“Por que é que suas mãos estão cheias de giz?”, disse o professor a Carlos.
“Pus em ordem minha mochila; estava lá dentro um pedaço de giz todo esfacelado; e o resultado foi este”.
“Você não imagina que maravilha havia de ver se observasse no microscópio um pedacinho de giz natural, por exemplo da costa de Dover! Um pó constituído de inumeráveis conchinhas de animaizinhos que já não existem hoje. As rochas brancas de Dover são formadas de bilhões de casinhas de animalejos que viviam há centenas de milhares de anos”.
“Ah, conte-nos hoje de novo alguma coisa”, pediu Carlos, “ontem estava tão bonito! Sim?”
Os demais associaram-se impetuosamente ao pedido de Carlos e o professor teve de ceder.
“Está bem, rapazes. Contudo, hoje não lhes quero falar dos astros imensos, mas de seres invisíveis, minúsculos, lembrados pelo giz de Carlos. Esses diminutos seres produzem-me impressão ainda maior do que os gigantes do céu. Extasiados contemplamos a obra de arte do corpo humano ou animal, bem como admiramos as maravilhas do firmamento. Quanto mais maravilhoso, porém, é encontrar aglomerados todos os órgãos vitais, esqueleto, veias, nervos, músculos, coração, olhos, etc., num animalzinho invisível à vista desarmada! O naturalista tem que emudecer ante o Espírito superior, capaz de resolver, nesses seres imensamente pequenos, os problemas da vitalidade.
Tenho justamente comigo um livro de Gardini. Carlos lhes lerá algumas páginas que falam desses seres misteriosos”.
Os rapazes se ajeitaram à volta de Carlos, que começou:
“Roda e rodinha. Interessante é a população animal da fonte térmica de Erlau. As águas formam um pequeno lago, cujo fundo está cheio de plantas aquáticas, mantendo-se a temperatura uniforme, no verão e no inverno. A fonte é tão possante que a água, ao escoar-se, move um moinho. Ninguém, até hoje, pesquisou, a flora e a fauna do solo do tanque, embora — notemo-lo de passagem — estas águas refutem a afirmação que os anfíbios, por lei da natureza, sempre dormem no inverno. As rãs dessas águas térmicas o desmentem. Coaxam, mesmo no inverno, alegre e livremente! Quando passei pela fonte introduzi minha bengala até o fundo. Remexi um pouco, e na ponta ficou pegado um nadinha de lama esverdeada. Pus a lama num pedacinho de papel e levei-a para casa. Lá chegado, tomei uma pequena quantidade, do tamanho duma cabeça de alfinete, e coloquei-a debaixo do microscópio. Experimentei com ampliação de 5O vezes… Vi algo como um macegal cor de musgo, onde esperneava um bichinho minúsculo.
Que será? Com um movimento elevo a ampliação para 5OO vezes o macegal se transforma em floresta. As árvores verdes e ramificadas são transparentes. Num céu brilhante uma floresta esmeraldina! Lá dentro volteiam, à vontade, animalejos de cor quase vítrea e lentiformes. Não têm pernas. Em cima duma árvore um animal cinzento, também transparente, parecido com pirilampo. Pernas não tem, isto é, sim, tem, agora vejo, mas é uma só, assim como uma lâmpada. Por meio desta única perna ele se segura num galho grosso e gira, furibundo, uma grande roda em volta da cabeça.
Que monstro é esse? A roda é uma verdadeira roda, tanto que a quando e quando, gira mais devagar, podendo-se ver seus raios. No entanto, ela faz com o animal um todo único. Com mil bombas! Por que trabalha agora tão ativamente? Ah! Percebo, está tocando a pequena caça aquática para suas fauces. Ele tem a roda na cabeça. No centro dela, a boca. Em rápido remoinho, a água penetra pela roda e sai pelo lado do animal. O que vem com o líquido fica lá dentro… Entrementes, vejo seu coração a latejar fortemente, talvez cem vezes mais rápido do que o nosso, ou mais ainda. Vejo como o animalzinho trazido pela água é esmagado e lá se vai para o estômago do monstro. Observo ainda como os pequenos olhos vermelhos fixam, com cobiça felina os animaizinhos suspensos na água em derredor. Ai daquele que penetrar na correnteza! Quantos ainda comerá? Muitos, a julgar pela sofreguidão. Depois, tendo-se esforçado inutilmente durante minutos, recolhe sua roda, exatamente como faz a lesma com as antenas, mas instantaneamente. Passado algum tempo, repentinamente abre-se de novo. A roda recomeça a funcionar, como se alguém girasse um guarda-chuva virado, acima da cabeça.
Animal maravilhoso achei! Ora, ora! Os sábios são gente conscienciosa. Um livro científico me explica de pronto que travei conhecimento com um ‘rotador ou rotífero’. E o sábio não conhece somente uma, se não 4OO espécies diferentes deste animalejo! Descreve-os até às minúcias, até a última verruga… E eu que pensava ter descoberto uma novidade! O descobridor caiu na água. Pelo menos tenho a satisfação de haver travado conhecimento com esse estranho camarada. Quanta gente, fica velha como Matusalém sem chegar a saber da existência do rotífero! Continuo a ler no livro, que me explica imediatamente ser uma pequena franja, formada de pelos aquilo que eu tinha, tomado por uma roda. Não, é, pois, uma roda, só o parece, como se um rapaz voltasse uma régua atada a um barbante, acima de sua cabeça. Aqui, porém, seriam muitas réguas.
Neste ponto largo o livro. É como se, por uma fenda, eu caísse num mundo novo. Inclino-me de novo sobre o microscópio e considero o monstro com sua cabeça de roda. É um tirano terrível. O povinho brilhante e lentiforme tumultua assustado na frente dele e se reúne em grupos em local afastado, onde não há perigo. Quisera contá-los! Impossível. Agitam-se como um enxame de abelhas. E essa multidão de animalejos, tanta vida, se move numa gota d’água comprimida, do tamanho duma cabeça de alfinete… As duas chapas de vidro, entre as quais pus a gota, ajustam-se tão fortemente, que entre elas não há lugar para um fio de cabelo o mais delgado que seja, mas para esses animálculos é tão grande espaço, que eles podem saltar, dançar, girar à vontade, e aparentemente de bom humor. Ali ao lado, na mata t verde, o rotífero, o dragão da gota d’água, vinte vezes maior, volteia sua roda, e com apetite insaciável remoinha as águas para seu estômago. Quanta vida! Que luta sem tréguas pela vida, pelo pão de cada dia! De permeio, todavia, há também trabalho e brinquedo, cuidados e alegria, perseguição e fuga, diversos interesses pessoais, num mundo não maior do que o ponto de um i.
Tudo isto nos sugere esse divertir-se das amebas lentiformes, num lago minúsculo com um ponto! Contudo, a pequena paisagem apenas parte de um mundo muito maior, que ainda podemos medir de leste para oeste do zende ao nadir. Pois, se numa gota d’água como uma cabeça de alfinete existe tanta vida, quanta não haverá no tanque?! Observo-os. Terão juízo esses seres? Acerca de si mesmos devem saber alguma coisa. O rotador sabe, com certeza, por sua roda! Como as amebas se sentem abrigadas acolá! Como brincam! Quando estacionam numa clareira, umas 25a 3O flutuam, umas em voltas das outras, como alunos de colégio em recreio. Uma foge de repente, e todas acompanham, nadam aos grupos, volteiam como andorinhas. Às vezes alguma escolhe uma companheira e brincam de pegar. Por que é que uma pega a outra? Estão com vontade de brincar? Mas, então, têm juízo? O bom humor é qualidade própria da alma… Entrementes, o gigante ao lado trabalha afanosamente e com sua roda. Como é que uma entende a outra? Como se comunicam? Será com os olhos, como o cão? Por gestos, como a formiga? Com a boca, como o homem? E se pensarem, que pensarão deste mundo? Certamente pensam que a fonte de Erlau é o mundo. Talvez digam mesmo: Isso é o infinito. Sabe o rotador que ele está agora debaixo do microscópio? Se o soubesse não se esfalfaria, mas cheio de espanto, aguardaria a hora da morte. Não, ele não tem noção do limite do seu mundo. Mesmo este lhe é ainda infinito. Alegre continua a girar sua roda: vivo como quero! A mim ele não vê. Não sabe que também existo. Nem poderia ver-me, porque, ao lado de sua pequenez, é tão gigantesco meu tamanho, que não me poderia abranger com seu olhar, assim como o besouro, ao pé do Chimborazo, não vê a montanha.
E se alguém dissesse: Escute, meu caro, você não é tão grande como julgam. Há seres que não vivem na água, e que, em comparação com você são tão grandes que você não poderia abranger, nem com um binóculo, nem mesmo um dos seus cílios… O pequeno monstro havia de sorrir e talvez respondesse; como você é gaiato meu amigo!…
Quando considero o firmamento, enleva-me esta partícula do infinito acima de minha cabeça. Como é grande nosso Deus que soube criar esses globos enormes a rolar pelo espaço! Mas agora que observo este ser minúsculo, fico pasmado ante novo infinito. Como é grande o Deus do universo que soube criar tal pequenez e dotar essas vidas ínfimas de coração, veias, nervos, músculos, um conduto que sai do cérebro atravessa o corpo e volta. O aparelho rotativo! O instinto que põe esse mecanismo a funcionar e fá-lo parar. Ri-me da paisagem da gota d’água em que vagueia aquele povinho, que pensa talvez: Isto é o mundo, fora dele nada existe! E nosso mundo terrestre? Qual sábio, que cientista me pode provar irrefutavelmente, que também este mundo do homem, com sua terra, sol, lua e estrelas, não é, do mesmo modo uma gota d’água no infinito, como o é esta gota no microscópio? Estes habitantes, as amebas, não conhecem outro mundo; e eu também não conheço outro fora do nosso planeta. O mundo delas é uma gota num tanque, o meu é uma gota do fogo solar. Uma gota incandescente do Sol, já esfriada, chama-se Terra. Sei apenas que tudo gira em volta duma estrela principal. Que é que existe além de seus limites? O rotífero encolhe os ombros: ‘Além do meu mundo? Nada’. E nós, grandes rotíferos, não dizemos também: ‘Além do mundo está o espaço?’, isto é, o nada. Os positivistas dizem: ‘Só é certo, aquilo que vemos”. Ora, o rotífero não tem razão! Comte, o pai do positivismo, não tem razão, tão pouco!
E nós, amebas com rosto humano, não podemos, também nós, ser observados por um ser superior, como são observados o rotador e o pequeno povo das amebas, debaixo do meu microscópio? Quem introduziu vida e movimento nas dimensões incomensuráveis e dos espaços infinitamente pequenos da gota d’água, sabe o que fez e porque o fez. Diante dele, nosso olhar tem a mesma justificativa e o mesmo direito que a calma positiva do rotífero em relação a mim. Olho somente para baixo de mim. O que está acima, os globos do universo, os sóis, as miríades de estrelas, são para mim nada mais do que faiscantes luzes celestes. Nos vales e montes dos astros, meu olhar já não pode penetrar. É possível que o rotador, igual a mim, olhe para baixo e divise seres minúsculos, como eu o enxergo a ele, e repute o seu mundo tão gigantesco como eu o meu. Uma coisa, porém, não sabemos, nem eu nem ele, onde se acha o último limite na pequenez da vida, e no lado oposto, na grandeza da vida. Onde termina o ‘ser’ e onde começa o ‘nada’. De que modo o esplêndido, grandioso, vivo, inumerável ‘ser’ surgiu do inerte, frio, tenebroso e imenso ‘nada’…
Quem foi o que conseguiu construir dentro desse ‘nada’ sem margens sem fundo, este ‘Perpetuum Mobile‘ magnífico, que se move silenciosamente e cujo nome é ‘universo’? Quem colocou no peito humano, como na invisível ameba, o harmonioso aparelho que bem poderíamos chamar também de ‘universo’?”
Carlos fechou o livro e o professor começou:
“Então, não foi interessante, rapazes? Agora vocês compreendem quanta razão tinha o naturalista que afirmava: Se não houvesse no mundo senão uma única borboleta, por meio da asa desse inseto, poder-se-ia provar a sabedoria de Deus. Entretanto, não existe apenas uma asa de borboleta no mundo; Toda a vida em derredor está cheia de misteriosas realidades. Para vê-las, basta atravessar a vida com os olhos abertos. O biólogo Vito Graber escreve a respeito do movimento das amebas, devemos confessar que é um fato mui singular e se quisermos externar toda a verdade, devemos dizer que o movimento das partículas de protoplasma das amebas é mais difícil de compreender do que o curso dos astros. E vocês sabem que há seres ainda menores? Tão pequenos que, nem Gardoni nem qualquer outro os viu jamais. Mesmo com o mais potente microscópio não são perceptíveis, e por isso são chamadas bactérias ultramicroscópicas. Como será a vida nesses organismos incrivelmente minúsculos? Se considerarmos assim o mundo ao redor de nós, nosso coração deve elevar-se ao Criador, ao Criador do máximo e do mínimo ser”.
“Como é interessante!”, observou Francisco. “Agora vejo, que grande erro é afirmar, que o contato e conhecimento mais perfeitos da natureza tornam o homem incrédulo! Muito pelo contrário! Nosso coração fica emocionado, sempre que se manifesta a sabedoria de Deus nessas minúcias. Basta olhar e escutar, de toda a parte ouvimos Deus a falar-nos”.
“Você tem toda a razão. Um grande matemático e físico disse certa vez: ‘Estuda as coisas da natureza, teu ofício o requer, mas observa-as somente com um olho; o outro esteja sempre voltado para a Luz Eterna. Escuta os sábios; no entanto, só com um ouvido; o outro esteja atento à voz potente do Criador. Escreve apenas com uma das mãos; com a outra agarra-te, como a criança, ao manto do Pai…’ enfim, assim se externava o grande naturalista Humboldt (fal. em 1859): ‘O fim e o resultado de todas as ciências naturais é obrigar-nos a entoar com os anjos, o hino do louvor: Gloria in excelsis Deo‘”.
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(TOTH, Monsenhor Tihamer. Na linda natureza de Deus. Editora S. C. J., 1945, p. 27-35)