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As Epístolas Pastorais

Chamam-se “Pastorais” as epístolas 1/2 Tm e Tt, pois se dirigem a pastores de comunidades, aos quais propõem normas administrativas. O titulo de “Pastorais” data do século XVIII e deve-se ao teólogo protestante Paul Anton (t 1730). Há quem duvide da autoria paulina destas cartas. Daí o primeiro título do nosso estudo.

Lição 1 : Autenticidade

1. Até o começo do séc. XIX admitia-se tranquilamente a autoria paulina das epístolas pastorais. Esta até hoje é afirmada por grande número de autores católicos. Todavia os críticos apontam em contrário os seguintes argumentos:

1) O estilo das Pastorais é regular e harmonioso, contrastando com a impetuosidade e a exuberância das epístolas anteriores. O próprio vocabulário difere: de 848 vocábulos das cartas pastorais, 306 são exclusivos destas cartas no conjunto do epistolário paulino.

2) A organização da Igreja e a evolução da hierarquia apresentadas pelas Pastorais são demais desenvolvidas para se situar na época de São Paulo († 67).

Para entender este argumento, devemos lembrar que, enquanto os Apóstolos viviam, eles eram os pastores de toda e qualquer comunidade; todavia, como não tinham estabilidade, deixavam em cada comunidade um Colégio de anciãos (presbyteroi, em grego) ou superintendentes (epískopoi, em grego), que governavam a comunidade na ausência do Apóstolo e que tinham abaixo de si os diáconos (diákonoi, ministros, em grego). É o que se depreende, por exemplo, de At 11,30; 14,23; 15,23; 1 Pd 5,1; Fl 1,1 e de At 20,17 (São Paulo manda chamar os presbyteroi, anciãos, de Éfeso) e At 20,28 (S. Paulo designa esses anciãos como sendo epískopoi, superintendentes, guardas, vigilantes). – Com o passar da geração dos Apóstolos, essa organização devia ceder ao chamado “episcopado monárquico”: um dos presbyteroi-epískopoi seria escolhido como chefe do colégio e ficaria com o nome exclusivo de epískopos (bispo), ao passo que os restantes, subalternos, teriam o nome de presbyteroi, presbíteros (sacerdotes, no sentido comum da palavra hoje). Esta nova organização nos é atestada pelas cartas de Santo Inácio de Antioquia (†107).

Ora, dizem os críticos, as epístolas pastorais supõem o episcopado monárquico (que é posterior à época de São Paulo), pois Timóteo e Tito parecem ser os pastores de uma comunidade, cada qual. Por conseguinte um discípulo do séc. II terá usado o pseudônimo de Paulo para escrever as cartas pastorais – Voltaremos ao assunto.

3) Os erros combatidos em 1/2 Tm e Tt supõem o gnosticismo do século II¹. Tenham-se em vista 1Tm 4,1-5; 6,3.20:; 2Tm 2,14-18; 4,3s; Tt 1,10-16…

4) O Cristianismo das Pastorais é jurídico, ao passo que o paulino é místico. As Pastorais recomendam a ortodoxia (1Tm 1,10;4,1;Tt 1,9;2Tm4,3); insistem nas boas obras (1Tm2,10; 5,10; 6,18;Tt2,7.14; 2Tm 2,21), ao passo que São Paulo recomenda muito a fé.

Em conseqüência, as Pastorais seriam de um autor do séc. II. Este, recorrendo a pseudonímia, teria procurado fazer eco aos Atos, a 2Cor, a Fl e Cl, para escrever cartas que visavam a preservar a sã doutrina e a hierarquia da Igreja em comunidades ameaçadas pelas especulações extravagantes do gnosticismo.

2. Que dizer a tal propósito?

Na verdade, os argumentos não são decisivos, como se poderá perceber:

1) Compreende-se que um autor dinâmico, como era São Paulo, não se tenha fixado num linguajar único, principalmente quando novas circunstâncias e novos temas exigiam novos vocábulos e novo estilo. Vimos que entre Gl e Rm existe evolução de pensamento e expressão. Também se deve considerar que a idade avançada pode ter abrandado a linguagem ardente de Paulo. Mais: na antiguidade, sendo o trabalho de escrever penoso e longo, as pessoas mais atarefadas limitavam-se a indicar idéias e palavras-chaves a um redator; este se encarregava, de dar a tal material o estilo e a forma literária que julgasse convenientes; o escrito assim redigido era atribuído ao doador das idéias. Ora é possível que Paulo tenha recorrido a este expediente para produzir as Pastorais (como também Ef); há mesmo quem julgue que esse redator foi Lucas, pois apontam afinidades entre o estilo de Lucas e o das Pastorais.

2) As Cartas Pastorais ainda não supõem o episcopado monárquico. O título de “epíscopo” aparece ai como sinônimo de “presbítero” (cf. Tt 1,5-7), como em At 20,17.28. Nem Timóteo nem Tito são bispos residenciais, postos à frente de uma comunidade só, mas são pastores peregrinantes, postos à disposição de Paulo, que os desloca como lhe apraz (cf. Tt 3,12; 2Tm 4,11-13). – Verdade é que nas epístolas pastorais é realçada a diversidade dos ministérios (o autor se refere também aos diáconos e às viúvas cf. 1Tm 3,8-13; 5,3-16), como se S. Paulo quisesse descentralizar o serviço da comunidade, preparando o episcopado monárquico que aparece nas cartas de Santo Inácio de Antioquia (aos Magnésios 3,2; 6,1; aos Esmirnenses 8,1).

3) As doutrinas combatidas nas Cartas Pastorais não são necessariamente as da gnose do século II. A descoberta, em 1947, de documentos judaicos em Qumran, datados do limiar da era cristã, ajuda a identificar tais erros: trata-se de teorias sutis (1 Tm 6,4), fábulas e genealogias sem fim (cf. 1Tm 1,4), polêmicas a respeito da Lei (cf. Tt3,9), contos de gente caduca (cf. 1Tm 4,7), associados a ascetismo dualista (cf. 1Tm4,3; 2Tm 2,18); isto tudo sugere a pré-gnose, já reconhecida no estudo de Cl e Ef.

4) A insistência de Paulo sobre a fidelidade às proposições da fé aparece nas epístolas mais antigas: 1 Cor 11,2.23; 15,3; 2Ts2,15; 3,6; Rm6,17 (“forma de doutrina”). Não é, pois, para estranhar que ocorra nas Pastorais. – Também a exortação às boas obras é familiar a São Paulo: Gl5,6; Rm2,7s; 2Cor 9,8; Fl1,6. – Por sua vez, o tema da graça e da gratuidade, caro às epístolas mais antigas, ocorre em ITm1,12-17; Tt3,4-7.

Vemos assim que há continuidade entre as epístolas pastorais e o clássico epistolário paulino. Podemos, pois, manter, com a tradição, a tese de que Paulo também é o autor (se não o redator) das Pastorais.

Mais precisamente, descrevemos nos seguintes termos o contexto de tais cartas:

O primeiro cativeiro romano (61 -63) de Paulo terminou com sentença favorável a Paulo. Este, então, conforme seus anseios, foi à Espanha (cf. Rm15,24-28). A seguir, em 65 e 66 empreendeu nova viagem ao Oriente (cf. Fm22), a fim de visitar e multiplicar as comunidades cristãs. No decurso dessa viagem, terá deixado Tito em Creta e Timóteo em Éfeso (Ásia Menor); a estes dirigiu pouco depois, em 65-66, as duas primeiras cartas pastorais, a fim de fortalecê-los no exercício da sua missão. Não muito depois, Paulo foi preso, talvez em Trôade (cf. 2Tm 4,13), pois o nome de cristão era ilícito; levado a Roma para um segundo cativeiro, escreveu 2Tm marcada pela consciência da morte próxima.

Lição 2: Os destinatários

Timóteo era originário de Listra, na Licaônia, filho de pai pagão e de mãe judia convertida ao Cristianismo e chamada Eunice (At 16,1; 2Tm 1,5). Por ocasião da primeira viagem missionária de Paulo provavelmente, foi batizado em 45; instruído nas Escrituras Sagradas por sua avó Loide e sua mãe Eunice (2Tm 3,15), foi assumido por Paulo como auxiliar de apostolado durante a segunda viagem missionária; Paulo mandou circuncidá-lo, porque todos sabiam que o pai de Timóteo era pagão (cf. At 16,1-3).

– Desde então, Timóteo tornou-se fiel companheiro de Paulo, dócil ao Apóstolo e plenamente identificado com o mestre; cf. 2Tm l,2; 2,1 ; 1Tm 1,2; 1 Cor4,17; FI2.20. Não sem razão Timóteo é associado a Paulo no cabeçalho de seis cartas; 1/2 Ts, 2Cor, Cl, Fl, Fm.

Timóteo compartilhou o primeiro cativeiro romano de Paulo. Depois acompanhou o Apóstolo em sua viagem pelo Oriente e foi constituído epíscopo missionário em Éfeso, com a finalidade de admoestar “alguns a não ensinar outra doutrina” (1 Tm 1,3). Diz a tradição que morreu em Éfeso, como mártir em 97.

Tito, que devia ter a mesma idade que Timóteo, é-nos conhecido apenas por referências em quatro cartas de S. Paulo: Gl, 2Cor, Tt, 2Tm. Os Atos não falam deste discípulo. Filho de pais pagãos (cf. Gl 2,1 s) e convertido à fé provavelmente por Paulo (cf. Tt 1,4), Tito pertencia à comunidade cristã de Antioquia. Pela primeira vez aparece como companheiro de Paulo, por ocasião do Concilio de Jerusalém (Gl 2,1-2). Após o fracasso de Timóteo, aceitou o convite de reconduzir à obediência e paz a comunidade agitada dos coríntios; levando a estes a “carta das lágrimas”, viu seus esforços bem sucedidos (cf. 2Cor7,13-15; 8,6; 12,17s). Foi também o portador da 2Cor (cf. 2Cor 8,6.16-24). Após longo intervalo, Tito reaparece ao lado de Paulo em Creta, onde é deixado com a tarefa de concluir a organização das comunidades locais (cf. Tt 1,5); aí devia ficar até que Artemas ou Tíquico o fosse substituir (Tt 3,12). Segundo a tradição, morreu em 93 como bispo da ilha de Creta. Em conseqüência, pode-se dizer que Tito possuía um temperamento sólido forte e ponderado; era apto a tarefas difíceis, bom organizador, zeloso no ministério… Salientaremos, a seguir, alguns traços mais importantes das Pastorais.

Lição 3: Traços importantes

3.1. Vida cristã e beleza

O termo kalós (belo e bom) é característico de 1/2 Tm e Tt. Ocorre aí 24 vezes, quase sempre como adjetivo, ao passo que nas outras dez cartas paulinas só aparece num total de 20 vezes. Assim a beleza parece tornar-se, aos olhos de Paulo ancião, uma nota característica da vida cristã ou uma expressão da vida de fé. Tenhamos em vista algumas das passagens que empregam o adjetivo kalós (bom e belo): 2Tn 4,7e 1Tm6,12 (o belo ou nobre combate da fé); 1 Tm 6,13 (a bela ou heróica confissão); 1Tm 1,18 (a bela ou fiel militância); 1 Tm 4,6 (bela ou sadia doutrina); 1Tm 3,7 (belo ou favorável testemunho); 2Tm 1,14 (belo ou precioso depósito); 1Tm 1,5.19 (bela ou reta consciência); 1Tm 1,8 (bela ou válida Lei); 1Tm 2,10; 3,1; 5,25; 2Tm 2,21; 3,17 (belas ou santas obras). Assim toda a vida crista é bela e o pastor deve procurar formar os fiéis a vivê-la conseqüentemente (cf. Tt 3,8; 2,3; 1Tm 2,3). Verdade é que as traduções portuguesas nem sempre conservam a força da palavra kalós; como quer que seja, é oportuno que o leitor saiba quanto ela está presente nas pastorais. Este fato é especialmente surpreendente se levarmos em conta que, para o filósofo Aristóteles (f 322 a.C.), os anciãos não vivem para a beleza de ideais, mas para o que é útil ou pragmático; ora precisamente São Paulo ancião fala mais da beleza da vida do que em sua idade madura; isto só se pode explicar pela fé do Apóstolo, que lhe apontava o fim da vida terrestre como consumação ou plenitude da verdadeira vida, que já existe, sob forma de semente, em cada cristão desde o dia do seu batismo.

3.2. A vida cristã como treinamento atlético

São Paulo usava de muitas metáforas para melhor se fazer compreender. Entre estas, não pendia negligenciar a dos exercícios atléticos muito estimados pelos gregos.

Em suas primeiras epístolas, o Apóstolo se referiu ao pugilato ou jogo de box (1 Cor 9,26; 2Cor4,8s), às corridas atléticas (1 Cor 9,24; Gl 5,7; Fl 3,12-14; cf. Hb 12,1), a fim de ilustrar o zelo com que o cristão se deve dedicar à conquista da coroa da vida eterna. Em 1 Tm 4,7s Paulo retoma a imagem do atletismo e recomenda mais explicitamente o empenho pelo treinamento espiritual: “Exercita-te na piedade. A pouco serve o exercício corporal, ao passo que a piedade é proveitosa para tudo, pois contém a promessa da vida presente e futura”. Estas palavras se tornam particularmente ricas de sentido, se compreendemos que foram escritas para um discípulo que devia educar-se ou formar-se para o encargo de pastor do rebanho de Cristo. O Apóstolo afirma que muito mais valioso do que o atletismo corporal (praticado com tanto afinco pelos homens) é a áskesis, a ascese ou o treinamento espiritual; este exigirá não menos esforço do que a luta do estádio, pois tem para si melhores promessas do que as das competições atléticas.

3.3. Solidariedade e não solidariedade com Cristo

Em 2Tm 2,11-13, o Apóstolo transcreve um possível hino da Liturgia antiga, que assim reza:

“Se com Ele morrermos, com Ele viveremos.
Se com Ele sofrermos, com Ele reinaremos.
Se nós o renegarmos, também Ele nos renegará.
Se lhe somos infiéis, ele permanece fiel, pois não pode renegar a si mesmo”.

Esta estrofe compõe-se de quatro versos: os dois primeiros afirmam plena solidariedade do cristão com Cristo no morrer e no ressuscitar; o terceiro ainda mostra um paralelo entre o cristão e o Cristo, mas trágico; o quarto nega qualquer paralelo. – Que significam, pois, o terceiro e o quarto verso? O terceiro supõe a renegação no momento final desta peregrinação terrestre; se o cristão é então encontrado avesso a Cristo, a sua opção negativa é respeitada; Deus não o forçará a converter-se (tal é a tragédia do inferno). O quarto verso refere-se aos pecados da vida cotidiana: ainda que o cristão peque (seja infiel), Cristo não lhe é infiel, de modo que, sempre que deseje voltar, arrependido, ao Senhor, o pecador encontra Este de braços abertos, como Ele sempre foi; com efeito, Deus não nos pode dizer não depois de haver dito sim; não pode retratar-se, precisamente porque é Deus perfeito e não criatura volúvel. A perfeição de Deus, tornando Deus diferente do homem, é que fundamenta a confiança e a esperança do cristão.

Eis algumas seções que recomendam a leitura atenta e proveitosa das epístolas pastorais.


Referências:

(1) O gnosticismo é uma corrente que mistura doutrinas gregas, judaicas e orientais (místicas); prepondera aí o dualismo ou a oposição entre o espírito (tido como o bom e puro) e a matéria (considerada como má e impura).

Perguntas sobre as Epístolas Pastorais

1) Leia as epístolas pastorais e aponte, em cada uma, três passagens que revelem a solicitude do pastor. Justifique sua escolha,
2) Onde é que, nas Cartas Pastorais, o autor nos diz que “toda Escritura é inspirada por Deus e útil para instruir, para refutar, para corrigir…, a fim de que o homem de Deus seja perfeito”?
3) Em que passagem das pastorais São Paulo diz que “é grande o mistério da piedade…”?
4) Himeneu e Fileto têm uma palavra que é como gangrena. Onde se encontra isto?
5) Onde São Paulo nos diz que a graça de Deus se manifestou a todos os homens e nos ensina a viver santa, justa e piedosamente neste mundo?
6) Na 2Tm qual a secção que mais manifesta a solidão do Apóstolo?
7) Onde São Paulo diz a Timóteo que tome um pouco de vinho por causa do estômago ?
8) Como deve ser a viúva que serve ao Senhor, conforme 1 Tm? Indique capitulo e versículos ?