Sermão para a Festa da Conceição
Nota: Deve notar-se ali e noutras frases subsequentes deste sermão, que Bossuet viveu no século XVII, em que a Conceição Imaculada de Maria Santíssima não era ainda definida como dogma católico: só o foi em 8 de dezembro de 1854.
SUMÁRIO
Exordio. O mistério que hoje celebramos parece ser para Bossuet o mais difícil de tratar. Todos estão mortos, todos estão criminosos e condenados em Adão. Como pode a esta condenação escapar a Virgem Maria?
Proposição e divisão. Fecit mihi magna qui potens est:
1.° A autoridade soberana excluiu Maria da lei geral;
2.° A sabedoria divina separou-a do contágio universal;
3.º O amor eterno de Deus precaveu-a misericordiosamente da sua cólera.
1.º Ponto. — A soberania consiste, ao que parece, em fazer leis dentro da esfera da autoridade, e em suprimi-las dentro dos limites do poder; sendo a supressão justificada concedida às personagens eminentes, e a fundada no exemplo, concedida apenas à glória do soberano. É o que no caso presente se realiza. Concluamos com Tertuliano: Non tantum obsequi ei debeo, sed adulari.
2.º Ponto. — Devendo a sabedoria divina produzir a ordem e a diversidade, separa a Virgem Maria de todas as criaturas, insinuando-se nela, peculiari munere. Separemo-nos da multidão dos homens e façamos aliança com Jesus Cristo.
3.º Ponto. — Como Jesus é o ministro da graça, concede a Maria este dom em excesso, e não aguarda o progresso da idade para ser liberal para com ela. O amor do Filho exceptua a Mãe da mácula da conceição e faz com que ela fique Virgem.
Peroração. — O pecador foge de Deus; mas nós devemos associar-nos a Ele. Ninguém pode contar com a misericórdia, mas ela adverte-nos a fim de evitarmos a justiça; e confessando humildemente os nossos pecados, louvaremos a Deus.
Fecit mihi magna qui potens est
E o Omnipotente operou era mim grandes maravilhas (Lc 1, 49)
O que a Igreja hoje celebra, o que os pregadores ensinam aos povos, o que eu espero também fazer-vos compreender com o auxílio da graça divina, relativamente à pureza da Virgem Maria na sua bem-aventurada Conceição, ocupa há muito tempo a atenção dos maiores espíritos; e eu não recearei confessar-vos que, de todos os diversos assuntos que se discutem nas assembleias dos fiéis, me parece ser este o mais difícil de tratar. E se falo desta maneira, não é porque pretenda imitar o artifício dos oradores que se comprazem de exagerar em termos pomposos a esterilidade das matérias em que exercitam à sua eloquência, a fim de ostentarem, com maior brilho as riquezas das suas invenções e as sutilezas da sua retórica.
Este não é o meu escopo, cristãos, porque eu sei quão indigno será começar um discurso sagrado por um sentimento tão profano; mas sendo o meu intuito mostrar-vos quão pura, quão, inocente e quão gloriosa é a Conceição de Maria, considero primeiramente as dificuldades que se opõem a este crédito, a fim de que, aclaradas as dúvidas, que solidamente estabelecida a verdade que buscamos.
Meus senhores, quando penso na terrível sentença do divino Apóstolo, pronunciada geralmente contra todos os homens, que diz: «Todos estão mortos, todos estão criminosos e condenados em Adão» (2 Cor 5, 11), e (Rm 5, 12.16), vejo que é impossível fazer qualquer excepção a palavras tão pouco limitadas. Mas o que me prova até à evidência a universalidade desta maldição são três expressões diferentes, pelas quais o infortúnio do nosso nascimento nos é representado nas sagra das Escrituras. Dizem-nos elas em primeiro lugar que há uma lei suprema, chamada a lei da morte, que há uma sentença de condenação dada a todos indiferentemente, que para ficarmos submetidos a ela basta nascermos. Quem poderá livrar-se disto? Em segundo lugar, dizem-nos que há um veneno oculto e imperceptível, que, originando-se em Adão, se comunica depois a toda a sua raça por um contágio igualmente funesto e inevitável, que é chamado por Santo Agostinho Contagium mortis antiquae: «O contágio da morte»; e isto leva este mesmo santo a dizer que toda a massa do gênero humano se acha inteiramente corrompida. Ora quem poderá encontrar um preservativo contra um veneno tão sutil e tão penetrante? Em terceiro lugar dizem-nos as Escrituras que todos os que respirarem esse ar maligno contraem necessariamente em si uma mancha que os desabilita, que apaga neles a imagem de Deus e que, como diz São Paulo (Ef 2, 3), os torna «por natureza filhos da ira». Por natureza, tomai sentido. Como podemos evitar um mal que, na opinião do Apóstolo, se nos entranhou na natureza há tanto tempo?
Ora são estas as dificuldades que se opõem ao fim que me propus de vos provar hoje que a conceição da Virgem Maria é pura, sem mácula. Sei que é difícil vencê-las e que abalaram e excitaram vários espíritos superiores, cujas opiniões a Igreja não condena (1). Mas enfim, seja qual for a dúvida que me suscitem, não posso confiar ao pecado a conceição dessa Princesa que deve ser por todos os modos a sua privilegiada; e vejamos agora se podemos aclarar todas as dúvidas.
Como já disse, há uma lei de morte que condena todos os que nascem; mas as pessoas extraordinárias podem ser excluídas das leis mais gerais. Há um hábito maligno e contagioso que corrompeu todo o gênero humano; mas às vezes há meio de nos livrarmos do contágio, afastando-nos dele.
Se há uma mancha hereditária que naturalmente nos faz inimigos de Deus, também há a graça que pode atuar na natureza. Convido-vos a seguirdes a minha opinião, que é esta: exceptuarmo-nos da lei, separarmo-nos do contágio, e preservamo-nos dum mal por natureza. De maneira que eu proponho-me mostrar-vos Maria exceptuada, Maria separada e Maria preservada. Exceptuada da lei comum separada do contágio universal e preservada pela graça da cólera que nos persegue desde a nossa origem. Para a exceptuar da lei, recorro à autoridade soberana que tantas vezes se manifestou por ela; para a separar do gênero humano, socorro-me da sabedoria que visivelmente a separou das outras mulheres pelos grandes e impenetráveis desígnios que sobre ela exerce em todos os tempos; e para a preservar da cólera, emprego o amor eterno de Deus que fez dela uma obra de misericórdia antes dessa obra se converter num objeto de aversão.
E, se bem o soubermos compreender, veremos que são estas,, meus senhores, as três coisas que ela nos apresenta no seu admirável cântico, que assim reza:
Fecit mihi magna qui potens est – «O Omnipotente operou em mim grandes maravilhas»
Ela começa pelo poder para honrar a autoridade absoluta pela qual fica excluída: Qui potens est. Mas o Omnipotente que operou? Grandes maravilhas, diz ela: Magna. E vede que, pelos grandes e profundos desígnios a que a Sabedoria a predestinou, se reconhece divorciada das outras. E quem pode executar todas essas maravilhas, senão o amor eterno de Deus, esse amor sempre ativo e sempre fecundo, sem a intervenção do qual o poder não produziria efeito, nem jamais se manifestaria essa sabedoria infinita, se não encerrasse em si todos os pensamentos? E Ele, por consequência, quem opera tudo: Fecit mihi magna; só Ele abre o seio de Deus sobre as suas criaturas; só Ele é a causa de todos os seres e o princípio de todas as liberalidades. Foi, portanto, fiéis, esse amor fecundo que fez a conceição de Maria: Fecit; foi Ele que evitou o mal, santificando-a desde a sua origem. Isto suposto, julgo ter explicado inteiramente o meu texto e completado o panegírico da Virgem Maria na sua conceição bem-aventurada, se poder provar-vos em três pontos que a autoridade soberana a excluiu da lei comum, que a sabedoria a separou do contágio universal, e que o amor eterno de Deus a preservou misericordiosamente da cólera que contra ela havia de explodir. É o que eu me proponho fazer-vos compreender com o auxílio da graça divina; e depois disto compreendido, mostrar-vos-ei em todos os fiéis a imagem nua dessas três graças, para excitar em nós o reconhecimento.
PRIMEIRO PONTO
Nós poderíamos duvidar, cristãos, se a soberania consiste mais na autoridade de fazer leis a que obedeçam os povos inteiros, ou no poder que ela se reserva de sabiamente as suprimir, conforme a necessidade dos negócios; parecendo em primeiro lugar que a supressão, afastando-se do curso ordinário, tenha qualquer coisa de mais sublime e prove mais independência. Porque, assim como não há no mundo majestade semelhante à das leis, e assim como o poder de as estabelecer é o direito mais augusto, e mais sagrado duma monarquia absoluta, assim também se não pode dizer com razão que o que suprime leis, fazendo ceder a autoridade delas à sua própria autoridade, se eleva por este meio em certo modo acima da própria soberania! É por isso que Deus opera milagres, que são como que supressões das leis ordinárias, para mostrar mais sensivelmente a sua omnipotência; e por isso parece evidente que a prova mais irrefragável da autoridade é poder suprimir leis. Por outro lado, não são menos fortes as razões que provam que ela consiste principalmente no direito de as estabelecer; e por isso devemos notar que a lei se estende a todos ps indivíduos, restringindo-se a sua isenção a poucas pessoas. Se a isenção se estendesse a todos, ela perderia o nome de isenção e alteraria a lei. Agora dizei-me, senhores, se o poder menos limitado não é também o mais absoluto; e se a autoridade não consiste mais em fazer leis a que se submetem um milhão de homens do que em suprimir cinco ou seis por motivos particulares. E depois não parece que o poder se manifesta melhor por uma fixação definida, tal como é certamente o da lei, do que por uma ação extraordinária como é a da supressão?
Mas para conciliar toda esta controvérsia, digamos que o caráter da autoridade se manifesta igualmente numa e noutra. Porque, como muito bem diz Santo Tomás, podemos considerar na lei duas coisas, a ordem geral e a aplicação particular. Por exemplo, quando, na punição de Assuerus, todos os judeus são condenados à morte, temos a ordem geral; e se nessa disposição se compreender Ester, teremos a aplicação particular. Essa ordem geral faz a autoridade da lei, e é na aplicação particular que pode intervir a isenção. E como ao mesmo poder que estabelece os regulamentos gerais compete dirigir a aplicação, que dela se faz em todos os assuntos particulares, segue-se que fazer leis e conceder isenções são acessórios igual mente nobres da autoridade soberana que não podem ser separados.
Estabelecidas assim estas máximas, reatemos o fio do nosso discurso. Vós opondes-me uma lei de morte pronunciada contra todos os homens, e dizeis-me que fazer nela qualquer exceção, quando se trata da Virgem Maria, é violar a autoridade da lei. E eu respondo-vos, pelo contrário, segundo os princípios que estabeleci, que, dividindo-se o poder do legislador em duas partes, nem por isso deixa de ser violada a sua autoridade, se se disser que ele não pode isentar na aplicação particular, em vez de se dizer que não pode dispôr por uma ordem geral. Falemos ainda mais claramente. São Paulo afirma em termos formais que «todos os homens estão condenados» (Rm 5, 18). Ora isto não me admira, cristãos, porque ele considera a autoridade da lei como extensiva a todos; mas não exclui as reservas que pode fazer o Soberano, nem os golpes dum poder absoluto. Em virtude da autoridade da lei, reconheço que Maria estava condenada, assim como o resto dos homens; mas pelas graças, pelas reservas e pelo poder do Soberano, digo que foi excluída.
Mas, direis vós, confiar às isenções a sagrada majestade das leis é enervar-lhes todo o vigor. É certo, se essa isenção não for acompanhada de três coisas, de que eu vos peço tomeis nota, e que vêm a ser: a isenção concedida a uma personagem eminente, a obrigação que cada um tem de se fundar no exemplo, e a parte que na isenção deve tomar a glória do Soberano. Temos, portanto, deveres, para com a lei, para com o público e para com o príncipe. Para com a lei devemos-lhe o respeito, porque só às personagens extraordinárias se deve reconhecer qualquer isenção; para com o público devemos-lhe a satisfação, porque sem exemplo não se deve fazer isenção alguma; e para com o Soberano, autor da lei, e sobretudo para com um Soberano como é Deus, devemos-Lhe particularíssimas considerações. E quando estas três coisas concorrerem simultaneamente, podemos então racionalmente esperar uma graça. Passemos a considera-las na Virgem Maria.
Vós, que receais fazer uma excepção em favor da Virgem bem-aventurada, haveis de dizer-me que coisa temeis, visto que o que se teme, em geral, é a consequência da ação. Ora vejamos se há motivo para receio nesta conjuntura. Eu creio que prevedes já o meu parecer, e que sois de opinião de que se não deve temer senão aquilo em que pode haver igualdade. Mas haverá outra mãe de Deus, haverá outra virgem fecunda, à qual se possa ampliar as prerrogativas da incomparável Maria? Quem só tiver conhecimento dessa maternidade gloriosa, dessa aliança eterna que ela contraiu com Deus, coloca-a numa classe tão singular, que é insusceptível de qualquer comparação. E em tal desigualdade, que consequência podemos temer? Quereis agora que passemos aos exemplos? Pois bem; mas não imagineis, cristãos, que espero encontrar nos outros santos exemplos da sublimidade de Maria; porque, visto ela ser tão extraordinária, seria uma ilusão procurar noutra parte privilégios semelhantes aos seus. Mas então onde iremos buscar exemplos a favor da isenção que propomos? Necessariamente a ela própria, e é este o meu intento.
Eu observo na história que quando as graças dos Soberanos começam a tomar um certo curso, derivam depois com profusão, atraindo-se os benefícios uns aos outros e servindo-se de exemplo reciprocamente. O próprio Deus nos diz no Evangelho: Habenti dabitur – «Apraz-me dar aos que têm» (Mt 25, 29); isto é, segundo a ordem das suas liberalidades, uma graça nunca vai só, pois que é o penhor de muitas outras. Apliquemos agora isto à Virgem Maria. Se reconhecermos, cristãos, que ela poderia ter ficado sujeita às ordens comuns, também poderíamos talvez imaginar que teria sido concebida na iniquidade, como os outros homens. Mas se nela virmos, pelo contrário, uma isenção quase geral de todas as leis; se nela virmos, segundo a fé católica, ou segundo a opinião dos doutores mais autorizados, um parto sem dores, uma carne sem fragilidade, uns sentidos sem rebelião, uma vida sem mancha e uma morte sem sofrimento; se apenas virmos no seu esposo o seu defensor, no seu matrimônio um véu sagrado que cobre e protege a sua virgindade, no seu amado Filho uma flor que a sua integridade fez brotar; se, quando ela O concebeu, a natureza admirada e confusa imaginou que todas as suas leis iam ser eternamente abolidas; se o Espírito Santo ocupa o seu lugar, e as delícias da virgindade o lugar ocupado ordinariamente pela cobiça; se, finalmente, tudo é muito extraordinário em Maria, quem poderá duvidar de que haja qualquer coisa de sobrenatural na conceição dessa Princesa, e de que não houve fase alguma da sua vida que não fosse assinalada por qualquer milagre? E não tenho eu razão que farte, após o exemplo de tantas leis que a isentam de mácula, para aquilatar esta pelas outras? De certo; e desta forma a excelência da personalidade e a autoridade dos exemplos favorecem a isenção que propomos.
Mas em terceiro lugar insisto na isenção, quanto à parte manifesta que nela toma a glória do Soberano, isto é, do próprio Jesus Cristo. Eu poderia aqui referir uma bela sentença dum grande rei, Atalarico, em Cassiodoro, que disse «que há certas conjunturas em que os príncipes ganham o que dão, quando as suas liberalidades os nobilitam» – Lucrantur principes dona sua; et hoc vere thesauris reponimus quod famae commodis applicamus (Cassiod., Variar…, lib. VIII, epist. XXIII). Se Jesus nobilita sua mãe, nobilita-se a Si próprio; e ganha verdadeiramente tudo o que lhe dá, porque maior glória é para Ele o dar, do que para Maria o receber. Mas deixemos as considerações mais particulares. Vós, o divino Salvador, achando-Vos revestido duma carne humana para aniquilar essa lei funesta a que demos o nome de lei do pecado, tendes a Vossa grandeza no direito de a abolir em todos os lugares onde ela domina. Sigamos, se Vos apraz, os Seus desígnios e toda a ordem das Suas vitórias.
Essa lei reina em todos os homens e em todas as idades. Na idade avançada é ela destruída pela graça de Jesus; e na primeira idade, em que os recém-nascidos gemem sob o império da sua tirania, consegue Jesus aboli-la com o seu batismo. Penetra até às entranhas das mães e aniquila tudo o que nelas encontra. Mas o Salvador escolhe almas ilustres que liberta da lei da morte, santificando-as próximo ao nascimento, como por exemplo São João Batista. E por outro lado, remontando ela à origem da humanidade, condena os homens, apenas são concebidos. Ó Jesus, vencedor omnipotente, será só até este ponto que se não estende a Vossa vitória? O Vosso sangue, esse divino remédio que tanta energia tem para nos livrar do mal, não terá agora nenhuma para o evitar? Terá apenas força para curar e não para preservar? E se pode preservar do mal, ficará eternamente inútil essa virtude, sem que nenhum dos vossos membros sinta o seu efeito? Ó meu Salvador, tal não permitais; e para interesse da Vossa glória, escolhei ao menos uma criatura onde se manifeste todo o poder do Vosso sangue contra essa lei que nos mata. E quem há de ser essa criatura, senão a bem-aventurada Virgem Maria?
E agora, meu Salvador, permiti que Vos diga que há de haver quem duvide da virtude do Vosso sangue, se esse sangue precioso do Filho da Virgem não exerceu sobre ela toda a sua virtude, para enobrecer o lugar donde saiu; e isto certamente é muito justo que assim seja. E senão, vede, senhores, o que disse muito eloquentemente um antigo bispo de França, o grande Euquerio de Leão:
«Maria tem de comum com todos os homens o ser remida pelo sangue de seu Filho; mas tem de particular o ter sido esse sangue tirado do seu imaculado corpo» – Profundendum sanguinem pro mundi vita de corpore tuo accepít, ac de te sumpsit quod etiam pro te solvat
Tem de comum com todos os fiéis o ter recebido o sangue de Jesus; mas tem de particular o tê-lo Jesus primeiramente recebido dela. Tem de comum conosco o cair esse sangue sobre ela para a santificar; mas tem de particular o ser ela a sua origem. De maneira que podemos dizer que a Conceição de Maria é como que a primeira origem do sangue de Jesus, o que faz com que esse belo manancial comece a espraiar-se, com que esse rosicler de graças derive nas nossas veias pelos sacramentos, e leve o espírito de vida a todo o corpo da Igreja. E assim como as fontes, brotando sempre das suas origens, elevam as suas águas borbulhantes até à altura que vão procurar no meio do ar, assim também não é arrojo afirmar que o sangue do nosso Salvador fez ascender a sua virtude até à conceição de sua Mãe, para enobrecer o lugar donde derivou.
É, pois, inútil, cristãos, é inútil procurardes o nome de Maria na sentença de morte que foi pronunciada contra todos os homens, porque não o encontrareis, desapareceu; e de que maneira? Por meio desse sangue divino que, havendo saído do seu ventre imaculado, aspira à glória de empregar a favor dela toda a eficácia que tem em si contra essa funesta lei que nos mata desde a nossa origem. Donde é fácil concluir que nada há mais favorável do que a isenção de que falamos, visto que nela vemos concorrer simultaneamente a excelência da personalidade, a autoridade dos exemplos e a glória do Soberano, isto é, do próprio Jesus Cristo. Um célebre escritor eclesiástico disse que a majestade de Deus é tão sublime, «que não só é glória prestar-lhe o culto devido, mas até mesmo é nobreza descer por amor dEle à submissão da lisonja» – Non tantum obsequi ei debeo, sed et adulari (Tertul., De jejun., n. 13). Quer ele dizer que devemos conservar de tal forma todos os nossos movimentos na dependência das ordens de Deus, que não só nos submetamos aos preceitos que Ele nos impõe, mas também, estudando cuidadosamente as menores manifestações da sua vontade, a prevejamos, se for possível, pela prontidão da nossa pontual obediência.
O que Tertuliano disse de Deus, que é o pai comum de todos os fiéis, avanço eu a dizê-lo também da Igreja, que é a mãe deles. Ela não emprega excomunhões nem anátemas para obrigar os seus filhos a confessarem que a Conceição da Virgem Maria é toda pura, sem mácula. Não inclui essa crença entre os artigos que compõem a fé cristã (Nota: Foi definido como dogma em 8 de dezembro de 1854); mas convida-nos a acompanhá-la com a solenidade desse dia. Que havemos de fazer, cristãos? Non tantum obsequi, sed et adulari. Não é justo que obedeçamos não só aos preceitos duma mãe tão boa e tão santa, mas também ao menor testemunho da sua vontade? Digamos, pois, afoitamente que essa Conceição é imaculada, honremos Jesus Cristo em sua santa Mãe; e tenhamos a crença de que o Filho de Deus operou qualquer coisa de particular na Conceição de Maria, visto que essa Virgem foi escolhida para cooperar, por uma ação particular, na Conceição de Jesus.
Mas, considerando os benefícios com que o Filho de Deus honra sua mãe, recordemos os que recebemos da graça; e gravemos no pensamento, cristãos, quão dura e inevitável é a sentença que nos condena, visto que para dela excluir a Santíssima Virgem, apenas é indispensável a autoridade soberana. Mas o que mais é para admirar é que com todas as prerrogativas devidas à sua nobreza, ainda a Igreja não quis reconhecer a pureza de Maria (Nota: Foi reconhecida em 1854). Deplorável condição do nosso nascimento que, por um longo encadeamento de misérias que nos fazem gemer durante a vida, nos arrasta a um suplício eterno por um justo e impenetrável juízo de Deus! Mas, graças à misericórdia divina, essa sentença de morte foi anulada a pedido de Jesus Crucificado, é o Seu sangue desfez os nossos laços e tirou esse jugo de ferro de cima das nossas cabeças. Agora já não estamos sob o império da lei da morte. Não sejas, portanto, ingrato para com o teu Libertador, cristão; respeita a autoridade soberana que te excluiu duma lei tão rigorosa. Lembra-te de que dissemos que essa autoridade soberana tem duas funções principais: ordena e isenta, como lhe apraz. Depois de a teres achado favorável na isenção que te conferiu, respeita-a também as leis que te prescreve. És devedor aos preceitos, e não o és menos às isenções. Aos preceitos eleves uma obediência fiel; à isenção, que te livrou duma lei tão rigorosa, deves contínuas ações de graças. É o que excelentemente pratica a Santíssima Virgem, quando diz:
Fecit mihi magna qui potens est – «O Omnipotente operou em mim grandes maravilhas»
Vede como ela se considera reconhecida para com o Poder, que a excluía da lei funesta, da lei que faz todas as conceições criminosas, bem como para com a Sabedoria, que a separou do contágio universal. É o que passo a tratar na segunda parte.
SEGUNDO PONTO
A teologia ensina-nos que é à Sabedoria divina que compete produzir a diversidade; e, como é a ela que pertence estabelecer a ordem das coisas, também é ela que deve fazer a sua distinção, sem a qual não pode subsistir a ordem. Efetivamente, nós vemos, fiéis, que ela se exerceu, por assim dizer, desde a origem do universo, quando, manifestando-se nessa matéria que apenas ainda estava semi-formada, separou a luz das trevas, as águas deste mundo das águas celestes, e desfez a confusão que envolvia todos os elementos. Mas o que ela uma vez operou na criação, opera-o todos os dias na reparação da nossa natureza. Outrora separou as partes do mundo que apresentavam apenas uma massa informe; agora faz a separação no gênero humano que não é mais do que uma massa criminosa. É o que faz dizer ao Apóstolo (Gl 1, 15): «Quando aprouve ao que me separou», isto é, que me livrou, que me salvou de maneira que a graça salva-nos por uma feliz separação, que nos tira dessa massa corrompida; e isto é obra da Sabedoria, porque é ela que nos escolhe desde a eternidade e nos prepara os meios certos pelos quais somos justificados.
A Virgem Maria está, portanto, separada e isto tem ela de comum com todo o povo fiel; mas para ver o que ela tem de extraordinário, é preciso considerar a aliança particular que contraiu com Jesus Cristo. A este respeito, ficai sabendo, cristãos, o mistério do douto e eloquente Santo Euquerio na segunda Homilia que compôs acerca da natividade de Nosso Senhor, quando, regozijando-se com Maria pela conceição do Salvador nas suas benditas entranhas, lhe dirige estas sublimes palavras:
«Quão feliz sois, Mãe incomparável, porque fostes a primeira a receber o que foi prometido a todos os homens, e possuis toda a alegria comum do universo!» Per tot saecula promissum, prima suscipere mereris adventum, et commune mundi gaudium, peculiari munere sola possides
Que quer dizer este santo bispo? Se Jesus Cristo é um bem comum, se os seus mistérios são de todo o mundo, como poderá somente possuí-lo a Santíssima Virgem? A Sua morte é o sacrifício público, o Seu sangue é o preço de todos os pecados, a Sua prédica instrui todos os povos; e o que prova claramente que Ele é o bem comum de toda a terra, é que essa divina Criança nasceu ao mesmo tempo que os judeus foram chamados à presença dEla pelos anjos, e os gentios pelos astros. Não obstante, ó dignidade de Maria! Ela tem um direito particular de o possuir unicamente, porque pode possuí-lo como filho. Nenhuma outra criatura compartilha desta dignidade. Só Deus e Maria é que podem ter por filho o Salvador; e por esta santa aliança, Jesus Cristo entrega-Se-lhe de tal maneira, que pode dizer-se que o tesouro comum de todos os homens é para ela a sua riqueza particular: Sola possides.
Quem não admiraria, cristãos, de a ver tão gloriosamente divorciada das outras? Mas que importa isto, direis vós, para santificar a sua conceição? Aqui é que é preciso mostrar que a conceição do Salvador tem uma influência secreta que estende a graça e a santidade, sobre a da Virgem Maria. Mas para compreender o que vou explicar, gravemos no pensamento uma verdade cristã que é plena consolação, para todos os fiéis. É que a vida do Salvador das almas tem uma relação particular com todas as partes da nossa, para nela produzir a santidade. Evidenciemos esta verdade mais claramente por uma bela passagem extraída do Apóstolo (Rm 14, 9.):
«Cristo morreu e ressuscitou para ser Senhor tanto dos mortos como dos vivos»
Vede a relação: a vida do Salvador santifica a nossa, e a nossa morte é consagrada pela Sua.
Do mesmo modo devemos dizer, segundo a dou-trina da Escritura, que Ele se revestiu de fraqueza para aliviar as nossas enfermidades, e que sentiu dores para tornar as nossas santas e futuosas; motivo este para vos consolardes, cristãos aflitos. Enfim, há uma relação secreta entre Ele e nós que nos santifica, razão por que desceu a toda a miséria humana para consagrar tudo o que somos. E porque se dá essa maravilhosa comunicação da Sua morte com a nossa, e dos Seus sofrimentos com os nossos? Ah! Responderia o apóstolo São Paulo, é porque o Salvador moribundo pertence-nos; dá-nos a Sua morte, e nós achamos nela uma fonte de graça que santifica a nossa morte, fazendo-a semelhante à Sua. O Salvador mártir pertence-nos, e nós podemos achar nas Suas dores com que santificar os nossos sofrimentos. Isto é o que podem dizer todos os cristãos; mas só à Virgem assiste o direito de nos dizer: O Salvador concebido entregou-se-me por um título particular, e desta maneira, a Sua conceição inspira santidade à minha por uma secreta influência.
Na verdade, cristãos, o Salvador concebido pertence-lhe, porque o Pai celestial fez-lhe esse presente. Aos homens cabe todo o resto dá sua vida; mas durante o tempo em que ela o concebe e em que o traz no ventre, só ela tem o direito de o possuir: Peculiari munere sola possides. E, esse direito que particularmente lhe assiste sobre a conceição do Salvador, será susceptível de lhe provocar uma benção particular para santificar a sua conceição? Se, na qualidade de Mãe de Deus, ela é escolhida pela Sabedoria Divina para operar qualquer coisa de singular: na conceição de Jesus, não era justo, fiéis, que Jesus também reciprocamente operasse qualquer coisa de singular na conceição de Maria? E depois disto, quem poderia duvidar de que a conceição dessa Princesa fosse diferente de todas as outras, visto que o Filho de Deus se reservou a tal respeito uma operação extraordinária? Ó Maria, eu reconheço-vos separada, e a vossa separação é, uma obra da Sabedoria porque é uma obra de ordem. E assim como tendes particular correspondência com vosso Filho, assim também Ele deseja que compartilheis dos seus privilégios.
A Virgem, considerada na sua separação, tem qualquer coisa de comum com todos os homens, e qualquer coisa de particular. Para compreender isto, é necessário saber que estamos separados do gênero humano, porque pertencemos a Jesus Cristo e com Ele temos aliança, Cristo tem duas alianças com sua Mãe: uma como Salvador e outra como Filho. Como Salvador, é ela comum com todos os homens; e apesar de Jesus Cristo ser um bem comum, tem a Virgem sobre Ele um direito particular:
Peculiari munere sola possides – «Por essa aliança particular na qualidade de Filho»
Ora a aliança com Jesus Cristo, como Salvador, faz com que ela fique separada do gênero humano, assim como as outras; e a aliança particular com Jesus, na qualidade de filho, separa-a duma maneira extraordinária. Auxiliai-me, ó Sabedoria divina, pois que além da confusão dos elementos que outrora desfizeste há ainda nova confusão para desfazer. Da humanidade inteiramente criminosa é necessário separar uma criatura para a fazer Mãe do seu Criador. Jesus, que é o Salvador dessa criatura redime-a como às outras; mas, como é seu filho e tem com ela uma aliança particular, deve mesmo separá-la das mais. Se as outras criaturas estão libertas do mal, é necessário que dele fique ela preservada, que o mal não siga nela o seu curso. Mas de que maneira? Por uma comunicação mais particular dos privilégios do seu Filho. Se Ele ficou liberto do cativeiro do pecado, também Maria o devia ficar. Ó Sabedoria, embora a tenhais separado das outras mulheres, não a confundais com seu Filho, porque ela deve-lhe ficar infinitamente superior. Como a distinguiremos dEle, se ambos foram isentos do pecado, Jesus Cristo por natureza e Maria pela Graça, Jesus Cristo por direito e Maria por privilégio e por indulgência? E ela considera-se remida, quando diz: Fecit mihi magna qui potens est. Mas já basta. Vejamos agora como também nos remimos; e este é o assunto da minha terceira parte, à qual vou passar, cristãos, depois de vos ter feito notar que, embora não fossemos remidos tão excelentemente como a Virgem Maria, não deixamos, contudo, de o ser.
Pois que é o povo fiel? É um povo separado dos outros, da massa da perdição e do contágio universal. É um povo que habita no mundo, mas que todavia não pertence ao mundo. Tem o seu gozo no céu, e no céu tem a sua mansão e a sua herança, Deus imprimiu-lhe na fronte o caráter sagrado do batismo, a fim de o separar só a ele. E se, tu, cristão, te entranhares no amor mundano, se não viveres como que separado, perdes a graça do cristianismo. Mas como nos havemos de separar? Perguntareis vós. No meio do mundo onde vivemos, cercados pelos divertimentos e pelas reuniões, será preciso afastarmo-nos de toda a sociedade, teremos de nos privar de todo o comércio com os homens? – Que te hei de responder, cristão? Digo-te que é necessário que separes o coração, ao menos, porque é pelo coração que nós somos cristãos: Corde creditur (Rm 10, 10). O coração é que é necessário separar. Mas aí é que está a dificuldade, direis vós. O coração, que é desejado por tantos, também é malquistado por muitos. O mundo lisonjeia-o e zomba dele. Aqui deparam-se-lhe honrarias, além surgem prazeres. Este oferece-lhe o amor, aquele pretende receber-lho. Desta maneira como poderá ele defender-se? E que vindes, portanto, dizer-nos que é necessário que separemos o coração, ao menos? — Eu sabia perfeitamente, cristãos, que é mui difícil empresa viver no meio do mundo e conservar o coração separado dos prazeres que nos cercam; mas dou-vos o conselho. Não vos recomendo que sigais outro evangelho; apenas vos digo que de tantas horas que inutilmente dedicais às ocupações terrenas, tirai algumas, ao menos, para vos concentrardes. Procurai algumas vezes a solidão, onde secretamente mediteis nos prazeres dos bens eternos e na vaidade das coisas mortais, Separai-vos com Jesus Cristo, e abri a vossa alma na sua presença. Instai com Ele para que vos conceda essa graça, cujos divinos atrativos possam abstrair-vos dos prazeres mundanos, essa graça que distinguiu a Santíssima Virgem, e que de tal forma a plenificou, que a cólera que ameaça os filhos de Adão não pode na sua conceição achar acolhimento, porque ela foi preservada por um amor misericordioso.
TERCEIRO PONTO
Se virmos nas sagradas Escrituras que o Filho de Deus, depois de se encarnar, também desceu a todas as nossas misérias, à exceção do pecado; se o intento que concebera de se tornar semelhante a nós fez com que não desprezasse a fome e a sede, o temor e a tristeza, e tantas outras enfermidades que pareciam indignas da Sua grandeza, com mais forte razão devemos crer que o impressionou vivamente esse amor tão justo e tão santo, que a natureza imprime em nossos corações por aqueles que nos dão a vida. Esta verdade é muito evidente; mas eu pretendo hoje provar-vos que foi esse amor que preservou a Santíssima Virgem na sua conceição bem-aventurada; e este assunto merece larga explicação.
Eu considero em dois estados esse amor de filho que o Salvador dedicou a Maria. Considero-o na encarnação e anteriormente à encarnação do Verbo divino. Que ele tenha existido na encarnação, cristãos, é fácil de acreditá-lo; porque, sendo nesse augusto mistério que Maria veio a ser a Mãe de Deus, foi também nesse augusto mistério que Deus adquiriu sentimentos de filho para com Maria. Mas que esse amor de filho exista em Deus, dedicado à Sua santa Mãe; antes dEle ser encarnado, é que parece difícil de acreditar-se, visto que o Filho de Deus apenas é filho de Maria em virtude da humanidade que tomou. Se formos, porém, mais longe, encontraremos esse amor que preservou a Santíssima Virgem pela profusão dos seus dons. Compreendei esta verdade, e vereis o amor de Deus dedicado à nossa natureza.
Para compreendermos esta doutrina devemos notar que a Virgem Maria teve particularidade, que a distingue de todas as mães, de gerar o Ministro da graça; e que seu Filho, diferindo dos outros neste sentido, é susceptível de agir energicamente desde o primeiro momento da sua vida, havendo de extraordinário o ser ela mãe dum Filho que a antecedeu no nascimento. Daqui provêm três belos efeitos a favor da bem-aventurada Virgem Maria. Como seu Filho é o ministro da graça, concede a Maria este dom em excesso; e como é susceptível de agir desde o primeiro instante da sua vida, não aguarda o progresso da idade para ser liberal para com ela, pois que vê o começo das suas profusões no mesmo instante em que é concebido. Finalmente, como tem um Filho que nasceu antes dela, pode o amor desse Filho operar o milagre de a preservar até na sua conceição, fazendo com que fique virgem, para o que lhe conveio ter um Filho que nascesse antes dela. Mas esclareçamos esta verdade por uma excelente doutrina dos Santos Padres, e vejamos qual foi, desde a eternidade, o amor do Filho de Deus dedicado à Virgem Maria.
Nunca admirastes, senhores, como Deus fala nas sagradas Escrituras, como, para assim dizer, afeta todas as modalidades do homem, como imita as nossas ações, os nossos costumes, os nossos movimentos e as nossas paixões? Umas vezes diz pela boca dos seus profetas que tem o coração movido de compaixão, outras vezes que o tem inflamado pela cólera, que se arrepende, que tem alegria ou tristeza. Que mistério é este, cristãos? Deverá por ventura um Deus proceder desta sorte? Se o Verbo encarnado assim nos falasse, não me admirava, porque era homem; mas que Deus, antes de ser homem, fale e proceda à maneira dos homens, é que acho verdadeiramente extraordinário. Eu sei que me direis que essa Majestade soberana quer descer por esta forma à nossa compreensão, o que eu não contradigo; mas também sei dos santos Padres que há uma razão mais misteriosa.
É que tendo Deus resolvido associar-se à nossa natureza, não lhe pareceu indigno revestir-se logo de todos os sentimentos que a caracterizam; pelo contrário, achou-os tão convenientes à sua pessoa que diríeis que procurou adaptar-se-lhes também.
Vejamos se conseguiremos explicar tão grande mistério com algum exemplo familiar. Um homem pretende destinar-se à magistratura ou professar as armas; mas, como ainda o não conseguiu, prepara-se para isso, revestindo-se antecipadamente de todos os sentimentos próprios, e começando a habituar-se à gravidade dum magistrado ou à valente generosidade dum guerreiro. Também Deus resolveu fazer-Se homem, e embora ainda o não seja no tempo dos profetas, há de vir a sê-lo ; e desta maneira não é de admirar Ele falar e agir como homem antes de o ser e comprazer-se em certo modo de aparecer aos profetas e aos patriarcas em figura humana. Como pode isto ser? Admiravelmente o explica Tertuliano, dizendo que são preparativos da encarnação; porque o que deve humilhar-se até se revestir da nossa natureza, faz, para assim dizer, o seu tirocínio, adaptando-se aos nossos sentimentos.
«Vai-se habituando pouco a pouco a ser homem, e compraz-se de exercer desde a origem do mundo o que há de ser no final dos tempos» – Ediscens jam inde a primordio, jam inde hominem, quod futurus in fine. (Lib. II, advers. Marcion., n. 27)
Não imagineis, portanto, cristãos, que Ele tivesse aguardado a sua vinda para dedicar um amor de filho à Virgem Maria. Basta que Ele tivesse resolvido ser homem para se revestir de todos os sentimentos convenientes. E revestindo-se desses sentimentos, pode esquecer os de filho que são os mais naturais e os mais humanos? Não; e tendo, por consequência, amado sempre a Maria como mãe, considerou-a como tal desde o primeiro momento em que ela foi concebida. E sendo assim, cristãos, poderá Ele defrontá-la iracundo? O pecado será compatível com tantas graças, a indignação compatível com o amor, e a inimizade com a aliança? Maria não poderá dizer com o Salmista: In Deo meo transgrediar murum – «Eu passarei por cima da muralha em nome de Deus»? (Sl 17, 42) Porque há uma muralha de separação que o pecado levantou entre Deus e o homem, e que é uma como inimizade natural.
«Mas, diz ela, eu passarei por cima e nela não entrarei. Eu passarei por cima: transgradiar (Transiliam, Hieronymus). E de que maneira? Em nome do meu Deus, desse Deus que, sendo, meu Filho, me pertence por direito muito particular, desse Deus que me consagrou amor domo Mãe desde o primeiro momento da minha vida, desse Deus, cujo amor omnipotente me preservou da cólera que ameaça todos os filhos de Eva»
Eis o que foi operado na Virgem Maria.
Vamos acabar o nosso discurso, depois de termos apresentado uma imagem dessa graça em todos os fiéis, e de havermos também reconhecido que o amor de Deus nos preservou da cólera que nos perseguia, preservando-nos dela ainda todos os dias. Seja esta matéria o fruto de todo este discurso, como sendo a verdade mais importante da religião cristã.
Na verdade, o fundamento do cristianismo está em compreender que não fomos nós que amamos a Deus, mas que foi Deus quem primeiro nos amou, não só antes de o amarmos, mas quando éramos seus inimigos. Esse sangue do Novo Testamento, derramado para remissão dos nossos crimes, é testemunho da verdade que prego. Porque se nós não tivéssemos sido inimigos de Deus, não careceríamos de medianeiro para nos reconciliar com Ele, nem de vítima para aplacar a Sua cólera, nem de sangue para satisfazer a Sua justiça. Por consequência, foi Ele quem primeiro nos amou, dando o seu único Filho por amor de nós. Mas talvez que esta graça se generalize demais, e que a nossa dureza se não sensibilize com ela. Vamos, pois, aos benefícios particulares, por meio dos quais nos preserva o seu amor.
Que diremos da nossa vocação para o Batismo? Havíamos porventura implorado o seu auxílio com algumas preces, para que a Sua misericórdia nos conduzisse às águas salutares onde fomos regenerados ? Não foi Ele, pelo contrário, que se antecipou e quem primeiro nos deu o seu amor? Mas talvez este benefício pareça remoto demais, e a nossa ingratidão já se não recorde dEle. Digamos antes o que todos os dias sentimos. Lembras-te, pecador, da veemência com que corrias para o crime, quando te impressionava a vingança ou o prazer? Quantas vezes te falou Deus ao coração, para te sofrear nesse pendor? Eu não sei se escutaste a Sua voz; mas sei que muitas vezes Ele te falou. Convidava-lo, por acaso, quando dEle fugias? chamava-lo, porventura, quando contra Ele te armavas? E todavia foi Ele quem te procurou pela Sua divina graça. Bateu e chamou; e desta forma não te advertiu e não foi o primeiro a amar-te?
Mas eu vejo outro pecador, fiéis, que não corre para o pecado, porque já, está preso no seu cativeiro. Entrega-se às blasfêmias, às maledicências e à impudicícia. Não respeita a propriedade nem a honra alheia para satisfazer a sua ambição; e só respira amor mundano. Descerá Jesus Cristo a esse abismo? baixará a esse inferno? Outrora desceu Ele aos infernos, mas foi para acudir aos clamores e aos desejos dos profetas, que andavam pela sua vinda. Neste caso, porém, o pecador despreza as suas inspirações, foge dEle e declara-lhe guerra. Apesar disso, Ele vem, aproxima-se, e numa festa, num jubileu, ou em qualquer cerimônia sagrada, faz sentir os seus terrores nessa consciência criminosa, e excita-a interiormente à penitência.
O pecador foge, e Deus persegue-o; permanece insensível, e Deus não .se cansa de lhe descarregar golpes continuamente para acordar essa alma adormecida. Não será isio advertir os homens por um grande excesso de misericórdia?
Mas vós, ó justos, ó filhos de Deus, que amais a vosso Pai, fostes vós quem primeiro o amastes? Não confessais com o Apóstolo (Rm 5, 5), que «a caridade foi derramada em vossos corações pelo Espírito Santo que vos formou»? E far-vos-ia Deus tão belo presente, se antes de o fazer vos não amasse? É, portanto, inegável que é Ele quem nos previne; é Ele quem se antecipa em tudo. Mas, sabei que não nos previne senão com o fim de também o prevenirmos. — Como assim! Isso é possível? – É, fiéis, nós podemos preveni-lo. Escutai o Salmista que nos exorta: «Previnamos à sua presença», diz ele: Praeoccupemas faciem ejus (Sl 95, 2). Que é necessário fazer então para o prevenir? Havendo dois atributos em Deus, respeitantes particular mente aos homens, que são a misericórdia e a justiça, nós não podemos prevenir a misericórdia, porque é ela, pelo contrário, quem sempre nos previne, a fim de que nós previnamos a justiça. Ora tu não deves ignorar, pecador, que os teus crimes te originam tesouros de cólera. Se eles forem escandalosos, Deus justiça-los-á perante todo o mundo; e se estiverem ocultos, perante todo o mundo Deus os há de descobrir. Evita, portanto, essa justa cólera; vinga-os tu, que Ele não às vingará; descobre-os, que Ele não os descobrirá: Praeveniamus fadem ejus in confessione.
Eu sei que a confissão neste lugar quer dizer louvor, isto é, confessar a grandeza de Deus. Mas creio não me afastar do sentido natural, se conseguir acomodá-lo à penitência. E que melhor confissão podemos fazer da grandeza de Deus do que humilhar o pecador e confundi-lo na sua presença? Confundamo-nos; portanto, à face de Deus, fiéis, antes que Ele nos confunda nesse dia terrível. Evitemos a sua justa ira pela confissão dos nossos crimes. Desçamos ao imo das nossas consciências, onde se acolheram os nossos inimigos. Desçamos lá com o facho numa das mãos e o gladio na outa: o facho para fazer uma busca rigorosa dos nossos pecados, e o gladio para os extirpar dolorosamente. É assim que conseguiremos evitar a cólera desse Deus omnipotente, cuja misericórdia nos preservou.
Ó Maria, milagrosamente exceptuada, singularmente separada, e preservada misericordiosamente, valei às nossas fraquezas, com as vossas súplicas; e fazei com que, por meio da penitência, nos preservemos da vingança que nos persegue, alcançando-nos à graça de sermos depois recebidos nesse reino de paz eterna, em companhia do Pai, do Filho e do Espírito Santo.
Autores a consultar: Fléchier, Bourdaloue, Massillon, L. de Granada, Girard, Lejeune, Dupanloup, Pio IX, Lettra apostolica, Card. Pie, Plantier, e o Pe. de Ravignan.
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(BOSSUET, Jacques-Bénigne. Sermões de Bossuet, Volume I. Tradução de Manuel de Mello. Casa Editora de Antonio Figueirinhas 1909 – Porto, 1909, Tomo I, p. 371-395)