Capítulo IV
Querendo Tobias mandar o filho a uma terra longínqua e estranha, disse-lhe: “Vai em busca de algum homem que te seja fiel, que vá contigo”. É o que te digo também a ti, Filotéia; se tens uma vontade sincera de entrar nas veredas da devoção, procura um guia sábio e prático que te conduza. Esta é a advertência mais necessária e importante.
“Em tudo o que fazemos — diz o devoto Ávila — só temos certeza de estar fazendo a vontade de Deus, enquanto não nos apartamos daquela obediência submissa, que os santos tanto encomendaram e praticaram tão fielmente”
Ouvindo Santa Teresa da austeridade e penitencias de Catarina de Cardona, concebeu grande desejo de imitá-la e foi tentada a não seguir o seu confessor, que lho proibia.
Entretanto, como se submetesse, Nosso Senhor lhe disse:
“Minha filha, o caminho que segues é bom e seguro; tu estimavas muito essas penitencias, mas eu estimo mais ainda tua obediência”
Desde então ela devotou-se tanto a esta virtude que, além da obediência devida a seus superiores, ela se ligou, por um voto especial, a seguir a direção de um homem prudente e de bem, o que sempre a edificou e consolou muito. De modo semelhante, já antes e depois dela, muitas almas santas, que queriam viver inteiramente sob a dependência de Deus, submeteram a sua própria vontade a de um de seus ministros. É essa a sujeição humilde que Santa Catarina de Sena tanto encomia em seus diálogos. Foi também a prática da santa princesa Isabel, que prestava uma obediência perfeita a direção do sábio Conrado. Nem outro foi o conselho que, ao morrer, deu a São Luís, seu filho.
“Confessa-te a miúdo e escolhe um confessor insigne por sua ciência e sabedoria, o qua; te ajude com suas luzes em tudo o que for necessário para a tua direção espiritual”
O amigo fiel é uma forte proteção — diz a Sagrada Escritura — quem o achou achou um tesouro. O amigo fiel é um medicamento de vida e de imortalidade, c os que temem o Senhor acharão um tal amigo.
Trata-se aqui principalmente da imortalidade da vida futura; e, se a quisermos alcançar, convém ter um amigo fiel ao nosso lado, que dirija as nossas ações com uma mão segura, através das ciladas e embustes do inimigo. Ele será para nós um tesouro de sabedoria para evitar o mal e praticar o bem de uma maneira mais perfeita; ele nos dará conforto para aliviar-nos em nossas quedas e nos dará o remédio mais necessário para a cura perfeita de nossas enfermidades espirituais.
Mas quem achará um tal amigo? Diz o sábio que é aquele que teme a Deus, isto é, o homem humilde que anseia com ardor o seu adiantamento espiritual. Se é, pois, tão importante, Filotéia, ter um guia. experimentado nos caminhos da devoção, pede com todo o fervor a Deus que te mande um segundo o seu Coração e não duvides nem um instante que ele te enviará um diretor sábio e fiel, ainda que fosse um anjo do céu, como ao jovem Tobias.
De fato, esse amigo deve ser um anjo para ti, isto é, uma vez que o tenhas obtido de Deus, já não o deves considerar como um simples homem. Não deposites a tua confiança nele senão com respeito a Deus, que, por seu ministério, te quer guiar e instruir, suscitando no seu coração e nos seus lábios os sentimentos e as palavras necessárias para a tua direção. Por isso deves ouvi-lo como a um anjo que vem do céu para te dirigir. Ajunta a esta confiança uma sinceridade a toda prova, tratando-o franca e abertamente e deixando-lhe ver em tua alma todo o bem e o mal que aí se encontram: o bem será mais certo e o mal menos profundo; a tua alma será mais forte nas adversidades e mais moderada nas consolações. Um religioso respeito também deves ajuntar a confiança, de tal forma que o respeito não diminua a confiança, nem a confiança o respeito. Confia nele como uma filha em seu pai e respeita-o como um filho sua mãe. Numa palavra: esta amizade, que deve unir a força com a doçura, tem que ser toda espiritual, toda santa, toda sagrada, toda divina.
“Escolhe, pois, um entre mil — diz Ávila” — e eu te digo: escolhe um entre dez mil, porque se acham muito menos do que se cuida, que sejam capazes deste ofício. Deve ser cheio de caridade, ciência e prudência; se faltar uma destas três qualidades, a escolha será arriscada. Repito-te ainda uma vez: suplica a Deus um diretor e, quando o achares, agradece a divina Majestade; persevera então em tua escolha, sem ir procurar outros; caminha para Deus com toda a simplicidade, humildade e confiança e tua viagem será certamente feliz.
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(SALES, São Francisco de. Filoteia ou a Introdução à Vida Devota. Editora Vozes, 8ª ed., 1958, p. 30-33)