! E eu, verme da terra, miserável nada, exalto-me! Ó meu Deus! Perdoai-me a minha loucura. Faço-vos confissão de minhas misérias: confesso que sou um filho de cólera, que fui concebido na iniquidade, e que minha mãe me gerou no pecado. Neste mundo entrei com a nodoa do criem, e a morte, em seu justo castigo, dele me tirará brevemente, Ó bom e misericordioso Jesus! Tende piedade de mim. Continuamente agitada está minha alma, como um mar, pelo vento das paixões e desejos desregrados. Os meus pecados, ó Deus meu, excedem o número dos cabelos da minha cabeça, e não mereço levantar os olhos ao céu, por causa da multidão dos meus pecados. Ah! Livrai-me por vossa bondade. Senhor, meu Deus, apressai-vos a me socorrer. Lembrai-vos da vossa bondade, recordai-vos das vossas misericórdias, que são eternas, e curai a minha alma pois que só vós a podeis curar. Sou pobre, de tudo necessitado, e miséria tal é esta minha que a não me socorrerdes, nem sequer querer o bem posso, menos executar os meus bons desejos. E com toda esta fraqueza, e com toda esta miséria, ouso ainda ser orgulhoso! Ó Deus meu! Piedade; toquem-vos o coração os meus suspiros, obrigue-vos a escutar-me essa caridade que por mim vos fez morrer na cruz. O vosso amor, o perdão dos meus pecados, a humildade, o espírito de obediência, é tudo o que vos peço. Vinde, ó Jesus meu, a este coração, nele fixai a vossa morada, nele imperai como soberano, sempre, sempre. Vinde, e sereis a minha consolação, a minha força, o meu sustentáculo, o meu amigo, o meu irmão, o meu tesouro, a minha vida, o meu tudo.

Vinde, e ensinar-me-eis a vos amar sempre e mais de cada vez, e a me desprender das criaturas. Vinde, e operareis um milagre digno do meu Jesus; de um pecador orgulhoso e sensual fareis um penitente humilde e mortificado. Ah! Vinde, ó meu Jesus, ó Deus da minha alma! Vinde, vinde. Assim seja.

RESOLUÇÕES PRÁTICAS

Da Vida Oculta e da Obediência

Hoje, meu caro Teótimo, hás de trabalhar em imitar a Jesus Cristo na vida oculta e obediência.

1º A Vida Oculta. Evita quanto o decoro do teu estado permitir o aparecer nas assembleias mundanas; nunca um servo de Deus está bem seguro senão quando se acha no retiro. Oculta quanto ser possa tudo o que puderes ter de bom. Por sábio ou rico não busques passar; pois, ai! O que são todas as riquezas e ciências do mundo? Preza o viver incógnito e não ser tido em conta alguma. Oh! E quão ditoso serás, quando sem mágoa vires todos os mais honrados, elevados a cargos, a dignidades; e a ti, todos a desprezarem-te, a nem em ti pensarem, e até mesmo a darem mostra de te aborrecerem! Dá-te toda a pressa a arrancar do teu coração a ambição; que ela afasta de Jesus a alma que a nutre; atormenta-a de cruciantes dores e nunca a deixa em paz. Ah! Que se os homens bem soubessem não serem as honras mais que pesadas cargas, após elas não iriam com tanto afã. Nunca em tuas boas obras procures os aplausos dos homens; contenta-te com ter por testemunha a Deus e tua consciência.

Um dia no leito da morte, estarás absorvido de celestes consolações por sempre haveres vivido humilde, pequeno a teus próprios olhos, de todos esquecido e ignorado; dia virá em que conhecerás todo o fruto da vida oculta de Deus.

2º A Obediência. Com singeleza e sem murmúrio obedece a todo o que sobre ti tenha alguma autoridade; em suas ordens acostuma-te a ver as do mesmo Jesus Cristo. Consiste a verdadeira obediência em fazer, não o que nos agrada, mas sim o mais oposto ao nosso caráter. Sobre este ponto escuta São Bernardo; um homem verdadeiramente obediente não sabe o que é diferir e deixar para amanhã; é inimigo de demoras; ainda bem o não tem mandado e já a obediência está cumprida; previne os mandados que se lhe querem fazer; sempre está pronto a ver, dizer, fazer tudo o que os outros querem e a ir onde o enviam. Reconheces-te neste quadro? Hoje, pois, toma a boa e generosa resolução de praticar a santa obediência em sua perfeição, segundo o estado em que te colocou a Providência. se vives em comunidade, dir-te-ei: obedece a teus superiores em tudo o que não for pecado, mas obedece singelamente e sem resmungar, sem te pores a examinar porque te mandam, sem investigar outra razão de obedecer mais que a de agradar a Nosso Senhor. Se vives no meio do mundo dir-te-ei: obedece ao diretor da tua consciência como ao próprio Deus. Servos, obedecei aos vossos senhores temporais, com temor e tremor e na sinceridade do vosso coração, como obedeceríeis a Jesus Cristo; obedecei não só aos senhores bons e moderados, mas também aos de dura condição.

Bem sei eu, meu caro Teótimo, sim bem sei que custa tanto quebrar a própria vontade, que é tão difícil domá-la, encadeá-la e submete-la à de outrem, que às vezes, à vista das dificuldades, tentado te verás abandonar a carreira começada e ir viver na independência. Mas, ó caro irmão, nada de desanimar! Levanta os olhos ao céu, a esse tão belo céu, palácio da eterna glória: lá é que Deus te está esperando para dignamente te recompensar dos teus esforços, de lá é que te está animando no meio dos teus combates e te diz: Meu filho, não te esqueças que por teu amor e para te deixar um belo exemplo a seguir, Jesus Cristo, meu Filho e teu Salvador, obedeceu trinta anos a duas criaturas suas; não olvides que levou a perfeição da obediência até morrer sobre a cruz; não percas de vista que o discípulo não deve ser mais do que o mestre; se o teu Salvador toda sua vida submeteu a sua vontade, bem justo é que também submetas a tua! Coragem pois! A tua recompensa será o céu.

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(Pinnard, Abade Dom. As Chamas do Amor de Jesus ou provas do ardente amor que Jesus nos tem testemunhado na obra da nossa redenção. Traduzido pelo Rev. Padre Silva, 1923, p. 73-80)