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Educação divina do apóstolo São João

Capítulo 3: Educação divina do apóstolo São João
I

Jesus, tendo escolhido João e Tiago, tomou-os definitivamente para a sua companhia. Salomé não quis separar-se de seus filhos. Vemo-la, juntamente com algumas mulheres dedicadas da Galileia, seguir os passos de Jesus, ocupando-se da subsistência do Mestre e recebendo suas lições com os dois apóstolos seus filhos (1).

O apostolado para o qual tinha sido convidado o filho de Salomé, devia ser o instrumento de salvação do universo. Mas era preciso que antes esses rudes pescadores sofressem uma transformação completa, e é esse trabalho que vamos estudar e admirar em São João.

Com efeito, fundar a Igreja, constituir-lhe um espírito que é a caridade, um ensino infalível, que é a verdade, uma hierarquia, que é a autoridade; e depois, uma vez formada esta sociedade à imagem divina, dar-lhes as nações por herança, e deixá-la funcionar sob invisível assistência até o fim dos séculos: eis a ideia de Jesus, tal qual se vê no Evangelho.

O seu fim não era, está claro, realizar diretamente por si mesmo a obra sobrenatural da conversão do mundo. Durante a vida, o Pastor só teve como rebanho algumas raras ovelhas do redil de Israel; e trinta anos de existência, três de pregação, de exemplos e de milagres, tendo como fim reunir ao redor de semelhante Mestre somente doze apóstolos e setenta e dois discípulos, provam bem que Ele não foi, e que não quis ser durante sua estada neste mundo, o conquistador das almas. Como Ele mesmo o explica, Ele não colhe, semeia. Semeia, e em seguida, certo de Si e do futuro, pela sua maneira divina, deixa ao tempo o cuidado de fazer brotar os gérmens. Nesta segunda criação, assim como na primitiva, contenta-se em criar os primeiros modelos das coisas e diz:

“Crescei e multiplicai-vos”

Somente depois da Ascensão, no dia de Pentecostes, começará a pregação geral, universal. Será esse o trabalho dos apóstolos: o de Jesus Cristo é o de escolher, educar e formar os princípios de seu povo e os futuros ministros do reino de Deus.

Ele os constituiu primeiramente com um poder doutrinário, infalível como Ele, imortal como Ele, por Ele assistido até a consumação dos séculos:

“Quem vos ouve, a mim ouve, quem vos recebe, a mim recebe, quem vos despreza, a mim despreza. Assim como meu Pai me enviou, assim eu vos envio”

E, de fato, assim que reuniu aquela pequena milícia e que os armou com sua autoridade, quis o Senhor fazer como que um pequeno ensaio, mandando logo seus apóstolos dois a dois às ovelhas de Israel.

Esta missão de algumas semanas forneceu-lhe ocasião de resumir suas instruções sobre o espírito do ministério confiado a esses singulares conquistadores do universo. Primeiramente devia ser um ministério de pobreza e abnegação: recebiam o conselho de não possuir ouro nem prata, nem duas túnicas, nem bordão, mas dar gratuitamente como tinham recebido. Em segundo lugar, devia ser um ministério de caridade: eram enviados para curar os doentes, libertar os possessos, ressuscitar os mortos e levar a paz de Deus a toda a casa onde entrassem. Enfim devia ser um ministério de imolação e Jesus insistia neste ponto igualmente doloroso e fecundo de seu apostolado. Portanto eles serão «levados perante o Conselho, flagelados nas sinagogas, arrastados diante dos juízes, odiados e executados pelo nome de Jesus». A este Jesus que lhes pede o sangue, deverão «amar mais que ao pai, mais que a mãe, mais que a esposa e aos filhos, deverão tomar sua cruz para serem dignos dele». Assim não pensar em si, amar e sofrer, tais são, em poucas palavras, as instruções que o grande Rei dá a seus comandados; tal é em resumo, o divino manifesto da conquista das almas.

Não bastava, porém, enunciá-lo, era preciso fazê-lo penetrar no espírito e na vida dessa gente «de compreensão lenta». O ensino geral não era suficiente. Era necessário outro, e ao lado da escola pública do Senhor, distinguiremos facilmente a escola íntima ou apostólica de Jesus.

A escola pública para as multidões era a que o Mestre encetava a beira dos lagos, na vertente das colinas da Galileia, no deserto imenso, ou nas galerias do templo de Jerusalém. A escola íntima de Jesus não tinha semelhante ostentação — Desce a sombra, faz-se noite, a multidão curada e abençoada volta para as suas aldeias, o Mestre fica então só, rodeado de seus apóstolos:

“Mestre, dizem estes, que significa para nós esta parábola?”

Jesus abre os lábios. Não há mais mistérios, não há mais dúvidas, é a verdade pura, a verdade plena fluindo de sua fonte:

“Oh, Mestre, vemos claramente, vemos bem agora que sois o Filho de Deus” (2)

Tal é a escola íntima do Mestre da verdade.

Mais extraordinária ainda era a escola da caridade. Não é mais questão do espetáculo de milhares de homens saciados com um pão milagroso, fato passado em uma montanha. Não é mais a cura grandiosa de enfermos ao longo das estradas, causando a admiração das multidões, nem a ressurreição de um adolescente, cujo cortejo fúnebre Jesus faz parar. Mas é um Pai que vem timidamente ao Mestre e pede-lhe que chegue à sua casa onde alguém agoniza; é um homem que receia expor aos olhares de todos, seu filho epilético; é ainda uma pobre mulher, que por causa da febre não se pode apresentar ao médico celeste. Jesus faz então recuar o povo. Entre os apóstolos, nem todos são admitidos ao privilégio de contemplar esses milagres. Alguns, três somente, os melhores e sem dúvida os mais queridos, são iniciados no segredo misericordioso dessa graça: Eis a escola íntima da caridade.

No seio dessa intimidade, há um lugar à parte para o apóstolo São João. No santo Evangelho duas figuras predominam e se destacam das outras pela sua santa originalidade: São Pedro e São João. Ambos são os amigos do Mestre, mas, observa um antigo autor, nessa amizade existe uma pequena diferença:

“Alexandre dizia de dois de seus amigos, que um amava a Alexandre, outro amava ao Rei. Poder-se-ia dizer o mesmo dos dois discípulos: Pedro era amigo de Cristo, João amigo de Jesus” (3)

Jesus tinha por João a mesma predileção. João não é somente o íntimo; é o discípulo querido, como ele próprio se chama no Evangelho. Deus o honra com suas confidências. No momento de seus mais secretos milagres, João é admitido a seu lado para ali ser o exemplo da caridade; em suas mais elevadas lições ou em seus mais misteriosos colóquios, é ainda João que está presente para aprender a doutrina da verdade e colher a prova da divindade: desde então o apóstolo virgem «segue o Cordeiro por toda a parte».

Assim se formou ele na escola de Jesus; e, se a educação de uma criança feita por um homem, é coisa excelente, não sabemos se existe um objeto mais digno de contemplação do que Deus em pessoa aplicando-Se a polir o seu apóstolo, talhando-o no mármore da virgindade, animando-o com um sopro, aquecendo-o em seu seio, e elevando-o gradualmente até aquela semelhança divina, a qual, a própria antiguidade profana considerava o ideal da perfeição (4).

II

Foi na Galileia que João e os discípulos tiveram as primeiras revelações do Evangelho; e foi a seus amigos que ele reservou, com os primeiros frutos de suas graças, as primeiras lições da caridade divina.

Logo às primeiras páginas do texto evangélico, lemos que o Senhor ia à aldeia de Cafarnaum, um dos lugares de predileção. Pedro, que era casado, ali tinha a sogra, e ela estava doente. Jesus, diz o Evangelho, chamando então Tiago e João, juntos foram à casa de Simão e André (Mc 1, 29. 31; Mt 8, 14). É o primeiro passo na escola íntima da caridade. Foi em sua companhia que, aproximando-se do leito onde jazia aquela mulher minada pela febre, estendeu-lhe a mão, ordenando-lhe que se levantasse. No mesmo instante a doente ficou curada, e, levantando-se serviu uma refeição, que Jesus Cristo tomou com os dois pares de irmãos. O Senhor tinha posto o seu poder ao serviço da amizade, e era com tais laços que sua bondade atava a seu carro triunfal esta «quadriga de pescadores», como os chama São Jerônimo.

Todavia isto era apenas um prelúdio; pouco tardou para que João fosse o confidente de uma manifestação ainda mais admirável da divina caridade do Mestre.

Neste tempo, isto é, no primeiro ano de pregação, estava Jesus perto do lago quando se chegou a Ele um homem. Chamava-se Jairo, e era chefe da sinagoga de Cafarnaum. Jairo lançou-se aos pés do celeste médico, pois sua filha, que contava doze anos, estava morrendo.

Jesus foi, mas só três privilegiados deviam assistir ao milagre que se preparava; ora, o Mestre chamou João, o discípulo predileto, para com Pedro e Tiago, segui-lo à casa da agonizante (5). Em caminho souberam que acabava de expirar. Já em torno da casa, ouvia-se a música fúnebre, que, segundo o costume, devia rodear de encantos a alma que havia partido, e, preveniram ao Mestre que não fosse além, que era tarde. Mas as horas de desespero são as horas de Deus, Jesus, Pedro, Tiago e João entraram sós na casa, seguindo o pai e a mãe da criança. Então, todo o poder do céu, toda a ternura da terra se inclinaram sobre aquela inocente; e São João ouviu, o Senhor pronunciar a palavra de vida e de imortalidade, que mais tarde devia ouvir sobre o túmulo de Lázaro:

“Ela não está morta, dorme; menina, levanta-te!”

Com efeito, ela se levantou, andou e comeu; e o Senhor, entregou-a cheia de vida a seus pais.

Jesus quis dar uma grande lição aos seus apóstolos:

Primeiro, a lição de sua divindade; e os Padres notam que Ele fez presenciar a este milagre de preferência os três discípulos escolhidos, porque esses é que deviam mais tarde dar o testemunho da divindade do Mestre da vida. João, no Evangelho, devia atestá-lo pela sua doutrina do Verbo; Pedro, na Igreja, pela sua palavra infalível; Tiago, no martírio, por ter sido o primeiro dos apóstolos a receber a corôa.

Em seguida, a segunda lição a tirar-se dali, era a caridade. Pelo exemplo d’Aquele que começara por fazer antes de dizer, João aprendia que o Evangelho devia ser uma consolação, um alívio, um favor, uma graça, a fim de poder ser uma pregação. Ficava sabendo com que esperanças imortais o ministro de Jesus Cristo podia aproximar-se dos pais inconsoláveis e dos lares enlutados. A ideia primordial que temos de Deus é a ideia de bondade; a primeira concepção da religião é a de uma caridade misericordiosa; eis porque o Deus de bondade, querendo formar um sacerdote conforme o seu coração, não o levou às Academias nem aos Pórticos; conduziu-o à escola de ternura respeitosa e compassiva: o leito de um moribundo, e esse moribundo era uma criança.

III

É fácil compreender que santo entusiasmo se apoderou do discípulo por tal mestre, e esse sentimento transparece nas palavras que dEle citam os Evangelhos. Nessa época, porém, esse entusiasmo não era inteiramente puro, nem o culto livre de qualquer mistura terrestre. Como todos os que amam deveras, João queria que o Ser amado fosse só Ele grande, só Ele honrado, de sorte que toda e qualquer homenagem ou glória atribuída a outro que não fosse o Mestre, parecia-lhe um ultraje, uma usurpação. Além disso, os apóstolos, felizes da proteção com que os cercava o Senhor, e, contando com suas promessas, deixavam invadir-lhes as almas pensamentos de orgulho e de dominação, do que não estava isento também São João.

Um dia, conta o Evangelho, em seus corações germinou esta pergunta secreta, a saber, qual dentre eles era o maior. Jesus conhecendo-lhes os pensamentos, tomou um menino a seu lado, e pronunciou as seguintes palavras:

“Se não fordes semelhantes a este menino, não entrareis no reino dos céus. Aquele que for o menor entre vós, esse será o maior” (Lc 4, 46-48)

João interveio. Tendo visto alguns discípulos, que sem ser da mesma família apostólica, se permitiam livrar os possessos em nome de Jesus Cristo, tomou-se de tristeza, como se um roubo sacrílego fôra feito ao direito dos apóstolos e a honra de Deus.

“Mestre, disse ele a Jesus, vimos um homem que expelia os demônios em vosso nome, e lho proibimos, porque ele não está conosco. — Não façais isso, respondeu o Senhor; pois quem não é contra vós é por vós” (6)

João sabia amar, mas não conhecia ainda o dom muito mais difícil de esquecer-se a si mesmo, de desaparecer diante dos que querem fazer o bem com sinceridade, mesmo quando nos fazem concorrência, e de modo diverso ao nosso.

O que o Evangelho acrescenta logo depois, nos prova que João com o zelo da graça de Deus, não tinha também o espírito de mansidão que deve animar um ministro do Príncipe da paz.

Naquele mesmo tempo, conta-se que Jesus, prevendo os ultrajes que ia sofrer, endureceu os traços de seu rosto, e seguiu para Jerusalém. O caminho mais curto para a cidade santa era atravessar a terra de Samaria; ali se encontram ainda vestígios da antiga estrada que ligava estas duas províncias da Palestina. Os Samaritanos, porém, tribo meio pagã, composta em parte de colônias estrangeiras, eram inimigos dos Judeus.

O Senhor mandou dois de seus discípulos pedir-lhes licença para passar. Um deles era João; o outro era Tiago, seu irmão. Mas os Samaritanos fecharam as portas, vedando-lhes a entrada de seu território. João e Tiago enraivecidos, e, recordando-se de que outrora cinquenta e dois servos do rei Acazias enviados de Samaria para prender o profeta Elias, tinham sido fulminados, vieram dizer a Jesus:

“Senhor, quereis que ordenemos ao fogo do céu que desça sobre esta gente e os consuma?” – …Jacobus et Joannes dixerunt Jesu: Domine, vis dicimus ut ignis descendat de coelo et consumat eos? (Lc 9, 54)

Jesus voltando-se para eles, diz o Evangelho, respondeu-lhes em tom severo:

“Não sabeis de que espírito sois. O Filho do Homem não veio para perder as almas, mas sim para salvá-las” – Et conversus increpavit illos dicens: Nescitis cujus spiritus estis. Filius hominis non venit animas perdere, sed salvare (Lc 9, 55)

Qual era este espírito que São João desconhecia, e mais tarde devia possuir melhor do que os outros e que se tornaria o espírito apostólico?

Havia o espírito antigo, o espírito judeu, absoluto, repressivo, dando à justiça sua sanção neste mundo, castigando rigorosamente os culpados, tomando a peito a vingança divina:

“Não quereis, ó Mestre, que façamos descer sobre eles o fogo do céu?”

O espírito cristão, ao contrário, o espírito apostólico será antes de tudo um espírito de doçura:

“A virtude perfeita não conhece vingança, escreve Santo Ambrósio. Não há arrebatamentos de cólera onde existe a caridade em toda a sua plenitude. Não se deve repelir a enfermidade humana, mas sim estender-lhe a mão. A indignação não atinge o coração verdadeiramente religioso, e o desejo de vingança não entra numa alma magnânima” (7)

Não será também a violência, nem o ferro, nem o fogo, que contribuirão para a conversão do mundo.

“Paz a esta casa!”

É esta a única palavra que o apóstolo deverá dizer quando for bater à porta dos corações. Se esta porta se fechar, a única represália permitida é a de sacudir a poeira dos pés, esperar, partir, ou orar com lágrimas pela cidade cega, que não quis conhecer o dia da visita divina.

IV

Jesus mostrou a São João que era preciso amar, que era preciso esquecer-se de si próprio. Ensinou-lhe também que era necessário imolar-se: foi esta a terceira lição que reservava ao apóstolo.

Vimos que os discípulos até a paixão haviam formado uma ideia muito grosseira do reino de Deus, tomando-o como o grande império de um príncipe terrestre, cujas fronteiras se estendiam de um mar a outro: é o que chamavam a reconstituição do reino de Israel. Inutilmente Jesus lhes repetia que seu reinado não era deste mundo, que devia sofrer os males preditos ao Homem das dores e que seus afeiçoados só deviam esperar a honra de carregar a cruz em sua companhia: ninguém o ouvia; o espírito de São João era nisto tão lento a compreender como o dos outros. Parece até que sendo o amigo deste grande Rei e estando mais perto do seu coração, afigurava-se-lhe que devia também estar mais perto de seu trono, nesse império maravilhoso que saudavam todas as esperanças da nação.

Pelo menos tal era o pensamento de Salomé, sua mãe. Lembrando-se das preferências notáveis que seus dois filhos só tinham partilhado com Pedro, animada pelo zelo com o qual ela mesma havia sempre servido esse Mestre tão bom, seguindo-lhe os passos, aproveitou a ocasião em que o Senhor descia da Galileia para ir à Jerusalém, a antiga cidade dos reis. Julgava ela que o Senhor ia afinal tomar posse de seu trono (8). O momento era urgente, e, chegando-se a Jesus com Tiago e João, aquela mulher ambiciosa insinuou primeiramente o seu pedido nestes termos:

“Mestre, podereis conceder-nos aquilo que pedirmos, seja o que for. O que quereis? disse Jesus” (Mc 10, 35)

Então Salomé, lançando-se a seus pés:

“Ordenai, disse ela, que estes meus dois filhos se coloquem um à direita, outro à esquerda, em vosso reino” (9)

Com efeito, era costume no conselho supremo da nação judaica, ter abaixo da cadeira principal ocupada pelo nasi ou príncipe do Sanhendrin, dois lugares de honra, denominados o lugar do Pai e o do Sábio.

Ouvindo-a solicitar a honra dessa preferência, Jesus dignou-se desenganar aquela inteligência iludida que se equivocara sobre a natureza de seu futuro reinado.

“Não sabeis o que pedis, disse ele. Podereis beber o cálice que vou beber? Podereis ser batizados com o batismo com que eu serei batizado?” (10)

Equivalia isso a oferecer-lhes Sua cruz. Os dois irmãos não compreenderam todo o sentido dessas palavras; mas suspeitando, todavia, ser um apelo à sua generosidade: Podemos responderam (11).

O Senhor aceitou aquela boa vontade, e seu olhar divino penetrando o futuro até o dia em que Tiago e João sofreriam o martírio por seu nome, não hesitou em prometer-lhes glória muito superior às grandezas terrestres por eles cobiçadas (12).

“Com certeza, bebereis o cálice que vou beber, e sereis batizados com o mesmo batismo. Mas quanto a sentar-vos à minha direita ou à minha esquerda, não me pertence dar-vos, mas é para quem está preparado por meu Pai” – Ait illis: Calicem quidem meus bibetis. Sedere autem ad dexteram meam vel sinistram, non est meum dare vobis, sed quibus paratum est à Patre meo (Mt 20, 23)

A lição evangélica tinha o seu complemento. Amar a Deus, servir aos homens, já era muito; esquecer-se de si próprio, ainda era melhor; o cúmulo porém da caridade era o de sacrificar-se livremente e sofrer. Que bela forma dava Jesus Cristo ao sacerdócio! Como fazia crescer gradualmente na alma de seu apóstolo o ideal sublime e fazia o progredir no amor! Era primeiro o amor benévolo, depois o amor desprendido, enfim, o amor crucificado; porque o amor precisa ter sua prova dolorosa, e o dom supremo que ao discípulo e ao apóstolo apresenta o Mestre morto na cruz, é um cálice de dor. Mas sabemos que deste cálice foi Ele o primeiro a beber: meum calicem e Deus temperou a sua amargura ali encostando seus lábios. São Bernardo diz:

“Qual um médico compassivo, Ele começou bebendo a bebida que reservava aos seus amigos, isto é, sua paixão e morte. E assim fez para a Igreja e para nós a bebida salutar da imortalidade. A seu convite podemos beber com confiança o cálice onde verteu a saúde e a vida” (13)

No entanto não tardou o divino Mestre a dar a seu discípulo uma amostra do que reservava aqueles que O amam até a imolação. João foi um dos discípulos privilegiados da Transfiguração do Senhor.

“Jesus, disse João Damasceno, queria dar este testemunho particular e brilhante de sua divindade aquele que ia ser o órgão mais elevado da ciência de Deus, a fim de que, havendo contemplado a glória eterna e divina, ele pudesse fazer ressoar aquela grande palavra: No princípio era o Verbo!” (14)

Além disso, era preciso que Ele tomasse por testemunhas de sua glória, aqueles que deviam mais tarde ser testemunhas de seus sofrimentos no Jardim das Oliveiras.

Tomou então consigo Pedro, Tiago e seu irmão João, os mesmos que tinham assistido à ressurreição da filha de Jairo, e, deixando no vale os outros discípulos, conduziu seus três confidentes, às escondidas, até ao cume de uma montanha. Segundo a tradição dos tempos apostólicos, era a montanha cônica que, na planície do Esdrelon, ergue o cabeço revestido de sombra e de verdura, e que o sol, todas as tardes banhando-a de um suave brilho, fez com que a denominassem Tabor ou leito de luz. De repente, tendo o Senhor orado, apareceu transfigurado; e João teve ali a primeira visão da beleza imortal de seu Mestre adorável, visão que só deveria repetir-se no fim de seus dias na ilha de Patmos. A face de Jesus tornou-se resplandecente como o sol, suas vestes brilhavam com uma luz viva e branca como a neve: imagem de sua futura ressurreição e da nossa. Moisés e Elias, a lei e os profetas, toda a antiga aliança e o mundo do passado apareceram ao pé dEle, enquanto embaixo os apóstolos representavam o sacerdócio e a Igreja do futuro. Mas, a fim de que, mesmo no seio de sua glória a Vítima, o Cordeiro de Deus não desaparecesse, e que a imolação voluntária e amorosa deixasse uma lembrança eloquente, Moisés e Elias entretinham-se com Jesus dos sofrimentos pelos quais ia passar na cidade de Jerusalém, como se fosse um assunto de alegria e de seu mais ardente desejo.

Os apóstolos estavam arrebatados. Ao mesmo tempo que um raio da visão intuitiva os deixava entrever sem véus o esplendor da humanidade santa, a beatitude deixando derramar em suas almas os primeiros transportes, arrancava-lhes este clamor, que será a ação de graças da eternidade:

“Estamos bem aqui, façamos três tendas!”

Naquele instante abriu-se o céu e uma voz descendo das nuvens, disse:

“Este é o meu filho dileto em que me tenho comprazido; ouvi-o!”

Era demais para o organismo fraco da humanidade. João e seus companheiros, aterrados, estavam estendidos, prostrados no chão. Jesus os levantou, a visão desapareceu, e os apóstolos receberam ordem de não revelar a ninguém o que acabavam de ver até o dia em que o Filho do Homem tivesse ressurgido dentre os mortos.

Mais tarde falavam disso como da maior lembrança da vida evangélica. São Pedro escrevia em sua segunda epístola:

“Fomos testemunhas da magnificência de Jesus Cristo, nosso Mestre, quando recebeu honra e glória de Deus seu Pai, e que a voz, do seio do esplendor divino, descendo sobre ele, pronunciou estas palavras: Este é o meu Filho dileto, em quem me tenho comprazido; escutai-o!

E esta voz nós mesmos a ouvimos vir do céu quando estávamos com Jesus na montanha sagrada” (2Pd 1, 16-18)

Quanto a João, é sem dúvida a esta manifestação e a esta voz que se refere quando, logo no começo do Evangelho, depois de ter proclamado a divindade do Verbo encarnado, acrescenta: e habitou entre nós, e vimos a sua glória, glória do Filho Unigênito do Pai, cheio de graça e de verdade.

Assim foi que o raio celeste do Tabor iluminou a inteligência de João e abrasou o seu coração. Assim é que gradativamente fazia o Mestre a educação de seu apóstolo mais querido: a educação da fé e do amor. Nas lições e cenas que acabamos de descrever, havia-lhe demonstrado a doutrina da divindade com o espetáculo de seus milagres; ensinara-lhe as obras e o espírito de caridade cristã e apostólica, a bondade e a doçura, a dedicação para com os outros e a abnegação de si próprio. Sem dúvida, essas verdades vão ficar apagadas em sua inteligência, até que o Espírito Santo venha vivificá-las e lembrar-lhe tudo o que disse o Mestre. Estas Virtudes são ainda apenas sementes depositadas em seu coração. Um dia o fogo do Pentecostes as aquecerá com seus raios, e veremos então que colheita sairá desses gérmens.


Referências:

(1) Magna laus mulieris quae ipsa reliquerat virum suum, et secuta fuerat Christum; quia ille sine istá vivere poterat, ista autem sine Christo salva esse non poterat (S. Chrysost. in Matth, cap. XX).

São João Crisóstomo supõe um pouco mais adiante que Salomé não seguiu Jesus senão quando perdeu seu esposo Zebedeu, tornando-se Nosso Senhor o amparo de sua velhice: Quia fides nunquam senescit et religio fatigationem non sentit (In Catena aurea, p, 216).

(2) Dicunt ei discipuli ejus: ecce nunc palam loqueris, et proverbium nullum dicis

Nunc scimus quia scis omnia, et non opus est tibi ut quis te interroget: in hoc credimus quia a Deo existi (Jo 16, 29-30)

(3) Essa é a graciosa e delicada observação de Grotius: Quod olim Alexandrum de amicis suis dixisse memorant, alium esse (omicum Alixandri), alium (amicum regis), putem ad duos Domini Jesu apostolos sic posse aptari, ut Petrum dicamos maximé (amicum Christi), Joannem maximé (amicum Jesu) (Grotius, apud Crit. sacr., t, VI, annotata in Joan., col. 36).

(4) Ad similitudinem Deo propiús accedit humana virtus quâm figura (Cicer., de Nat. Deor, I, 84).
Item, Platon, Theaet, cap, XXV.

(5) Et non admisit quemquam se sequi, nisi Petrum et Jacobum fratrem Jacobi (Mc 5, 37)

(6) Respondens autem Joannes dixit: Praeceptor, vidimus quemdam in nomine tuo ejicentem daemonia, et prohibuimus eum.

Et ait ad illum Jesus: Nolite prohibire; qui enim non est adversum vos, pro vobis est (Lc 9, 49, 50)

Santo Ambrósio faz sobre estes textos a seguinte delicada observação: Joannes plurimum diligens et ideó redamatus plurimum excludendum putat beneficio eum qui non utatur obsequio.

(7) Non habet ultionis studium perfecta virtus; nec ulla fit iracundia ubi plenitudo es charitatis. Nam nec excludenda est infirmitas, sed juvanda. Procul sit á religiosis indignatio, procul à magnanimis cupiditas ultionis.

Nonnunquam ampilús prodest elementia, tibi ad patientiam, lapso ad correctionem. Samaritani citiús crediderunt à quibus hoc loco ignis arcetur (Santo Ambrósio)

(8) Putavit mulier Dominum esse regnaturum, et aviditate foemineâ praesentia cupit, immemor futurorum (S. Chrysost. In Matth. XX, in Catena aurea, p. 216)

Videtur Salomé hanc fiduciam concepisse ex eo quod nulla aliorum apostolorum mater Christum itâ perpetuó sectaretur, eique tám seduló inserviret, etc. (Grotius in cap. XX Matth., apud Critic. sacr., t. VI, col. 703).

(9) Tunc accessit ad eum mater filiorum Zebedaei cum filiis suis, adorans et petens eliquid ab eo.

Qui dixit ei: Quíd vis? – Ait illi: Dic ut sedeant hi duo filii mei, unus ad dexteram tuam et unus ad sinistram in regno tuo (Mt 20, 20-21)

(10) Respondens autem Jesus dixit: Nescitis quid petatis. Potestis bibere calicem quem ego bibiturus sum? Dicunt ei: Possumus (Mt 20, 22)

E Mc 10, 38: Et baptismo quo ego baptizer baptizari?

O texto árabe diz: E ser tinto no banho no qual serei baptizado” – Haec tinctura fuit sanguinis qua purpuratus est: Christus, diz um Padre.

(11) At illi qui jam martyrii libertatem constantiamque retinebant, bibituros se pollicentur. Undè sequitur: Dicunt ei: Possumus (S. Hilar. Can. XX).

(12) Dominus eis prophetat magna bona, id est martyrio dignos efficiendos (S. Chrysost. Homil. LXVl in Eatth)

(13) Ipse Christus, tamquám pius et laudabilis medicus, prius bibit potionem quam parat suis, id est passionem et mortem sustinuit, et sic sanitatem immortalitatis accepit, docens suos ut confidenter bibcrent potionem quæ generat sanitatem et vitam (S. Bern, Serm. II, ex parvis)

(14) Joannem assumpsit tamquâm theologiæ purissimum organum, ut, visâ gloria Filii Dei, quæ non subjacet tempori, insonet illud: Iu principio erat Verbum (S. Joan. Damasc. Orat. de Transfig.)

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(BAUNARD, Monsenhor L’abbé Loui. O Apóstolo São João. Rio de Janeiro, 1974, p. 32-50)