Skip to content Skip to footer

São João na Paixão de Jesus Cristo

Capítulo 8: São João na Paixão de Jesus Cristo

I

Depois do hino de ação de graças, Jesus Cristo, tendo dado o sinal para deixar o cenáculo, encaminhou-Se para o monte das Oliveiras, onde costumava orar durante a noite.

Foi durante esse trajeto que fez a seus discípulos uma parte do discurso que nos transmitiu São João, e do qual precisa bem o lugar e as circunstâncias. Caminhavam juntos lentamente, por uma noite triste e suavemente iluminada pelo luar da Páscoa. E, ao atravessar as vinhas que, naquele lugar cresciam como grandes arbustos, Jesus, segundo o costume, tomava da natureza que se lhe antolhava, imagens capazes de melhor fazer compreender a sua doutrina.

“Eu sou, dizia ele, a verdadeira vida, e meu Pai é o agricultor. Eu sou a videira, e vós as varas. O que permanece em mim, e eu nele esse dará muito fruto; porque sem mim nada podeis fazer” – Ego sum vitis vera, et Pater meus agrícola est… Ego sum vitis, vos palmite. Qui manet in me et ego in eo, hic fert fructum multum: quia sine me nihil potetis, facere (Jo 15, 1, 5).

Assim chegaram, sempre segundo São João, ao pé da montanha, num lugar pedregoso no qual a história e a profecia estão de acordo em indicar como o local de seus temores. É o leito do Cédron, cavado no vale chamado primitivamente Tophet ou Ben-Hinnon e denominado depois, o Vale de Josafá. A palavra Cédron significa em hebreu, Trevas; e com efeito, nada é mais sombrio que o barranco, quase sempre seco, e em cima do qual serpenteia um atalho estreito que parece suspenso sob o abismo. Era dali que o Levítico prescrevia lançar o bode expiatório que, caindo depois do alto dos rochedos de Zug, devia expiar as culpas do povo. Davi também atravessara o Cédron quando fugia de Absalão, revoltoso. Mais adiante, o caminho alarga-se e vai ter ao lugar chamado Getsêmani. João nos faz conhecer esse caminho, onde tantas vezes o discípulo acompanhara seu divino Mestre (1).

Dominando o jardim onde o Senhor ia começar a sofrer, viam-se, de um lado, as colinas onde se acham os túmulos dos reis, as muralhas da cidade santa; do outro, a montanha de onde Jesus devia subir ao céu.

Não sofreu só: seu amigo lhe foi fiel (2). Foi vítima com ele, «pois, diz Santo Tomás, há uma aflição interior tão intensa que se pode chamar um martírio» (3). E assim como a Igreja dá o nome de Compaixão aos sofrimentos pelos quais Maria passou à vista da Paixão de seu Filho, assim daremos o mesmo nome à dor do amigo e contaremos a Compaixão de São João.

Convém distinguir duas paixões em Jesus Cristo: a do corpo, e a do coração.

Ser amarrado, escarnecido, fustigado e coroado de espinhos, ser crucificado e varado por uma lança, é o suplício do corpo. Por mais horrível que se suponha, não é essa a tortura que mais impressione as almas generosas. Afrontam-na corajosamente, algumas vezes mesmo alegres, e Deus crucificado declarou em pessoa que não se devia temer aqueles que matam só o corpo.

Mas, ser vendido por seu amigo, ter escolhido homens para seus íntimos, seus herdeiros, seus irmãos, e ver-se de repente renegado pelo primeiro deles, abandonado pelos outros; sofrer sucessivamente o ósculo da hipocrisia, o dardo da ingratidão, o abandono da pusilanimidade; suportar alternativamente a covardia deste, a venalidade daquele, o impudor de um tribunal e a estupidez insolente da plebe, enfim, ser bom, ser santo, ser salvador, ser pastor, ser pai, ser Deus, e apesar disto, talvez mesmo por causa de tudo isto, tornar-Se a vítima daqueles a quem se veio resgatar; ter deixado o céu para libertar a terra, e depois morrer desamparado do céu e da terra: esse é o suplício do coração.

Foi esse principalmente o suplício de Jesus Cristo. Toda a Sua paixão verdadeira e profundamente compreendida passa-se entre o momento em que Seu coração rompendo-Se, transvasou sangue e água no jardim da Agonia, e o momento em que esse mesmo coração, varado por uma lança, deixa ainda correr da ferida sangue e água.

A amizade de João bem o compreendeu, e como o divino Coração recebeu três golpes no tempo da paixão: o primeiro no jardim de Getsêmani com a fuga dos irmãos, o segundo em casa de Caifás com a negação de São Pedro, o terceiro na cruz pelo abandono de todos, o discípulo dileto achou-se a seu lado nessas dores, para fazer-se de sua compaixão um apoio, já que não podia fazer do corpo um amparo.

Jesus tinha vindo a Getsêmani seguido dos apóstolos:

“Eram então onze, mas só tomou consigo três: Pedro, Tiago e João, os mesmos que o tinham acompanhado a montanha onde outrora se transfigurara. Todavia os apóstolos não o seguiram até o fim; ordenou-lhes que o esperassem sob as oliveiras, e retirou-se só para a suprema agonia, pedindo-lhes unicamente que orassem para aliviar-lhe a tristeza mortal” (4)

É principalmente em horas como essas que a amizade é o mais indispensável dos bens. O próprio Deus procurava sua doçura compassiva; Ele vinha até junto dos apóstolos e tornava a voltar. Mas os apóstolos dormiam, e João o predileto, dormia como os outros.

O Evangelho não quer que se acuse este sono. Pela sua explicação foi, vencidos pela tristeza, que eles adormeceram, como certos filhos extenuados, junto do leito do pai, acabam por cair numa sonolência na qual a alma vela ainda e ressuscita a imagem de todas as dores: Dormientes erant prae tristitià.

Também Jesus Cristo não os acusava, antes compadecia-se deles. Dizia: O espírito é pronto, mas a carne é fraca e sucumbe.

Cremos sinceramente, amamos fielmente, fazemos de nossa dedicação, de nossa fidelidade, um dever e uma honra que importam em altos intentos. Spiritus enini promptus est. Mas logo, ai de nós! A pobre natureza tem seus retrocessos. É a paciência que se cansa, é a saúde que fraqueia, é o ideal que se encobre, é o ardor que se apaga, são os olhos que se sobrecarregam de tristezas e aborrecimentos: oculi eorum erant gravati. E surpreendemo-nos a dormir, depois dos mais sinceros protestos de velar, de combater e de sofrer. Oh! Quem nos livrará deste corpo de morte!

Velai, pois, e orai, repetia-lhes o Mestre. Primeiro, é necessário velar, ter os olhos abertos, acautelar-se das ciladas, porque é a hora das trevas, e elas jamais faltarão aos discípulos do Deus de quem o mundo não cessa de tramar a morte. Em seguida, é necessário orar; são os homens de oração que hão de resgatar o mundo, se tiver ele de ser resgatado. E, se apesar de tudo isto, o Filho do homem tiver de beber o cálice e derramar o seu suor de sangue e de água, ao menos não sofrerá sem ser consolado, porque os amigos terão, como os Anjos, visitado sua agonia e confortado seu coração!

Há ainda outro dever: o da Ação. Agora levantai-vos, é chegada a hora. Vamos, eis ali o que me há de entregar. Não se trata mais de vigiar, nem mesmo de orar, mas trata-se agora de marchar com bravura.

João levanta-se; seu divino Mestre é preso por servos; o apóstolo está presente; vê tudo, todos os pormenores aqui se devem a ele. Pinta a chegada daquela soldadesca armada de paus e tochas. Vê o milagre dos soldados derribados a uma palavra do Homem-Deus. Companheiro de Simão Pedro, observa sua resistência armada contra Malco; retém principalmente as palavras de misericórdia com as quais o Senhor pedia que nada fizessem a seus discípulos (5). Mas o apóstolo fiel contentar-se-á com isto? Onze seguiram a Jesus até ao pé da colina, três ao jardim. Quantos o acompanharão até a casa de seus perseguidores?

II

Ora, como o conta o próprio São João, seguiam a Jesus, Simão denominado Pedro e o outro discípulo. Este último sendo conhecido do pontífice, pôde entrar no átrio de Caifás ao mesmo tempo que Jesus.

Mas Pedro ficou de fora, saiu então o outro discípulo que conhecia o pontífice, e falou à porteira; e esta fez entrar Pedro” – Sequebatur autem Jesum Simon Petrus, et alius discipulus. Discipulus autem ille erat notus pontifici, et introivit cum Jesu in atrium pontificis.

Petrus autem stabat ad ostium foris. Exivit ergó discipulus alius, qui erat notus pontifici, et dixit ostiariæ, et introduxit Petrum (Jo 18, 15, 16)

Cur non Petrum ipse Joannes introduxit? Christo hærebathet sequebatur eum (São João Crisóstomo, in hunc locum Joan. Homil, LXXXIII)

O discípulo, o outro discípulo que se costuma ver com Pedro; o discípulo por excelência, aquele que dá a si próprio esse nome em seu Evangelho, aquele que não se dá a conhecer de outra maneira, quem é ele?

São João Crisóstomo falando aos fiéis de Antioquia denuncia a presença de São João neste lugar. De ordinário ele próprio se denuncia em termos velados mas transparentes, que salvam a verdade da história e ao mesmo tempo a modéstia da testemunha (6). Foi assim, explica ele, que mais tarde estes mesmos pontífices da casa de Caifás, encontrando Pedro e João a pregar no templo, lembrar-se-ão, com efeito, «de terem visto estes homens seguindo Jesus» (7).

João está, pois, ali. Foi o primeiro a chegar; não quis deixar um instante o Mestre; relações anteriores, que apenas indica, mas que não explica, lhe permitem a entrada na Casa de Caifás; penetra no átrio; não disfarça quem é, nem quem ama. É um discípulo de Jesus, todos o sabem; a porteira parece fazer alusão a esse que entrou primeiro quando pergunta a Pedro:

“E não és tu também um dos discípulos deste homem?” – Dicit ergo Petro ancilla ostiaria: Numquid et tu ex discipulis es istius hominis? (Jo 18, 17)

Illud autem Numquid et tu ideó dicit mulier quia Joannes intús erat (São João Crisóstomo, in Joan. Homil. LXXXIII)

A porta que ele fez abrir, abrir-se-á para os outros. Ele fala com a gente de Caifás, introduz Simão Pedro. Quer que os amigos estejam ali como um protesto, como uma consolação, como uma mediação, entre o Justo perseguido e seus perseguidores. É preciso que Jesus possa dizer aos indignos pontífices:

«Por que me interrogas? Pergunta aqueles que ouviram o que eu disse: ei-los aí. Bem sabem o que lhes ensinei: Ecce hi sciunt quae dixerim ego» – Quid me interrogas? Interroga eos qui audierunt quid locutus sum ipsis. Ecce hi sciunt quid dixerim ego (Jo 18, 21)

É preciso que mais tarde quando o coração sofrer da negação de São Pedro, tenha a seu lado o discípulo fiel sobre o qual possa ao menos pousar o olhar. Foi esta a honra de João; e na longa história dos combates da Igreja, ela se compraz em vê-lo, o primeiro a frente do séquito que durante trezentos anos, desfilará diante das coortes e diante dos pretórios dos poderes perseguidores, lançando-lhes o testemunho intrépido da fé:

«Eu sou cristão!»

O que João faz sobressair na Paixão do Mestre, é o caráter espontâneo de sua imolação. Jesus o declarara desde o começo:

“Sou eu que dou minha vida e a retomo. Ninguém a tira de mim, mas eu de mim mesmo, a entrego porque tenho igual poder de a depor e a reassumir: este mandato recebi do Pai” – Ego pono anima meam ut iterum sumam eam. Nemo tollit earn à me; sed ego pono earn à meipso, et potestatem habeo ponendi eam, et potestatem habeo iterúm sumendi eam: hoc mandatum accepi à Patre meo (Jo 10, 17)

Tendo feito esta declaração de sua soberania, e protestado que é por livre escolha que vai morrer, Jesus não se desmentiu até o último suspiro. Quis ordenar em pessoa o sacrifício, tudo prevendo, tudo predizendo, na plena posse de uma alma senhora de si e de seu destino. Depois, chegada a hora, é Ele mesmo, o traído, que avisa ao traidor e lhe diz que «faça depressa». Ele é o Senhor de seus inimigos, prostrou-os por terra logo que lhes disse quem era, e não se entregou senão depois de os ter feito sentir que sua imolação era a escolha do amor. Ele é o Senhor de seu próprio juiz; e quando este ousa dizer a esse grande Deus:

“Não sabes que tenho poder para te crucificar, e poder para te soltar? — Não, responde-lhe soberanamente o divino acusado, não terias poder algum sobre mim, se te não fosse dado do alto” – Dicit ei Pilatus: Mihi non loqueris. Nescis quia potestatem habeo em crucifigere te, et potestatem habeo dimittere te?

Respondit Jesus: Non haberes potestatem adversum me uliam, nisi tibi datum esset desuper (Jo 19, 10)

Enfim, será o Senhor da própria morte; e, quando a morte, achando o esgotado pela perda de sangue, se dispuser a dar-Lhe o último golpe, Ele subitamente a fará parar até que tendo recordado tranquilamente a Escritura, a fim de certificar-se que tudo está cumprido, lhe faça sinal de ferir, dando um grito poderoso: clamore valido, que revele nEle a força, a liberdade e a vida.

Assim, aos olhos de São João, o seu Mestre não sucumbia, Ele se oferecia; não era o supliciado, era o Redentor; não era só a vítima, era o sacerdote, e este sacerdote era Deus: Ecce Agnus Dei!

Todavia, depois que se mostrou no átrio de Caifás ao lado de Jesus, o apóstolo não apareceu mais na paixão de seu Mestre até a crucifixão. Que foi feito dele? O Evangelho não o diz. A devoção católica pensa que, em semelhante hora, o discípulo predileto, antecipando a missão que vai receber de Jesus, foi ter com Maria e consolá-la (8). Será exato? Não sei. Mais tarde apareceu a iconografia que exagerando essas tocantes suposições, lhes emprestou em nossos dias sua emoção plástica (9). Respeitemos o silêncio Sagrado do Evangelho.

III

“De pé, junto à cruz de Jesus, estavam Maria sua mãe, Maria, mulher de Cléofas e Maria Madalena. – Stabant autem justá crucem Jesus mater ejus, Maria Cleophæ et Maria Magdalene.

Jesus, vendo sua mãe e junto dela o discípulo que amava, disse a Maria: Mulher eis aí teu filho. – Cum vidisset ergo Jesus matrem et discipulum stantem quem diligebat dixit matri suæ: Mulier, ecce filius tuus.

Depois disse ao discípulo: Eis aí a tua mãe. E desde aquela hora o discípulo tomou-a consigo. – Deinde dicit discipulo: Ecce mater tua. Et ex illá horá accepit eam discipulus in sua.

E Jesus viu então que estava tudo consumado” – Postea sciens Jesus quia omnia eonsumata sunt, etc. (Jo 29, 23)

Era a consumação da fidelidade da parte de João. A paixão do Homem Deus, a paixão de seu coração entrara na crise suprema. Abandonado pelos homens, queixava-Se, além disso, de ser desamparado por seu Pai: Eloi, Eloi, lamma sahacthani! João não O abandonou. Em vão o firmamento se cobria de trevas, a terra tremia como para sacudir de sua face a vítima do mundo, os túmulos se abriram por si, como tomados de pavor sagrado; só entre todos, o amigo de Jesus se obstinava a crer e amar:

«O amor, diz a Escritura, é forte como a morte»

Da parte de Deus, foi a consumação da munificência: dera tudo que lhe restava.

«Mas o que pode ele ainda dar, interroga Bossuet, nu, despojado como está, pobre escravo que nada mais tem de que possa dispor por testamento? De qualquer lado que volva os olhos, Jesus nada mais vê que lhe pertença. Engano-me, ele vê Maria e São João que ali estão para lhe dizer: “Nós vos pertencemos!”. É isso tudo que lhe resta, e ele os dá um ao outro: Oh! João, eu te dou Maria e te dou ao mesmo tempo a Maria… Maria é de São João e João é de Maria… Tudo o que havia de respeitoso e terno no amor para com sua mãe vai viver no coração de João. Aquele que desvia os corações como quer, e cuja palavra é poderosa e opera neles tudo o que lhes diz, faz Maria mãe de João, e João filho de Maria» (10)

“Que honra, meu Deus, exclama Teofilacto, João, o discípulo de Jesus, tornou-se seu irmão! Por isso, é bom chegar-se ao pé da cruz, e ficar com Jesus Cristo quando Ele sofre!” – Jam papæ! quomodo honorat discipulum fratrem suum ilium faciens! Usque adeo bonum est jutá crucem stare et manere apud patientem Jesum (Theophylact, in hunc locum Joan)

Mas o legado divino não se limitava ao discípulo. Dirigia-se ao mundo, e com o nome de São João abrangendo toda a Igreja, dava ele uma mãe à família das almas, cujo Pai estava no céu. João é o primogênito desta família adotiva que há de contar tantos filhos; e quando em todos os pontos da terra cristã florescer a piedade filial para com a mãe de Deus, da qual tem saído tantas graças virginais e tão fortes virtudes, ter-se-á que subir até João para achar o princípio e o modelo.

No entanto o discípulo, — e neste testemunho ele insiste, — ali ficava até o fim para um mistério ainda maior:

“Mas um dos soldados, disse ele, veio e abriu-lhe o lado corri uma lança, e imediatamente saiu sangue e água. E aquele que o viu, deu testemunho, e seu testemunho é verídico. E ele sabe que diz a verdade para que também vós o acrediteis” – Venerunt ergó milites; ad Jesum cúm venissent, ut víderunt eum jam mortuum, non fregerunt ejus crura.

Sed unus militum lanceâ lactus ejus aperuit, et continuó exivít sanguis et aqua.

Et qui vidit testimonium perhibuit: et verum est testimonium ejus. Et ille scit et quia vera dicit, ut et vos credatis (Jo 19, 32-35)

«Admirável atenção do Evangelista, observa Santo Agostinho. Não diz que o soldado traspassou o lado de Jesus, nem que o feriu; não se serve de expressão nenhuma semelhante. Mas diz que ele o abriu como para nos mostrar nesse coração a porta da vida, donde saíram com seu sangue, os sacramentos da Igreja, sem os quais não se pode atingir à verdadeira vida» –Vigilanti verbo usus est Evangelista ut non diceret latus ejus percussit, aut vulneravit, aut quid aliud, sed aperuit, ut illic quodammodó vitae ostium panderetur undé sacramenta Ecclesiae manaverunt

Ora São João lá estava para recolher esse sangue. Era o seu papel. Na véspera esse sangue divino nos fora legado pelo Cálice eucarístico. Agora que no Calvário corre em borbotões sobre o altar do sacrifício, quem receberá o legado para transmiti-lo aos herdeiros do futuro?

Os ricos na terra têm um amigo que, antes de morrer, designam para que, por seu intermédio, a herança chegue inteira a seus filhos. Quem será aqui escolhido para ser o testamenteiro de Jesus? Maria está também de pé ao lado desse altar da imolação, onde toma para si todas as dores, todas as graças para nós. Mas a intercessora celeste da graça não é o ministro; é por disposição divina que ela deve passar pelas mãos consagradas de um homem para chegar aos homens.

Este homem será o sacerdote, e o sacerdote aqui tem um modelo em São João. Tal é a ordem da salvação e a hierarquia no serviço das almas. Nem uma gota de sangue cairá de um altar, nem uma graça fluirá de um sacramento divino, sem primeiro passar pelo coração de Maria e pelas mãos do sacerdote. Assim: a cruz plantada na terra perto do céu, nesta cruz, Jesus; aos pés de Jesus, Maria; perto de Maria, São João; em São João, o sacerdócio; depois mais em baixo, no vale, a multidão levantando os olhos ao céu de onde lhe deve vir o socorro: não há imagem mais completa da economia de nossa Redenção.


Referências:

(1) Frequenter Jesus convenerat illúc cum discipulis suis (Jo 18, 2)

(2) «Tendo São João se colocado perto de Jesus na Ceia, não se separou mais dele. Com efeito, ninguém jamais se apegara tão fiel e familiarmente a Jesus. Quando este foi preso, entrou com ele no atrium do príncipe dos apóstolos, e não o abandonou nem na Cruz, nem na morte, nem mesmo depois de sua morte, até que fosse enterrado» (São Boaventura, Médit sur la vie dê Jésus-Crist, ch. LXXIII)

(3) Interior afflictio quoddam martyrium est… et afflictio corporis est minor quam afflictio mentis, quae est per interiores dolores et animae passiones (3ª q. 96, 6)

(4) Cae teros sederé jussi ut infirmiores; vos ut tirmiores volo collaborare mecum in vigilliis et arctionibus (Origenes, in Joan)

São João mesmo não contou a paixão de seu Mestre no jardim das Oliveiras. Mas é ele que o mostra, um instante antes, cabido de cansaço e de dor: «Minha alma está agora perturbada, e o que direi? Meu Pai, livrai-me desta hora. Mas foi somente para esta hora que vim (Jo 12, 27). Não é na verdade o prelúdio ou o eco dos gemidos de Getsêmani?

(5) Respondit Jesus: Dixi vobis quia ego sum. Si ergo me quaeritis, sinite eos abire (Jo 18, 8)

(6) Quis est alius discipulus? Ipse est qui hæc scripsit.

Et cur se non nominat? Nam cúm supra pectus Jesu recubuit, jure nomen occultat. Nunc autem cur idipsum facit? Eâdem de causâ. Nam hic quoque rem præclaram narrat quód nempé, omnibus aufugientibus, ipse sequeretur. Ideó nomen tacet suum, et Petrum priorem ponit, suique tamen meminisse coactus est, ut ediscas eum accuratius ea quæ in aulá gesta sunt enarrasse, utpoté qui intus esset, etc. (São João Crisóstomo, in Joan Homil. LXXXIII al. LXXXII apud epit Migne, t. VIII, pag. 449).

(7) São João Crisóstomo, in Acta apostol. Homil. X

São Jerônimo pensa da mesma forma; Santo Agostinho assim o ensina aos cristãos de Hipona, Theophylacto não põe dúvida alguma sobre esse sentido.

Quisnam sit ille discipulus? Solet autem se idem Joannes itá significare, et addere quem diligebat Jesus (Santo Agostinho, in Joan Evang. Tract. CXIII, col. 786)

Jesus amabat Joannem plurimum qui, propter nobilitatem erate notus pontifici, et Judaeorum insidias non timebat, in tantum ut Petrum introduceret in atrium, et staret solus apostolorum ante crucem (São Jerônimo, Epist. XVI, p. 119, ad Principiam, de Marcelloe epitaphio)

(8) Médit, sur la vie de Jésus-Christ, ch. LXXV, atribuídas a São Boaventura

(9) V. o quadro patético Le vendredi saint, de Paul Delaroche.

(10) Bossuet, Panegírico de S. João, 11ª parte.

Voltar para o Índice da Biografia do Apóstolo São João, de Mons. Baunard

(BAUNARD, Monsenhor L’abbé Loui. O Apóstolo São João. Rio de Janeiro, 1974, p. 131-144)