Capítulo X
Só nele há salvação.
1. “Não há salvação em nenhum outro” (At 4,12). São Pedro diz que toda a nossa salvação está em Jesus Cristo, que por meio de sua cruz, na qual sacrificou por nós sua vida, nos abriu o caminho da esperança de recebermos todos os bens de Deus, se formos fiéis a seus preceitos. Ouçamos o que diz da cruz São João Crisóstomo:
“A cruz é a esperança dos cristãos, o arrimo dos coxos, a consolação dos pobres, a destruição dos soberbos, o triunfo sobre os demônios, a mestra dos jovens, o leme dos navegantes, o porto para os que estão em perigo, a conselheira dos justos, o descanso dos atribulados, o médico dos enfermos, a glória os mártires” (Hom. de cruc. t. 3).
A cruz, isto é, Jesus crucificado, é a esperança dos fiéis, porque, se não tivéssemos Jesus Cristo, não haveria salvação para nós, é o arrimo para os coxos, nós todos somos coxos no atual estado de corrupção e, fora da força que nos comunica a graça de Jesus Cristo, não temos outro para trilhar o caminho da salvação; é a consolação dos pobres, isto é, de nós todos, pois tudo o que temos o temos de Jesus Cristo; é a destruição dos soberbos, já que os sequazes de Jesus Cristo não podem ser soberbos vendo-o morto, qual malfeitor, na cruz; é o triunfo sobre os demônios, pois só o sinal da cruz basta para afugentá-los; é a mestra dos principiantes: que belos ensinamentos não dá a cruz àqueles que começam a palmilhar o caminho da salvação; é o lema dos navegantes: oh! como a cruz nos guia nas tempestades da vida presente: é o porto dos que perigam: os que se acham em perigo de perder-se pelas tentações ou fortes paixões encontram um porto seguro recorrendo à cruz; é conselheira dos justos: quantos santos conselhos não dá a cruz nas tribulações da vida; é o repouso para os aflitos: que coisa poderá aliviar mais os atribulados do que contemplar a cruz em que padece um Deus por seu amor? É o médico dos enfermos, que, abraçando a cruz, ficam curados de todas as chagas da alma; é a glória dos mártires, pois sua maior glória consistia em se tornarem semelhantes a Jesus Cristo, rei dos mártires.
2. Em suma, todas as nossas esperanças estão postas nos merecimentos de Jesus Cristo. Dizia o Apóstolo:
“Sei passar privações, sei também viver na abundância (fui instruído em tudo e por tudo), tanto estar em fartura, como suportar miséria; ter de sobra como curtir penúria. Tudo posso naquele que me conforta” (Fl 4,12-13).
Assim São Paulo, tendo aprendido do Senhor, afirmava: Eu sei como devo me portar: quando Deus me humilha, devo resignar-me ao seu querer; quando me exalta, sei render-lhe toda a honra; quando me faz passar por abundância, eu lhe sou grato; quando me faz sofrer penúria, eu o bendigo; tudo isso, porém, não faço por minha virtude, mas pelo auxílio da graça que Deus me dá: Tudo posso, mas naquele que me conforta. No texto grego, em vez das palavras: naquele que me conforta, está: no Cristo que me corrobora; quem desconfia de si e confia em Jesus é por ele munido de uma força invencível. “O Senhor torna todo poderosos os que nele põem sua confiança”, diz São Bernardo (Serm. 85 in Cant.). “Uma alma que não presume de suas forças, mas é confortada por Jesus Cristo, poderá se tornar senhora de si de tal maneira que nenhum pecado a dominará. Não há força, nem fraude, nem prazer algum que possa abater quem se apoia no Verbo divino”, conclui o mesmo santo.
Virtude de Cristo em nós.
1. O apóstolo suplicou três vezes ao Senhor que o livrasse de um aguilhão impuro que o molestava e recebeu a resposta:
“Basta-te a minha graça, pois a virtude se completa na fraqueza” (2Cor 12,9).
Como se explica que a virtude se aperfeiçoa na fraqueza? Santo Tomás com São João Crisóstomo explica que, quanto maior é a fraqueza e inclinação para o mal, tanto maior força Deus comunica a quem nele confia. Por isso, São Paulo no lugar citado diz:
“De boa vontade gloriar-me-ei nas minhas enfermidades, para que a virtude de Cristo habite em mim. Por isso é que me comprazo nas minhas enfermidades, nas afrontas, nas necessidades, nas perseguições, nas angústias pelo Cristo, porque quando estou enfermo então é que estou forte” (2Cor 12,10).
“Porque a palavra da cruz é loucura para os que se perdem, mas para os que se salvam, isto é, para nós, é a força de Deus” (1Cor 1,18).
São Paulo nos adverte a não seguir os mundanos, que põem sua confiança nas riquezas ou em seus parentes e amigos do mundo e julgam loucos os santos por desprezarem esses esteios terrenos. Os homens de bem depositam toda a sua confiança no amor da cruz, isto é, de Jesus crucificado, que concede todos os bens a quem nele confia.
2. Note-se também que o poder e força do mundo são mui diversos dos de Deus: aquele se adquire por meio das riquezas e honras mundanas; este, pela humildade e tolerância. Santo Agostinho diz que nossa força está no reconhecimento de nossa fraqueza e na confissão humilde de nossas misérias (De grat. Chr. c. 12). E São Jerônimo diz que toda a perfeição da vida presente consiste em nos reconhecermos imperfeitos (Ep. ad Ctesiph.). Sim, porque, quando nós nos reconhecemos imperfeitos como o somos, então, desconfiando das nossas forças, abandonamo-nos nos braços de Deus, que protege e salva os que nele confiam.
“Ele é o protetor de todos os que esperam nele” (Sl 17,31).
“Vós salvais os que esperam em vós” (Sl 16,7).
Davi ajunta que quem confia no Senhor torna-se firme como um monte, que não se abala com todos os esforços de seus inimigos:
“Quem confia no Senhor, como o monte Sião não será abalado eternamente” (Sl 134,1).
Santo Agostinho nos admoesta que nos perigos de pecar, quando tentados, devemos recorrer e nos abandonar a Jesus Cristo, que não se afastará deixando-nos cair, antes nos tomará nos braços para sustentar-nos e assim remediar a nossa fraqueza (Conf. 1. 8 c. 11).
Jesus Cristo, tomando sobre si as fraquezas de nossa humanidade, nos mereceu uma força que supera toda a nossa fraqueza. São Paulo diz:
“Por isso que ele mesmo padeceu e foi tentado, pode auxiliar os que são tentados” (Hb 2,18).
Como se explica que o Salvador, por ter sido tentado, pode nos socorrer nas nossas tentações? Explica-se por que Jesus, tendo sido atormentado pelas tentações, tornou-se mais propenso a compadecer-se de nós e auxiliar-nos quando tentados. A este corresponde aquele outro texto de São Paulo:
“Não temos um pontífice que se não possa compadecer das nossas fraquezas, mas um experimentado à nossa semelhança em tudo, com exceção do pecado” (Hb 4,15).
Por isso o Apóstolo exorta-nos a que recorramos com confiança ao trono da graça que é a cruz, para recebermos do crucifixo as graças que desejamos:
“Cheguemo-nos com confiança ao trono da graça, para obtermos misericórdia e encontrarmos a graça no momento oportuno” (Hb 4,16).
A fraqueza de Cristo é nossa força.
1. Jesus, sujeitando-se a padecer temores, tédio e tristeza, segundo os Evangelhos, quando falam das aflições que padeceu, especialmente na véspera de sua morte no jardim de Getsêmani (Mt 26,37), nos mereceu a coragem para resistir às ameaças daqueles que querem nos perverter, a força para vencer o tédio que experimentamos na oração, nas mortificações e outros atos de piedade, e o ânimo para suportar com paciência a tristeza que nos invade nas adversidades. Sabemos também que ele no horto, à vista de tantas dores e da morte desolada que o esperavam, quis sofrer tão grande fraqueza na sua humanidade, que afirmou:
“O espírito está pronto, mas a carne é fraca” (Mt 24,41).
E pediu a seu divino Pai que, se fosse possível, o livrasse daquele tormento:
“Pai, se for possível, que este cálice passe de mim. Todavia não seja como eu quero e sim como vós quereis” (Mt 26,39).
E durante todo o tempo que se demorou no horto a rezar, repetiu sempre a mesma súplica:
“Faça-se a vossa vontade…e orou terceira vez, repetindo as mesmas palavras” (Mt 26,44).
Jesus, com aquele fiat, nos mereceu e obteve então a resignação em todas as coisas contrárias e alcançou aos mártires e aos confessores a força de resistir a todas as perseguições e tormentos dos tiranos: “Esta palavra (fiat) abrasou todos os confessores e coroou todos os mártires”, escreve São Leão (Serm. 7 de pass. c. 5). Da mesma forma pela mágoa de nossos pecados, que lhe ocasionou uma tão atroz agonia no horto, Jesus nos mereceu a contrição de nossas culpas. Pelo abandono do Pai, que suportou na cruz, mereceu-nos a força de não perdermos o ânimo nas desolações e trevas de espírito. Com o inclinar a cabeça, ao expirar na cruz, para obedecer à vontade de seu Pai, mereceu-nos todas as vitórias que obtemos contra as paixões e as tentações, a paciência nos sofrimentos da vida e particularmente nas amarguras e angústias da morte.
2. Escreve São Leão que Jesus veio se revestir de nossas enfermidades e angústias para nos comunicar sua virtude e constância (Serm. 3 c. 4). E São Paulo:
“E conquanto fosse o Filho de Deus, aprendeu a obediência pelas coisas que sofreu” (Hb 5,8).
Isso não quer dizer que Jesus na sua paixão tivesse aprendido a virtude da obediência, até então ignorada por ele, mas que ele aprendeu pela experiência quão dura era a morte a que se sujeitara para obedecer a seu Pai, conforme explica Santo Anselmo. Experimentou igualmente quão grande é o mérito da obediência, tendo obtido por meio dela o sumo grau de glória para si, qual o de assentar-se à direita do Pai, e para nós a salvação eterna. E conclui o Apóstolo.
“E, consumado, fez-se para todos os que obedecem a causa da salvação eterna” (Hb 5,9).
Disse consumado, porque, tendo perfeitamente executado a obediência, sofrendo com paciência toda a sua paixão, fez-se, para todos que lhe obedecem no sofrer pacientemente os trabalhos da vida presente, causa da Salvação eterna.
Nada poderá me separar do amor de Jesus.
1. Esta paciência de Jesus Cristo animou e encorajou os santos mártires para abraçar com paciência os mais atrozes tormentos que a crueldade dos tiranos soube inventar e não somente com paciência, mas até com alegria e desejo de padecer ainda mais por amor de Jesus Cristo. Leia-se a célebre carta que Santo Inácio mártir, já condenado às feras, escreveu aos Romanos antes de chegar ao lugar de seu martírio:
“Permiti, filhinhos, que eu seja triturado pelos dentes das feras para que seja encontrado como frumento de meu Redentor. Eu não busco outro senão aquele que morreu por mim. Ele, que é o único objeto de meu amor, foi crucificado por mim, e o amor que eu lhe dedico faz-me desejar ser crucificado por ele”.
São Leão escreve do mártir São Lourenço que, enquanto ele estava na grelha, era menos ardente o fogo que o queimava exteriormente que aquele que o consumia interiormente. Escrevem Eusébio e Paládio que Santa Potamiana, virgem de Alexandria, foi condenada a ser lançada em uma caldeira de pez fervente. A santa, a fim de mais sofrer por amor de seu esposo crucificado, pediu ao tirano que a introduzissem aos poucos na caldeira, para que a morte se tornasse mais dolorosa. E foi atendida, pois começaram a metê-la no pez pelos pés, de maneira que suportou durante três horas esse tormento, só morrendo quando o pez atingiu o seu pescoço. Eis aí a paciência e a fortaleza que receberam os mártires da paixão de Jesus Cristo.
2. Esta coragem que o crucifixo infunde naquele que o ama fazia o apóstolo dizer:
“Quem, pois, nos há de separar da caridade de Cristo? A tribulação, a angústia, a fome, a nudez, o perigo, a perseguição, a espada?” (Rm 8,35).
E afirma ao mesmo tempo que esperava superar tudo na virtude e pelo amor de Jesus Cristo.
“Mas em tudo isso saímos vencedores por aquele que nos amou” (8,37).
O amor dos mártires para com Jesus era invencível porque recebiam a força do invencível que os confortava nos sofrimentos. E não pensemos que os tormentos perdiam, por milagre, a propriedade de afligir, ou então que as consolações espirituais absorviam a dor dos tormentos: isso deu-se uma ou outra vez, mas ordinariamente os mártires bem sentiam as dores e muitos por fraqueza cederam às torturas; os que sofreram com constância sofreram-no exclusivamente pelo dom de Deus, que lhes subministrava um tal vigor.
Objeto primário de nossa esperança é a bem-aventurança eterna, isto é, o gozo de Deus — fruitio Dei — como ensina Santo Tomás; todos os outros meios, pois, para se alcançar a salvação, que consiste nesse gozo de Deus, como o perdão dos pecados, a perseverança final divina, a boa morte, não devemos esperar de nossas forças nem de nossos propósitos, mas somente dos merecimentos e da graça de Jesus Cristo. Para que seja, pois, firme a nossa confiança, devemos crer com certeza infalível que a aquisição de todos esses meios de salvação depende unicamente dos merecimentos de Jesus Cristo.
De Jesus Cristo devemos esperar o perdão de nossos pecados
Propiciação por nossos pecados.
1. Falando primeiramente da remissão dos pecados, devemos saber que nosso Redentor, vindo à terra, teve por fim o perdão de nossos pecados.
“O Filho do homem veio para salvar o que se havia perdido” (Mt 18,11).
João Batista, mostrando aos judeus o Messias já vindo, disse-lhes:
“Eis o Cordeiro de Deus, eis o que tira os pecados do mundo” (Jo 1,29).
Segundo o texto grego lê-se: Eis aquele cordeiro, como se São João dissesse: Eis aquele cordeiro divino predito por Isaías: “E como um cordeiro que fica mudo diante do que o tosquia” (Is 53,7) e por Jeremias: “Eu sou como um manso cordeiro que é levado para o sacrifício” (Jr 11,19). Já antes, era figurado pelo cordeiro pascal de Moisés e pelo sacrifício em que era, conforme a lei, todas as manhãs imolado um cordeiro, e por diversos outros que eram oferecidos à tarde pelos pecados. Todos esses cordeiros, porém, não podiam abolir um único pecado, só serviam para representar o sacrifício daquele cordeiro divino Jesus Cristo, que com seu sangue deveria lavar as nossas almas e livrá-las da mancha da culpa como da pena eterna por ela merecida — o que exprime a palavra tollit — tomando sobre si a obrigação de satisfazer à divina justiça por nós, com sua morte, segundo o testemunho de Isaías:
“Deus carregou sobre ele as iniqüidades de todos nós” (Is 53,6).
Em confirmação, diz São Cirilo: “um é trucidado por todos, para ganhar para Deus Padre todo o gênero humano”. Jesus quis deixar-se matar para ganhar para Deus todos os homens que se haviam perdido. Quão grande é a nossa obrigação para com Jesus Cristo. Se de um réu já condenado à morte, enquanto se dirige para a forca e com o laço já no pescoço, lhe tirasse um amigo o laço e o aplicasse a si mesmo, morrendo nesse suplício para livrar o réu, quanta obrigação não teria este de amá-lo e lhe ser reconhecido? Isso foi justamente o que fez Jesus; quis morrer na cruz para nos livrar da morte eterna.
2. “Foi ele que levou os nossos pecados em seu corpo sobre o madeiro, a fim de que, mortos para os pecados, vivamos para a justiça; por cujas chagas fostes curados” (1Pd 2,24). Jesus, pois, se sobrecarregou de todos os nossos pecados e os levou sobre a cruz, para com a morte pagar nossa culpa e obter-nos o perdão e assim restituir-nos a vida perdida. Que maior maravilha poderá haver que uma chagas curem as chagas de outros e a morte de um restitua a vida a todos os homens que estavam mortos! exclama São Boaventura (Stim. p.1 c. 1). São Paulo escreve que Jesus Cristo nos tornou agradáveis e amáveis aos olhos de Deus, de pecadores odiados e abomináveis que éramos, pelos méritos de seu sangue nos remitiu os pecados e nos concedeu com superabundância as riquezas de sua graça:
“Tornou-nos agradáveis em seu Filho amado, em quem temos a redenção pelo seu sangue, a remissão dos pecados segundo as riquezas de sua graça, a qual superabundou em nós” (Ef 1,6-8).
E isso se deu pelo pacto de Jesus com seu eterno Pai de nos perdoar as culpas e nos readmitir na sua amizade em vista da paixão e morte de seu Filho.
Mediador do Novo Testamento.
1. Foi nesse sentido que o Apóstolo chamou Jesus Cristo mediador do Novo Testamento. Nas Sagradas Escrituras a expressão testamento se toma em dois sentidos: por pacto ou acordo feito entre duas partes que estão em discórdia e por promessa ou disposição da última vontade, pela qual o testador deixa sua herança aos herdeiros: esta disposição não se torna, porém, firme senão com a morte do testador. Do testamento como promessa se fala no § III; aqui falamos do testamento como pacto e neste sentido falou o apóstolo de Jesus Cristo:
“E por isso é o mediador do Novo Testamento” (Hb 9,15).
O homem por motivos do pecado era devedor à justiça divina e inimigo de Deus. Vem à terra o Filho de Deus e assume carne humana e então, sendo ele ao mesmo tempo Deus e homem, fez-se o mediador entre o homem e Deus, participando de um e de outro, e, a fim de estabelecer a paz entre ambos e obter para o homem a graça de Deus, ofereceu-se para pagar com seu sangue e com sua morte a dívida do homem. Ora, esta reconciliação já foi figurada no Antigo Testamento por todos os sacrifícios que então se ofereciam e por todos os símbolos ordenados por Deus, como o tabernáculo, o altar, o véu, o candelabro, o turíbulo e a arca na qual se guardavam a vara e as tábuas da lei: Todos esses objetos eram sinais e figuras da redenção prometida, e porque essa redenção devia ser efetivada pelo sangue de Jesus, por isso Deus ordenou que os sacrifícios se fizessem com a efusão de sangue dos animais (que era a figura do sangue daquele cordeiro divino) e que todos esses símbolos mencionados fossem aspergidos com sangue.
“Por isso é que nem mesmo o primeiro (testamento) foi consagrado sem sangue” (Hb 9,18).
2. Segundo São Paulo, o primeiro testamento, isto é, a primeira aliança, pacto ou mediação que se fez na lei antiga e que figurava a mediação de Jesus na nova lei, celebrou-se com o sangue dos touros e bodes, sendo aspergidos com esse sangue o livro, o povo, o tabernáculo e todos os vasos sagrados: “Lido que foi todo o mandamento da lei a todo o povo, Moisés, tomando sangue dos bezerros e dos bodes com água e lã tinta de escarlate (a lã tinta de escarlate significava igualmente Jesus Cristo; assim como a lã por sua natureza é branca e torna-se vermelha sendo tingida de escarlate, também Jesus, o cândido por sua inocência e natureza, aparece na cruz vermelho de sangue, justiçado como malfeitor, cumprindo-se nele a palavra da esposa dos Cânticos: “O meu amado é cândido e vermelho” (Ct 5,10); e hissopo (o hissopo, planta humilde, significa a humildade de Jesus Cristo) aspergiu todo o povo e também o mesmo livro, dizendo:
“Este é o sangue do testamento que Deus ordenou para vós. Aspergiu igualmente o tabernáculo e todos os vasos do culto com o sangue. E segundo a lei, quase tudo se purifica com o sangue e sem efusão de sangue não há remissão” (Hb 9,19-22).
Quis o Apóstolo repetir mais vezes a palavra sangue, para que os judeus e todos os povos entendessem que sem o sangue de Jesus não há esperança de perdão para as nossas culpas. Assim, pois, como na antiga lei, pelo sangue das vítimas, se destruía a mancha externa dos pecados que os judeus cometiam contra a lei e lhes era perdoada a pena temporal imposta pela mesma lei, da mesma forma o sangue de Jesus Cristo na nova lei nos lava da mancha interna das culpas, segundo a palavra de São João: “Ele nos amou e nos lavou no seu sangue” (Ap 1,5) e nos livra da pena eterna do inferno.
Nosso sumo sacerdote.
1. Eis a esse respeito a doutrina de São Paulo:
“Porém Cristo, vindo como pontífice dos bens futuros por um mais vasto e perfeito tabernáculo, não feito por mão de homem, isto é, não desta criação, nem como o sangue dos bodes ou de novilhos, mas com o próprio sangue, entrou no santuário uma vez, obtendo uma redenção eterna” (Hb 9,11 e 12).
O pontífice entrava pelo tabernáculo no Santo dos santos e com a aspersão do sangue dos animais purificava os delinqüentes da mancha externa contraída e da pena temporal. Para a remissão da culpa e para a libertação da pena eterna os hebreus tinham necessidade absoluta da contrição com fé e esperança no Messias vindouro, que deveria dar a vida para obter-lhes o perdão. Jesus Cristo, ao contrário, por meio de seu corpo (e este é o tabernáculo mais amplo e mais perfeito indicado pelo apóstolo) sacrificado sobre a cruz, entrou no Santo dos santos do céu, que nos estava fechado, e no-lo abriu por meio da redenção. Por isso S. Paulo, para nos animar a esperar o perdão de todas as nossas culpas, confiando no sangue de Jesus, continua:
“Pois se o sangue dos bodes e dos touros e a aspersão da cinza da novilha santifica os maculados, para a purificação da carne, quanto mais o sangue de Cristo, que pelo Espírito Santo se ofereceu a si mesmo, sem mácula, a Deus, purificará a nossa consciência das obras mortas para servir ao Deus vivo” (Hb 9,13 e 14).
Diz quanto mais o sangue de Cristo que pelo Espírito Santo se ofereceu a si mesmo sem mácula, a Deus, porque Jesus se ofereceu a si mesmo a Deus, imaculado, sem sombra de culpa; doutra forma não teria sido digno mediador, apto a reconciliar o homem pecador com Deus, nem o seu sangue teria tido a virtude de purificar a nossa consciência das obras mortas, a saber, dos pecados, obras mortas sem merecimento e obras de morte dignas das penas eternas; para servir ao Deus vivo: o fim por que Deus nos perdoa é unicamente para que empreguemos a vida que nos resta em servi-lo. E o Apóstolo conclui:
“E por isso é o mediador do Novo Testamento” (Hb 9,15).
Quis o nosso Redentor, pelo amor imenso que nos tinha, resgatar-nos da morte eterna com o preço de seu sangue e assim obter-nos de Deus o perdão, a graça e a felicidade eterna se formos fiéis em servi-lo até à morte. Foi essa a mediação ou o contrato feito entre Jesus Cristo e Deus, em vigor do qual nos foi prometido o perdão e a salvação.
2. Esta promessa do perdão de nossos pecados pelos merecimentos do sangue de Jesus Cristo foi confirmada pelo próprio Jesus no dia anterior à sua morte, ao insistir o sacramento da eucaristia:
“Este é, pois, o meu sangue do Novo Testamento que será derramado por muitos em remissão dos pecados” (Mt 26,28).
Disse: será derramado, pois estava próximo o sacrifício no qual devia derramar não uma parte, mas todo o seu sangue, para satisfazer por nossos pecados e obter-nos o perdão. Quis por isso que este sacrifício fosse renovado todos os dias em cada missa que se celebra, a fim de que seu sangue intercedesse continuamente em nosso favor. Foi essa a razão por que Jesus Cristo foi chamado sacerdote segundo a ordem de Melquisedec:
“Tu és sacerdote eternamente, segundo a ordem de Melquisedec” (Sl 109,4).
Aarão ofereceu sacrifícios de animais: o sacrifício de Melquisedec foi de pão e de vinho, figura do Sacrifício do Altar, no qual vosso Salvador, debaixo das espécies de pão e de vinho, ofereceu a Deus na última ceia seu corpo e seu sangue, que devia sacrificar no dia seguinte na sua paixão e que continua a oferecer todos os dias pelas mãos dos sacerdotes, renovando dessa forma o sacrifício da cruz. São Paulo explica por que Davi chamou Jesus Cristo sacerdote eterno:
“Este, porém, como permanece eternamente, possui um sacerdócio sempiterno” (Hb 9,24).
O sacerdócio antigo desaparecia com a morte dos sacerdotes, mas Jesus, porque é eterno, possui um sacerdócio também eterno. Como é que no céu continua ele a exercer esse seu sacerdócio? São Paulo diz:
“Por isso pode perpetuamente salvar os que por ele mesmo se chegam a Deus estando sempre vivo para interceder por nós” (Hb 7,25).
O grande Sacrifício da Cruz, representado naquele altar, tem a virtude de salvar para sempre todos aqueles que, por meio de Jesus Cristo (se bem dispostos pela fé e boas obras) se chegam a Deus. Este sacrifício, segundo Santo Ambrósio e Santo Agostinho, Jesus como homem continua a oferecer a seu Pai em nosso favor, desempenhando ainda agora, como quando na terra, o ofício de nosso advogado e mediador e também de sacerdote, que consiste em rogar por nós, como exprimem as palavras: “Sempre vivo para interceder por nós”.
Nosso advogado.
1. São João Crisóstomo diz que as chagas de Jesus são outras tantas bocas que imploram continuamente a Deus o perdão das culpas para nós pecadores. O sangue de Jesus Cristo suplica por nós e obtém-nos a misericórdia divina, muito melhor do que implorava o sangue de Abel a vingança contra Caim.
“Vós chegastes ao mediador do Novo Testamento, Jesus, e à aspersão do sangue que fala melhor do que o de Abel” (Hb 12,24).
Nas revelações feitas a Santa Maria Madalena de Pazzi, Nosso Senhor disse-lhe um dia:
“A minha justiça foi transformada em clemência com a vingança tomada sobre as carnes inocentes de meu Filho. O sangue desse meu Filho não pede vingança como o sangue de Abel, mas somente misericórdia, e minha justiça não pode deixar de se aplacar com essa voz. Esse sangue me liga as mãos de modo que se não podem mover para tirar a vingança que antes tiravam dos pecados”.
Escreve Santo Agostinho que Deus nos prometeu a remissão dos pecados e a vida eterna; mas é mais o que ele fez por nós do que o que ele nos prometeu (Ender. in ps. 148). Dar-nos o perdão e o paraíso nada custou a Jesus Cristo; o remir-nos, porém, custou-lhe o sangue e a vida. O apóstolo São João nos exorta a fugir do pecado, mas para que não desconfiemos do perdão das culpas cometidas, tendo firme resolução de as não repetir, nos encoraja, afirmando que temos de nos haver com Jesus, que não só morreu para nos perdoar, mas, depois de sua morte, se fez nosso advogado junto de seu divino Pai:
“Meus filhinhos, eu vos escrevo estas coisas para que não pequeis; mas mesmo se alguém pecar temos um advogado junto do Pai, Jesus Cristo, o justo” (1Jo 2,1).
Aos nossos pecados cabe por justiça a desgraça de Deus e a condenação eterna, mas a paixão do Salvador exige em nosso favor a desgraça divina e a salvação eterna e isso por justiça já que o eterno Padre, em vista de seus merecimentos, prometeu-lhe perdoar-nos e salvar-nos, caso estejamos dispostos para receber a sua divina graça e queiramos obedecer a seus preceitos, como escreve São Paulo:
“Tendo consumado, fez-se para todos os que lhe obedecem a causa da salvação eterna” (Hb 5,9).
E assim Jesus Cristo, morrendo consumido de dores, obteve a salvação eterna para todos os que observam a sua lei. Somos por isso admoestados pelo apóstolo:
“Corramos pela paciência para o combate que nos é proposto, olhando para o autor e consumador da fé, Jesus, que, tendo diante de si o gozo, escolheu a cruz, desprezando a ignomínia” (Hb 12,1 e 2).
Vamos ou antes corramos com grande coragem, armados de paciência, a combater com os inimigos de nossa salvação, tendo sempre os olhos fixos em Jesus crucificado, que, renunciando a uma vida de gozo na terra, quis escolher uma vida de sofrimentos e uma morte cheia de dores e opróbrios e assim realizar a nossa redenção.
2. Ó sangue precioso, tu és a minha esperança. Sangue do inocente, lava as manchas do penitente. Ó meu Jesus, meus inimigos, depois de me arrastarem a vos ofender, dizem-me que não posso encontrar mais em vós a minha salvação:
“Muitos dizem à minha alma: Não há mais salvação para ele no seu Deus” (Sl 3,3).
Mas eu, confiado no sangue que derramastes por mim, vos direi com Davi:
“Vós, porém, Senhor, sois o meu protetor” (Sl 3,4).
Os inimigos me aterram dizendo que depois de tantos pecados, se eu recorrer a vós, serei por vós repelido; eu, porém, leio em São João a vossa promessa que não repelireis ninguém que a vós se acolha:
“Eu não porei fora o que vem a mim” (Jo 6,37).
Recorro, pois, a vós, cheio de confiança.
“Nós vos pedimos que venhais em auxílio de vossos servos que remistes com vosso sangue precioso”.
Vós, meu Salvador, que com tanta dor e tanto amor derramastes o vosso sangue para que fôssemos salvos, tende piedade de mim, perdoai-me e salvai-me.
Jesus Cristo nos dá a esperança da perseverança final
Poder de Deus na fraqueza humana.
1. Para alcançar a perseverança no bem não devemos confiar nos nossos propósitos e promessas feitas a Deus; se confiarmos nas nossas forças, estamos perdidos. Devemos pôr nos merecimentos de Jesus Cristo toda a nossa esperança de nos conservar na graça de Deus. Confiando no seu auxílio, perseveraremos até à morte, ainda que sejamos combatidos por todos os inimigos da terra e do inferno. Todas as vezes que nos acharmos com ânimo abatido e assaltados pelas tentações, parecendo-nos que estamos quase perdidos, não percamos então a coragem nem nos entreguemos ao desespero: recorramos ao crucifixo e ele nos sustentará para que não caiamos. O Senhor permite que mesmo os santos encontrem muitas vezes tais tempestades e temores. São Paulo escreve que as aflições e os temores que ele experimentou na Ásia foram tão grandes que lhe fizeram sentir tédio pela vida:
“Fomos excessivamente oprimidos acima de nossas forças, a ponto de tomarmos aborrecimento à própria vida” (2Cor 1,8).
Com isso o Apóstolo deu a conhecer o que ele era segundo suas próprias forças, a fim de nos ensinar que Deus às vezes nos deixa na desolação para que conheçamos a nossa miséria e desconfiemos de nós mesmos, recorrendo com humildade à sua piedade e suplicando-lhe a força de não cair:
“Para que não confiemos em nós, mas em Deus que ressuscita os mortos” (2Cor 1,9).
2. E em outro lugar fala o Apóstolo ainda mais claro:
“Somos cercados de dificuldades insuperáveis e a nenhuma sucumbimos… somos abatidos, mas nem por isso perecemos” (2Cor 4,8-9).
Vemo-nos oprimidos pela tristeza e pelas paixões, mas não nos abandonamos ao desespero; somos como que lançados num lago, mas não submergimos, porque o Senhor com a sua graça nos dá força para resistir aos inimigos. O apóstolo nos adverte a ter sempre diante dos olhos que somos frágeis e facilmente perdemos o tesouro da graça divina e que, se a podemos conservar, isso não provém de nós, mas de Deus:
“Temos, porém, esse tesouro em vasos frágeis, para que a sublimidade seja virtude de Deus e não de nós” (2Cor 4,7).
A armadura do cristão.
1. Fiquemos, pois, firmemente persuadidos que nesta vida devemos nos abster sempre de colocar nossa confiança em nossas obras. A nossa arma mais forte, com a qual sairemos sempre vitoriosos nos assaltos do inferno, é a santa oração. Esta é a armadura de Deus, da qual diz São Paulo:
“Revesti-vos da armadura de Deus, para que possais resistir às insídias do demônio” (Ef 6,11).
Pois não é contra os homens de carne, mas contra os príncipes e o poder do inferno, que temos de combater:
“Porque a nossa maior luta não é contra a carne e o sangue, mas contra os príncipes e as potestades” (Ef 6,12).
“Por isso ficai firmes, tendo os vossos rins cingidos da verdade e vestindo a couraça da justiça, calçando os pés em preparação para o evangelho da paz, sobretudo, embraçando o escudo da fé com o qual possais extinguir todos os dardos ígneos do maligníssimo; tomai também o capacete da salvação e o gládio do espírito, que é a palavra de Deus, orando em todo tempo com toda a sorte de deprecações e súplicas” (Ef 6,14-18).
Detenhamo-nos um pouco para bem compreender as sobreditas palavras: Tende os vossos rins cingidos da verdade. O apóstolo alude ao cinturão militar com que os soldados se cingiam em sinal de fidelidade que juravam ao soberano. O cinturão com que se deve cingir o cristão há de ser a verdade da doutrina de Jesus Cristo, segundo a qual devem reprimir todos os movimentos desordenados e em especial os impuros, que são os mais perigosos. Revestindo a couraça da justiça. A couraça do cristão deve ser a boa vida, sem o que terá pouca força para resistir aos insultos dos inimigos. Tendo os pés calçados em preparação para o Evangelho da paz. Os sapatos militares, que o cristão deve usar, a fim de caminhar expeditamente para onde deve, em oposição ao que anda descalço e que só caminha lentamente, hão de ser o ânimo aparelhado para abraçar praticamente e insinuar aos outros com o exemplo das máximas santas do Evangelho. Embraçando o escudo da fé com o qual possais extinguir todos os dardos ígneos do maligníssimo. O escudo, pois, com que há de defender-se o soldado de Cristo contra os dardos ígneos (isto é, penetrantes como fogo) do inimigo, há de ser a fé constante, fortalecida. Tomai também o capacete da salvação e o gládio do espírito que é palavra de Deus. O capacete, como entende Santo Anselmo, deve ser a esperança da salvação eterna, e finalmente a espada do espírito, isto é, a nossa espada espiritual, deve ser a palavra de Deus, pela qual ele promete repetidas vezes atender — ao que o suplica:
“Pedi e vos será dado” (Mt 7,7).
“Todo aquele que pedir, receberá” (Jo 11,10).
“Invocai-me e eu vos atenderei” (Jo 33,3).
“Invoca-me e eu te livrarei” (Sl 49,15).
2. E o Apóstolo conclui:
“Orando em todo tempo com toda sorte de deprecações e súplicas pelo Espírito, e velando nisto com toda a perseverança a rogar por todos os santos” (Ef 6,18).
A oração é, portanto, a arma mais forte, por meio da qual o Senhor nos dá a vitória contra as más paixões e tentações do inferno. Esta oração deve, porém, ser feita em espírito, não só com a boca, mas também com o coração. Além disso, deve ser contínua em todo tempo de nossa vida: “orando em todo tempo”, assim como são contínuas as batalhas, deve ser também contínua a nossa oração. Com toda sorte de deprecações e súplicas: se a tentação não desaparece com a primeira súplica, é preciso repeti-la uma segunda, terceira ou quarta vez e se, apesar disso, a tentação não cede, é necessário ajuntar os gemidos as lágrimas, a importunação, a veemência, como se quiséssemos forçar a Deus a conceder-nos a graça da vitória. Isto significam as palavras com toda a instância e solicitação. Acrescenta o Apóstolo: “Por todos os santos”, que significa que devemos rogar não só por nós, mas pela perseverança de todos os fiéis que estão na graça de Deus e em especial dos sacerdotes que trabalham pela conversão dos infiéis e de todos os pecadores, repetindo nas orações a súplica de Zacarias:
“Iluminai aos que estão assentados nas trevas e na sombra da morte” (Lc 1,79).
Quem pouco semeia pouco colherá.
1. Nos combates espirituais nos auxilia na resistência aos inimigos o preveni-los nas nossas meditações, preparando-nos a fazer toda a violência possível nesses casos que podem nos surpreender de improviso. Disso provinha que os santos podiam responder com tão grande mansidão ou mesmo calar-se e não se perturbar quando recebiam injúrias gravíssimas, ou eram perseguidos, ou tinham de suportar atrozes dores de corpo ou de alma, ou a perda de grandes bens, ou a morte de um parente mui querido. Tais vitórias não se obtêm ordinariamente sem o auxílio de uma vida muito correta, sem a freqüência dos sacramentos e sem um exercício contínuo da meditação, leitura espiritual e orações. Por isso estas vitórias dificilmente são alcançadas por aqueles que não são muito cautelosos em fugir das ocasiões perigosas ou vivem apegados à vontade ou aos prazeres do mundo e pouco praticam a mortificação dos sentidos; por aqueles, enfim, que levam uma vida mole. Santo Agostinho escreve que na vida espiritual “primeiro se devem vencer as satisfações e depois as dores” (Serm. 135). Quer ele dizer que todo aquele que está acostumado a procurar os prazeres sensuais, dificilmente resistirá a uma grande paixão ou veemente tentação que o assalte; quem muito preza a estima do mundo, dificilmente sofrerá uma afronta grave sem perder a graça de Deus.
É verdade que da graça de Jesus Cristo e não de nós mesmos é que devemos esperar toda a força para viver sem pecado e fazer boas obras e por isso devemos empregar todo o cuidado de não nos tornarmos mais fracos do que já somos por nossa própria culpa. Certos defeitos, dos quais não fazemos conta, são a causa de nos faltar a luz divina e de o demônio ter mais poder sobre nós, por exemplo, o desejo de aparecer sábio ou nobre perante o mundo, a vaidade no trajar, a busca de certas comodidades supérfluas, o ressentimento por uma palavra ou ato de pouca atenção, a aspiração de agradar a todos, com prejuízo do proveito espiritual, a omissão das obras de piedade pelo respeito humano, pequenas desobediências aos superiores, pequenas murmurações, pequenas aversões conservadas no coração, leves mentiras, ligeiras zombarias do próximo, perda de tempo em palestras ou curiosidades inúteis, em suma todo o apego às coisas terrenas e todo ato de amor próprio desordenado pode servir ao inimigo para precipitar-nos em qualquer abismo ou pelo menos qualquer defeito deliberadamente querido nos privará da abundância do socorro divino, sem o qual cairemos em qualquer precipício.
Nós lastimamos sentir-nos tão áridos e lânguidos nas orações, nas comunhões e em todos os exercícios de piedade, mas como Deus há de fazer que gozemos de sua presença e de suas visitas amorosas, se nós somos tão escassos e desatenciosos com ele?
“Quem semeia com parcimônia, também colherá escassamente” (2Cor 9,6).
2. Se nós lhe causamos tantos desgostos, coo havemos de querer recolher suas celestes consolações? Se não nos desprendermos em tudo da terra, não seremos mais por inteiro de Cristo e quem sabe onde chegaremos a parar. Jesus com sua humildade nos mereceu a graça de vencer a soberba; com sua pobreza, a força de desprezar os bens terrenos; com sua paciência, a constância para vencer os desprezos e as injúrias. Assim pergunta Santo Agostinho:
“Que coisa poderá curar a soberba, se não for a humildade do Filho de Deus? Que coisa, a avareza, se não a pobreza de Cristo? que coisa, a ira, se não a paciência do Salvador”.
Se nós, porém, esfriamos no amor de Jesus Cristo e descuidamos de suplicar-lhe que nos socorra e até nutrimos no coração qualquer afeto terreno, dificilmente perseveraremos na boa vida. Rezemos, rezemos sempre: com a oração alcançaremos tudo.
Ó Salvador do mundo, ó minha única esperança, pelos merecimentos da vossa paixão, livrai-me de todo afeto impuro que possa ser obstáculo ao amor que vos devo. Fazei que eu viva despido de todos os desejos mundanos, fazei que o único objeto de meus desejos sejais vós só, a que sois o sumo bem e o único bem digno de ser amado. Por vossas sacrossantas chagas, curai as minhas enfermidades e dai-me a graça de conservar longe de meu coração todo amor que não é para vós, que mereceis todo o meu amor. Jesus, meu amor, vós sois a minha esperança. Ó doces palavras, ó doce conforto! Jesus, meu amor, vós sois a minha esperança.
Da esperança que temos de chegar um dia, por Jesus Cristo, à felicidade do paraíso
Coerdeiros de Cristo.
1. “E por isso é mediador do Novo Testamento, a fim de que, intervindo a morte… os que foram chamados receberam a herança eterna da promessa” (Hb 9,15). Aqui fala São Paulo do Novo Testamento, não como de um pacto, mas como de uma promessa, isto é, a disposição da sua última vontade, pela qual Jesus Cristo nos constituiu herdeiros do reino dos céus, e porque o testamento não é válido senão depois da morte do testador, foi necessário que Jesus Cristo morresse, para que pudéssemos como seus herdeiros entrar na posse do paraíso.
Pelos méritos de Jesus Cristo, nosso mediador, recebemos no batismo a graça de ser Filhos de Deus, enquanto que os hebreus, no Antigo Testamento, apesar de serem o povo eleito, não deixaram de ser escravos.
“Estes são os dois testamentos, um certamente do monte Sinais, que gera para a servidão” (Gl 4,24).
No monte Sinai fez-se, por intermédio de Moisés, a primeira mediação, quando Deus, por meio dele, prometeu a abundância de bens temporais se observassem a lei que lhes dera. Esta mediação, porém, diz São Paulo, não gerava senão servos, em oposição à de Jesus Cristo, que gera filhos:
“Nós, porém, irmãos, somos filhos da promissão segundo Isaac” (Gl 4,28).
Se, pois, nós, cristãos, somos filhos de Deus, diz o mesmo apóstolo, somos também herdeiros: a todos os filhos cabe parte da herança paterna, a qual no nosso caso é a glória eterna no paraíso, que Jesus Cristo nos mereceu com sua morte:
“Se filhos, também herdeiros; herdeiros de fato de Deus e coerdeiros de Cristo” (Rm 8,17).
2. Acrescenta, entretanto, São Paulo, no mesmo lugar:
“Mas isto se padecermos com ele, para também com ele sermos glorificados” (Rm 8,17).
É certo que nós, pela filiação divina, obtida por Jesus com sua morte, adquirimos direito ao paraíso: isso só se entende, porém, se formos fiéis na prática de boas obras e particularmente se, pela paciência, correspondermos à graça divina. Pelo que, diz o Apóstolo, para obtermos a glória eterna como Jesus a alcançou, devemos na terra padecer a exemplo do mesmo Jesus Cristo. Ele vai na frente com a cruz, como um capitão; à sombra dessa bandeira, devemos segui-lo, cada um levando sua cruz, como nos admoesta o mesmo Senhor, dizendo: “Quem quiser vir após mim abnegue-se a si mesmo, tome sua cruz e siga-me” (Mt 16,24).
São Paulo então anima-nos a sofrer com coragem, alentados pela esperança do paraíso, recordando-nos que a glória que nos será dada na outra vida será imensamente maior que o merecimento de todos os nossos sofrimentos, suportados de boa vontade em cumprimento da vontade de Deus.
“Julgo, porém, que os sofrimentos da vida presente não têm proporção alguma com a glória futura que se manifestará em nós” (Rm 8,18).
Que pobre seria tão tolo que recusasse dar todos os seus andrajos em troca de um grande reino? Não possuímos presentemente essa glória porque não estamos ainda salvos, visto não termos ainda terminado a vida na graça de Deus; mas a esperança nos merecimentos de Jesus Cristo, diz São Paulo, é que nos trará a salvação:
“Pela esperança é que fomos salvos” (Rm 8,24).
Ele não deixará de nos conceder todo o auxílio de que necessitamos para nos salvar, se lhe formos fiéis e perseverantes em suplicar-lhe, segundo a promessa do mesmo Jesus Cristo, de atender todo aquele que o suplicar: “Todo o que pedir, receberá” (Jo 11,10). Mas, dirá alguém: eu não duvido que Deus se negue a ouvir-me quando suplicar-lhe, mas receio que eu não o faça como devo. Não, diz S. Paulo, não há motivo para esse receio, porque, quando rezamos, Deus mesmo ajuda a nossa insuficiência e nos faz suplicar de maneira que sejamos atendidos:
“O Espírito ajuda a nossa fraqueza e pede por nós” (Rm 8,26).
Pede, isto é, faz-nos pedir, explica Santo Agostinho.
Semelhantes à imagem do Filho.
1. Para nos aumentar a confiança, o Apóstolo ajunta:
“Nós sabemos que, para os que amam a Deus, tudo concorre para o bem” (Rm 8,28).
Quer com isso dar-nos a entender que não são desgraças as infâmias, as doenças, a pobreza, as perseguições, como julgam os homens, pois Deus as converterá em bens e glória dos que as suportarem com paciência. E o Apóstolo conclui:
“Pois os que conheceu na sua presciência também os predestinou para se fazerem conformes à imagem de seu filho” (Rm 8,29).
Com estas palavras quer persuadir-nos de que, se quisermos a salvação, devemos nos resolver a sofrer todas as coisas para não perdermos a graça divina, já que ninguém poderá ser admitido à glória dos bem-aventurados sem que, no dia de seu juízo, sua vida tenha sido encontrada conforme a de Jesus Cristo.
Mas, para que os pecadores por esse motivo não se entreguem ao desespero, em vista das culpas cometidas, São Paulo os anima a esperar o perdão, afirmando que o Padre eterno não quis por esse fim perdoar a seu próprio Filho, que se oferecera para satisfazer por nossos pecados, e o entregou à morte para poder perdoar-nos a nós, pecadores:
“O qual não poupou a seu próprio Filho, mas o entregou por nós” (Rm 8,39).
E para que seja ainda maior a esperança do perdão dos pecadores arrependidos, acrescenta:
“E quem será que nos condenará? Cristo, que morreu por nós”.
Como se dissesse: Pecadores, que detestais os pecados cometidos, por que tomeis ser condenados ao inferno? Dizei-me qual será o juiz que vos há de condenar? não é Jesus Cristo? E como podeis temer que vos condene à morte eterna esse redentor amoroso, que para vos não condenar quis condenar-se a si mesmo a morrer pregado no infame patíbulo da cruz? Isso muito bem se entende daqueles pecadores que, contritos, lavaram suas almas no sangue do cordeiro, segundo São João:
“Estes são os que lavaram suas vestes e as embranqueceram no sangue do cordeiro” (Ap 7,14).
2. Ó meu Jesus, se eu olho para os meus pecados, envergonho- me de pedir-vos o céu, depois de o ter tantas vezes renunciado por gozos efêmeros e miseráveis: vendo-vos, porém, pregado nessa cruz, não posso deixar de esperar o paraíso, sabendo que quisestes morrer nesse madeiro para pagar por seus pecados e alcançar-me esse céu que eu desprezei. Ah, meu doce Redentor, eu espero pelos merecimentos de vossa morte que já me tenhais perdoado as ofensas que vos fiz e das quais já me arrependi e por cuja causa desejaria morrer de dor. Mas, ó meu Jesus, penso que, apesar de me haverdes perdoado, permanecerá sempre verdade que eu na minha ingratidão tive a coragem de causar-vos tão graves desgostos, a vós que tantos me haveis amado. O que está feito, porém, está feito; pelo menos, Senhor, eu quero, no tempo que me resta de vida, amar-vos com todas as minhas forças, quero viver só para vós, quero ser todo vosso, todo, todo. E isso haveis de realizar. Desprendei-me de todas as coisas da terra e dai-me luz e força para não buscar outra coisa senão vós, meu único bem, meu amor, meu tudo. Ó Maria, esperança dos pecadores, ajudar-me-eis com vossas súplicas. Rogai, rogai, por mim e não deixeis de orar enquanto não me virdes todo de Deus.
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