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Amor ao próximo

Amor ao próximo, Tesouros de Cornélio à Lápide

O que é a caridade

A caridade não é outra coisa que a boa vontade, diz Santo Agostinho: Quid aliud est caritas quam bona voluntas? (De Morib.). Por sua essência, a caridade, diz São João Clímaco, tem tanta semelhança com Deus, quanto podem perceber os mortais. Por sua eficácia, é uma espécie de embriagues da alma; enfim, suas propriedades são ser o fundamento da fé e o sustento de uma alma paciente (Grado 5°).

Necessidade da caridade

Amareis ao Senhor vosso Deus com todo vosso coração, com toda a vossa alma e todo vosso espírito, disse Jesus Cristo em São Mateus. Este é o maior e primeiro dos mandamentos (Mt 22, 37-38). Porém, eis aqui um segundo, semelhante àquele: Amareis a vosso próximo como a vós mesmos: Diliges proximum tuum sicut te ipsum (Mt 22, 40).

Jesus Cristo disse no Evangelho, segundo São João: Eis aqui meu preceito: amai-vos uns aos outros: Hoc est praeceptum meum, ut diligatis invicem (Jo 15, 12). Toda a Lei, diz São Paulo aos Gálatas, está contida nesta única sentença: Amai a vosso próximo como a vós mesmos: Ominis lex in uno sermone impletur: Diliges proximum tuum sicut teipsum (Gal 5, 14). Permaneça em vós o amor para com vossos irmãos, escreve este apóstolo aos Hebreus: Caritas fraternitatis maneat in vobis (Hb 13, 1). Antes de tudo, diz o apóstolo São Pedro, mantende constante a mútua caridade entre vós, porque a caridade faz perdoar uma multidão de pecados: Ante omnia in obis metipis caritatem continuam habentes (1 Pd 4, 8). Exercitai entre vós a hospitalidade sem murmurar.

Cada qual faça serviços aos demais, segundo o dom que tenha recebido, como fieis dispensadores das diferentes graças de Deus (1 Pd 4, 9-10). São João, em sua primeira Epístola, ao falar do mandamento de amar a Deus e ao próximo, diz:

“O que vos escrevo não é um mandamento novo, senão um mandamento antigo” (1 Jo 2, 6)

Este mandamento foi dado a Adão e a todos os homens na lei natural, assim como aos anjos, desde o princípio de sua criação. E seguindo a falar do amor a Deus e ao próximo, o mesmo apóstolo acrescenta: Dou-vos um mandamento novo (1 Jo 2, 8). E qualifica-o assim:

  1. Por causa do novo peso que lhe imprime o novo legislador Jesus cristo, e ainda por razão da nova efusão da caridade e da graça vinda do Espírito Santo no dia de Pentecostes.
  2. por razão do novo povo que está chamado a praticá-lo em um grau mais elevado; falamos do povo cristão, formado de homens abrigados antes pela sombra da morte;
  3. porque um novo mistério foi proposto a nosso amor, o mistério da Encarnação do Verbo e da nova união dos fiéis Nele. União tal por sua natureza, pela graça e os sacramentos, que devemos amar aos cristãos não somente como a nosso próximo por causa de Deus, senão como a nossos irmãos e aos membros do mesmo chefe, Jesus Cristo, feito homem. E como o amor de Jesus Cristo por nós homens tem sido imenso, novo e desconhecido, assim também seu mandamento é grande, novo e desconhecido; porque diz: Amai-vos uns aos outros como eu vos tenho amado: Diligatis invicem sicut dilexit vos (Jo 13, 34). Pela Encarnação de Jesus Cristo estamos obrigados a um novo amor, a um amor maior que antes, seja porque estamos mais intimamente unidos com Deus e nossos irmãos, seja por razões dos benefício novos e infinitos cujo princípio tem sido para nós Encarnação. Com efeito, pela Encarnação, temos, pois, novos motivos para amar. Pela Encarnação, o Verbo feito homem tomou nossa carne e tem sido nosso irmão; o Pai tem sido Pai de uma nova maneira, ora de Jesus Cristo feito homem, ora dos cristãos, irmãos seus; enfim, o Espírito Santo foi inteiramente derramado em nós e um novo preceito de amor foi dado por Jesus Cristo, a fim de que os homens se amem mutuamente, não somente enquanto parentes por Adão, senão como membros do corpo de Jesus Cristo.
  4. o mandamento do amor chama-se “novo” por causa do novo modelo de amor que foi apresentado ao mundo: falamos de Jesus Cristo, que por amor deu seu Sangue, sua vida e toda a sua humanidade para a salvação dos seus. Pesai quão poderosos são os motivos de caridade que Jesus Cristo nos deu em toda a sua vida, fazendo-se homem, nascendo em um estábulo, trabalhando, pregando, sofrendo e morrendo por nós.
  5. É novo o preceito do amor por causa do novo fim que nos foi proposto, porque, por este médio, Jesus Cristo quis fazer de nós homens novos, homens celestiais e não terrenos. Escutai a São Bernardo: Dou-vos, diz Jesus Cristo, um novo mandamento. Como novo? Acaso recentemente inventado? Não, porque este amor estava prescrito no Antigo Testamento. Como é, pois, que seja novo? É novo porque renova o que é antigo, e porque dos homens do passado faz homens novos. É novo porque nos despoja do velho homem e reveste-nos com o caráter do homem novo, que foi criado segundo Deus na santidade, na justiça e na verdade. É novo porque o gênero humano, há pouco desterrado do paraíso, entra cada dia mais no céu (Serm. V in Coena Dom.). A caridade renova-nos, diz Santo Agostinho, a fim de que sejamos homens novos, herdeiros do Novo Testamento, cantando um cântico novo, e nos reúne como a um povo novo: Dilectio ista nos innovat, ut simus homines novi, haeredes Testamenti Novi, cantores cantiei novi, facit et colligit populum novum (In Epist. I Johann.).
  6. o mandamento do amor é um mandamento novo, porque foi dado por último, a saber, quando Jesus cristo se separou de seus discípulos para ir a morrer na Cruz.
  7. É novo em razão de seus efeitos, porque produz obras novas, a conversão do mundo pagão etc. Distingue o Novo Testamento do Antigo: o Antigo era um testamento de temor feito para escravos; o novo é um testamento de amor feito para filhos.

O preceito de Jesus Cristo consiste em amar-nos mutuamente, diz o discípulo muito amado: Et hoc est mandatm ejus, ut diligamus alterutrum (1 Jo 3, 23). Se Deus nos amou tanto, prossegue, estamos obrigados a amar-nos uns aos outros, porque a caridade vem de Deus: Carissimi, diligamus nos invicem, quia caritas ex Deo est (1 Jo 4, 7). Si sic Deus dilexit nos, et nos debemus alterutrum diligere (1 Jo 4, 11). O senhor mandou cada um tomar cuidado de seus semelhantes, diz o Eclesiástico: Mandavi uniquique de proximo suo (Ecl 17, 12).

A caridade é para os homens o que um piloto é para um navio, o que é um governador para uma cidade, o que é o sol para a terra. Como o corpo dissolve-se quando sai-lhe a alma, assim também as virtudes abandonam a alma quando a caridade não existe. Uma casa que perde seus cimentos derruba-se: a caridade é o cimento das virtudes; se esta chega a faltar, as virtudes desaparecem.

Escuta i o apóstolo São João: Aquele que diz: “amo a Deus”, e não ama seu irmão, é um mentiroso; porque o preceito de Deus quer que, aquele que ame a Deus, ame também a seu próximo: Si quis dixerit quoniam diligo Deum et fratrem suum oderit mendax est qui enim non diligit fratrem suum quem vidit Deum quem non vidit quomodo potest diligere et hoc mandatum habemus ab eo ut qui diligit Deum diligat et fratrem suum (1 Jo 4, 20-21).

Todo animal ama a seu semelhante, diz o Eclesiástico: Omne animal diligit simile sibi (Ecl 18, 19).

Excelência da caridade

Um grama de caridade vale mais do que um tonelada de vitórias, dizia o Cardeal Belarmino (In Psalm.) A caridade tem dois pés, diz Santo Agostinho, tende, pois, o cuidado de não andar coxos; este dois pés são os preceitos do amor a Deus e ao próximo. Com eles, correi até Deus[1] .

Aquele que tem caridade, diz São Basílio, possui a Deus; por conseguinte, aquele que tem ódio, alimenta Satanás em suas entranhas[2].

Se nos amamos mutuamente, Deus está conosco, diz o apóstolo São João: Si diligamus invincem, Dus in nobis manet (1 Jo 4, 12).

Quando amais os membros de Jesus Cristo, diz Santo Agostinho, amais a Jesus Cristo; quando amais a Jesus Cristo, amais o Filho de Deus e ao Pai. Escolhei o que quereis amar, o restante virá depois[3]. Vede, diz o mesmo Doutor, aquela viúva de que nos fala o Livro dos Reis (Reg. IV, 4): enquanto teve azeite em sua própria vasilha, não teve o bastante nem para si nem para seus credores. Assim aquele que não ama mais do que a si mesmo, não se pode bastar nem pagar o que deve por seus pecados. Porém quando começa a derramar o azeite da caridade nos vasos do próximo, então, tem o suficiente para si mesmo e paga as dívidas que houver contraído. Tal é a natureza da caridade cristã e fraternal, que amplia-se com seus dons, e quanto mais se derrama, mais se acrescenta. Se derdes o pão da caridade, eles restarão inteiros, e ainda que os partais com todos os homens, nada vos faltaria: Panem caritais si dederis, integer manet, si universo mundo largiri volueris, nihil tibi deficit (Serm. CCVI). Ainda mais, não somente não vos faltará nada, senão que aquilo que derdes aos outros, produzir-vos-á grande benefício[4]. Porque a caridade é um bem tão imenso, que pode pertencer a um só e ser, ao mesmo tempo, de todos[5]. Haveis dado aos demais, e não diminuiu, por isso, este vosso tesouro, senão que, ao contrário, recebereis centuplicado o quanto destes[6].

Agradam-me três coisas, diz o Senhor na Sagrada Escritura, e estas três coisas as aprovo, e as aprovam os homens: a concórdia entre os irmãos, o amor ao próximo, e os esposos perfeitamente unidos[7].

A caridade, diz Ricardo de São Vitor:

  1. é a vida da fé, a força da esperança e a medula de todas as virtudes; regula a vida, inflama o coração, dirige as ações, corrige os excessos, funda os costumes, é própria para tudo e a tudo domina, até Deus;
  2. é valorosa na adversidade, é mais forte, todavia, na prosperidade; despreza as carícias e faz gozar inefáveis e incomparáveis doçuras;
  3. está livre de toda mancha, ignora a corrupção, tem uma grande firmeza, domina os sentidos, é o princípio das boas ações, a finalidade dos divinos preceitos, a morte dos pecados, a virtude dos combatentes, a palma dos vitoriosos, a arma das almas santas, a razão do mérito e a recompensa dos justos;
  4. é vantajosa aos penitentes, doce e amável para aqueles que se adiantam na perfeição, um princípio de glória aos que perseveram e de vitória para os mártires; é útil a todos os homens, fazendo viver tudo o que seja um bem (Lib. Animae).

Força da caridade

O irmão ajudado por seu irmão parece-se a uma cidade forte: o laço tríplice rompe-se com muita dificuldade, diz o Eclesiastes: Frater qui adjuvatur a fratre, quase civitas firma: funiculus triplex difficile rumpitur (Ecl 4, 12). Feliz o homem que se compadece e empresta ao pobre, e que dispensa suas palavras com discrição, porque este tal jamais resvalará, diz o Salmista: Iucundus homo qui miseretur et commodat disponet sermones suos in iudicio quia in aeternum non commovebitur (Sl 111, 15-16). A caridade, sabei-o, é um dardo penetrante que se dirige aos inimigos, abate-os, e faz deles amigos seus.

A sabedoria do mundo engana-se torpemente querendo vencer a um inimigo pelo ódio, as ameaças e os golpes; é melhor inflamar seu ardor e empurrar-lhes a novas hostilidades. O verdadeiro meio de acalmá-lo, é amando-lhe e cumulando- Lhe de benefícios. São João Crisóstomo, comentando aquelas palavras de Jesus Cristo: Tudo quando desejais que os homens vos façam, fazei-o a eles, diz muito oportunamente: Desejais receber benefícios? Sede benfeitor. Desejais que vos louvem? Louvai vosso próximo. Desejais ser amado? Amai. Quereis ocupar o primeiro lugar? Cedei-o primeiramente a outro[8].

Santo Agostinho, a propósito daquelas palavras dos Cânticos: O amor é forte como a morte, diz: É impossível expressar, com maior magnificência, a força da caridade. Porque quem é que resiste à morte? Podemos resistir ao fogo, ao furor das ondas, à espada, aos poderes, aos reis, porém, chega a morte, e quem pode apresentar-lhe resistências? Ela é mais forte que todas as coisas: Nihil illa fortius (De Laude Caritatis). Por isso, compara-se com ela o amor ao próximo. A caridade, com efeito, destrói o que temos sido para fazer-nos o que não éramos; de um homem mal e detestável, faz um homem bom e amável.

A caridade, diz São Lourenço Justiniano, é uma armadura impenetrável; não cede perante a espada, desponta as flechas, ri-se dos perigos, triunfa da morte e vence tudo[9].

A caridade une os homens

Revesti-vos, como escolhidos que sois de Deus, santos e amados, diz São Paulo, revesti-vos de entranhas de compaixão, de benignidade, de humildade, de modéstia, de paciência, suportando-vos uns aos outros, e perdoando-vos mutuamente, se alguém tem queixa contra o outro; assim como o Senhor vos perdoou, assim haveis de fazer também vós. Porém, sobretudo, mantende a caridade, a qual é o vinculo da perfeição (Col 3, 12-14)[10] .

O nome de irmão não deve ser uma palavra sem sentido.

Desde o momento em que um membro padece, diz São Paulo, todos os demais padecem com ele. E se um membro recebe uma honra, todos os demais se alegram com ele. Sois o corpo de Jesus Cristo, e membros unidos a outros membros[11]. Por conseguinte, deveis sofrer com os que sofrem, e alegrar-vos com os que se alegram. Assim, tornam-se fortalecidos os corações. A caridade une a todos os homens como o corpo está unido com a alma e como os membros do corpo estão unidos entre si. No corpo do homem há vários membros, cada um tem sua função, cada um sua aptidão; ninguém trabalha para si somente; ajudam-se mutuamente, porque pertencem ao mesmo corpo. Cada um só está contente com sua função, ninguém quer outra; o mais vil não inveja o mais nobre, a mão não tem ciúmes dos olhos, os pés não podem desempenhar as funções da cabeça; senão que entre todos existe uma união perfeita. Vivem em paz, sofrem juntos, alegram-se e se socorrem mutuamente. O amor ao próximo produz na sociedade análogos efeitos.

Tende cuidado, diz São Paulo, de conservar a unidade do espírito com o vínculo da paz, sendo um só corpo e um só espírito, assim como fostes chamados a uma mesma esperança de vossa vocação[12].

Irmãos meus, dizia São Bernardo, por mais que me falteis, resolvi amar-vos sempre, ainda que não me amásseis. Unir-me-ei a vós, ainda que seja com pesar vosso. Estou ligado a vós por meio de uma cadeia indissolúvel, pelo laço de uma caridade sincera, aquela caridade que sempre dura. Se me insultais, serei paciente; inclinarei minha cabeça ante as injúrias e vencerei com mais benefícios. Acudirei ao socorro dos que recusem meus cuidados, cumularei de benefícios aos ingratos, honrarei aos que me desprezam[13], porque uns somos membros dos outros[14].

Ouço eu sempre dizer em minha ausência, escreve o grande Apóstolo aos Filipenses, que tendes um mesmo espírito, trabalhando de juntos na propagação da fé[15]. Fazei que minha alegria seja cumulada, permanecendo todos unidos, não tendo mais que um mesmo amor, um mesmo espírito e os mesmos sentimentos. Não façais nada por espírito de contenda, nem de vanglória; creia, antes, pelo contrário, cada qual que os demais são-lhe superiores. Esteja cada qual em vista, não de seus próprios interesses, senão dos interesses dos demais (Fl 2, 2-4).

É a argamassa que une as pedras de um edifício. A argamassa que une aos homens é a caridade. Por ela, tem cumprimento o que diz São Paulo aos Gálatas: Alter alterius oneraportate, et sic adimplebitis legem Christi: Levai a carga uns dos outros, e assim cumprireis a lei de Jesus Cristo (Gal 6, 2). Levai a carga, isto é, os pecados e as misérias do próximo, e aliviai-lhe por meio da compaixão, da oração e da esmola.

Não se faça pesado o visitar ao enfermo, diz o Eclesiástico, pois, com tais meios, afirmar-se-á em ti a caridade: Non tepigeat visitare infirmum, ex his enim in dilectione firmaveris (Ecl 7, 39).

Sob a inspiração da caridade, ocultam-se os defeitos. Sede mutuamente afáveis, compassivos, perdoando-vos uns aos outros, assim como também Deus vos tem perdoado a vós em Jesus Cristo, diz São Paulo: Misericordes donantes invicem, sicut et Deus in Christo donavit vobis (Ef 4, 32).

É preciso não esquecer nunca, diz Santo Agostinho, que não há falta humana que todos não possamos cometer, se nosso Criador nos abandonasse[16].

Irmãos meus, diz o grande Apóstolo aos Gálatas, se alguém for surpreendido em algum pecado, vós que viveis espiritualmente, tende cuidado de levantar-lhe com doçura, considerando-vos a vós mesmos, e temendo ser tentados como ele[17].

Coisas grandes e sublimes que se originam na caridade

Anelava, diz, com sua heroica caridade São Paulo aos Romanos, anelava eu mesmo ser apartado de Cristo pela salvação de meus irmãos, que são meus parentes segundo a carne: Optabam enim ipse ego anathema esse a Christo pro fratribus meis (Rm 9, 3). Alegro-me de sofrer por vós, escreve aos Colossenses: Gaudeo in passionibus pro vobis (Col 1, 24). Vede sua imensa caridade para os Tessalonicenses: Desejava ardentemente, escreve-lhes, não somente anunciar-vos o Evangelho, senão dar a minha vida por vós: Cupide volebamus tradere vobis non solum evangelium Dei sed etiam animas nostras (1 Ts 2, 8).

Achando-se no desterro o santo varão Tobias, visitava todos os dias aos de sua parentela, consolava-lhes, prodigalizava-lhes todos os socorros que estavam a sua mão: dava pão aos que tinham fome; aos pobres, vestes; aos mortos, sepultura; e, isto, apesar da sentença de morte fulminada contra ele: desgraça que se havia atraído com sua valorosa caridade (Tob 1, 19-20).

O povo de Deus havia de tal maneira irritado ao Senhor com um crime enorme, que sua destruição estava resolvida. No momento, Moisés, obedecendo à caridade que lhe abrasava, desfez-se em súplicas; apresentou-se como um obstáculo ao exercício da divina justiça, e ele mesmo ofereceu-se como vítima de expiação em favor de seu povo: Senhor, disse, perdoai a este povo, ou riscai-me de vosso livro (Ex 37).

Quem dará água à minha cabeça, e fará de meus olhos fontes de lágrimas para chorar dia e noite a morte que foi dada a tantos moradores da filha de meu povo, ou seja, de Jerusalém?[18]

Sofro convosco, irmãos meus, diz São Cipriano, participo de vossas dores, estou enfermo com os enfermos; meu amor para com meus irmãos aflitos faz-me tomar parte em suas angústias[19].

A verdadeira caridade não se detém nem pelas grandes distâncias, nem pelos trabalhos, nem pelos perigos, nem pelos sacrifícios, nem pelas ameaças, nem pelos tormentos, nem pela morte. Vede a esses missionários que deixam pais, casa, pátria, para ir a regiões longínquas e desconhecidas, para exporem-se a todas as privações, a mil perseguições e a mil mortes, com o fim de salvar as almas. O que os leva a tantos e tão nobres sacrifícios? A caridade… Vede-os em tempo de fome, em meio da devastação da peste… Considerai às Irmãs de São Vicente de Paulo, a tantos outros… nos calabouços, nos cárceres etc.

Escutai o que São Fulgêncio diz de Santo Estêvão, primeiro mártir e modelo de caridade: Estevão tinha a caridade por arma e, com ela, findou vitorioso. Com a caridade, resistiu aos judeus que lhe apedrejavam; com a caridade teve forças para rogar por seus verdugos; com a caridade venceu a Saulo, seu cruel perseguidor, e mereceu ter-lhe por companheiro no céu (Serm. in S. Steph.). A caridade infinita de Deus pelos pecadores foi a causa da Encarnação, dos trabalhos, dos sofrimentos e da morte de Jesus Cristo.

A caridade apaga os pecados

A caridade apaga uma multidão de pecados, diz o Apóstolo São Pedro: Caritas opetir multitudinem peccatorum (1 Pd 4, 8). A caridade cobre todas as faltas, dizem os Provérbios: Universa delicta opetit caritas (Pr 10, 12).

A cobiça havia tomado grandes proporções, e a caridade havia desaparecido; a caridade volta, e a iniquidade desparece, diz Santo Agostinho: Creavit cupiditas, etperiit caritas; redit caritas, etperit iniquitas (Sentent.).

A caridade é o compêndio de toda a lei e a rainha das leis

Se cumpris a lei rainha de todas as leis, segundo a Escritura, e amais a vosso próximo como a vós mesmos, fazeis uma obra excelente: Si legem perficitis regalem segundo Scripturas: Diliges proximum tuum sicut teipsum, bene facitis (Tg II, 8).

A lei, rainha de todas as leis, é a caridade:

  1. porque vai adiante de todas as virtudes; tem vantagem sobre elas em qualidade, em esplendor e em magnificência; é mais perfeita de todas;
  2. a caridade é rainha, porque deve reinar sobre todos os homens, e constitui seu mais rico e mais glorioso ornamento. Por isso, Jesus Cristo não dirige mais que uma pergunta a Pedro: Pedro, tu me amas? A caridade é obrigatória para com aos pobres, aos bárbaros, aos inimigos. Assim como o firmamento envolve toda a terra, ilumina-a, aquece-a, fecunda-a, vivifica-a por meio do sol, refresca-a com chuvas benfeitoras e com doces orvalhos, a caridade tudo abraça e contém, a todos faz bem; ilumina, aquece, fecunda e vivifica os corações, mesmo aqueles que estão cheios de ódio e de vícios; com sua doçura e sua bondade abranda e fecunda os corações mais ingratos, mais ressecados e mais estéreis. Segue sua marcha por um caminho real, sem rodeios, sem desviar-se nem à direita nem à esquerda. Por ela, todos os justos e todos os Santos chegam ao Céu;
  3. a lei da caridade é rainha porque e a primeira e principal lei de Jesus Cristo, Rei dos reis;
  4. é rainha porque é superior aos reis e aos tiranos, às ameaças e aos suplícios. Ó caridade, a maior das virtudes, virtude real e mais poderosa que todos os magnatas do universo! A caridade repara sem armas e sem efusão de sangue as devastações causadas pelas armas, os ódios, o orgulho, a ambição e a crueldade. Ela pratica, morrendo, o que os tiranos proíbem sob pena de morte; triunfa imolando aos seus; converte até aos seus próprios perseguidores e aos verdugos;
  5. a lei da caridade é rainha porque é inviolável e eterna: Caritas numquam excidit (1 Cor 13, 8);
  6. a caridade é rainha, diz São Bernardo, atrai e cativa todos os afetos, com um rei muito querido que manda a uma nação inteira e a sujeita com sua largueza e seus numerosos benefícios (Serm. in Cant.);
  7. é rainha porque não obedece jamais às penas e ao trabalho como uma servente, senão que os elege como dona: assim se expõe aos sofrimentos, às fogueiras, aos cadafalsos e à morte. Faz fácil e doce tudo o que é difícil e amargo;
  8. é rainha porque faz reis aos que a possuem; ela os faz reinar sobre o próximo, sobre si mesmos e sobre Deus;
  9. é rainha porque são seus todos os bens, todas as dignidades e todas as grandezas;

Quem quer que tenha guardado toda a lei, diz o apóstolo São Tiago, se violar um mandamento sequer, vem a ser réu de todos os demais: Quicumque autem totam legem servaverit offendat autem in uno factus est omnium reus (Tg 2, 10).

E como é isso? Porque, diz Santo Agostinho, fere a caridade, da qual depende toda a lei; porque a caridade é o princípio e a base de todas as leis e de todas a virtudes (In Psalm.)

Todos os preceitos encontram-se em gérmen na caridade, diz São Gregório: Omniapraecepta sunt in radice caritatis (Moral.).

Como um herege que não crendo em nenhum artigo de fé, perde a fé, não somente relativa a este artigo, senão relativo a todos os outros, assim também aquele que viola uma só lei, vem a ser réu como se as violasse todas, ofendendo a caridade, que é o fundamento de toda a lei.

Benção dos que praticam a caridade

A caridade faz de todos os homens uma só família perfeitamente feliz. Que bom é, que doce é ver que os irmãos habitam juntos, exclama o Real Profeta: Ecce quam bonum et quam jucundum habitare fratres in unum (Sl 122, 1). A caridade fraternal e como o perfume derramado sobre a cabeça de Aarão que vai destilando por sua respeitável barba e descendo até a orla de sua vestidura, como o orvalho que cai sobre o monte Hermon, como o frescor que desce sobre o monte Sião. Assim descende sobre a caridade a benção do Senhor, e o dom da vida que se prolonga até a eternidade (Sl 132, 2-3). Quoaniam illic mandavit Dominus benedictionem, et vitam usque in saeculum (Sl 132, 3).

Quem ama seu irmão, diz São João, mora na luz, e nele não há escândalo: Qui diligit fratrem suum in lumine manet et scandalum in eo non est (1 Jo 2, 10). Aquele que pratica a caridade fraterna está em paz com Deus, com o próximo e consigo mesmo. O céu e a terra abençoam-no.

Qualidades da caridade

A caridade deve ser:

  1. universal;
  2. contínua;
  3. forte e ativa;
  4. liberal e abundante;
  5. cordial e sincera;

Tal tem sido a caridade de Jesus para conosco.

Eis aqui as qualidades da caridade segundo São Paulo:

  1. é paciente;
  2. é doce e benfeitora;
  3. não é invejosa;
  4. não é temerária nem precipitada;
  5. não se orgulha;
  6. não é ambiciosa nem busca seus próprios interesses;
  7. não se ofende nem se irrita;
  8. não pensa mal;
  9. não se alegra pela injustiça, senão que se alegra com a verdade;
  10. a tudo se ajusta;
  11. tudo crê;
  12. tudo espera;
  13. tudo suporta;
  14. jamais terá fim[20].

Meios de ter caridade

  1. O primeiro meio de ter caridade é a humildade;
  2. O segundo meio é renunciar a nossa vontade própria;
  3. O terceiro meio é secundá-la a tudo;
  4. O quarto, é ser paciente;
  5. O quinto meio é esforçar-nos em acalmar as impaciências e as iras dos outros, e sofrê-las.

Referências:

[1] Caritas duos habet pedes, noli esse claudus. Qui sunt duo pedes: duo praescepts dilectionis Dei et proximi; istis pedibus curre ad Deum (In Psalm. ).

[2] Qui caritatem habet, Deum habet; sic, qui odium habet, diabolum in se nutrit (Homil. de Ira).

[3] Elige tibi quid diligas, seuuntur caetera (Homil. ad pop.).

[4]  Imo non solum non déficit, sed omnium illorum quibus largitus fueris, lucram tibi multipliciter crescit (Serm. CCVI).

[5] Quia tanta estpossesio caritatis, ut et singulis tota sit, et omnibus integra esse possit (Serm. CCVI).

[6] Aliis dedisti, et ut nihil penitus perdidisti, imo quidquid aliis a te colletum est, tu centupliciter acquisisti (Serm. CCVI).

[7]  In tribos placitum est spiritui meo, que sunt probata coram Deo et hominibus concordia fratrum, et amor proximorum, et vir et mulier sibi bene consentientes (Eccli. XXV, 1-2).

[8]   Vis beneficia capere? Confer beneficiam alteri. Vis laudari? Lauda alium. Vis amari? Ama. Vis partibus primirpotiri? Cede illasprius alteri (Homil. XIII adpop.).

[9]  Caritas est impenetrabilis lorica; respicit gladium, jacula excutit, periculum insultet, mortem irridit, vincit omnia (In Ligno Vitae; De Caritate, c. XIII).

[10] Caritate habete, quod est vinculum perfectionis (Coloss. XXX, 14

[11]  Si quid patitur unum membrum conpatiuntur omnia membra sive gloriatur unum membrum congaudent omnia membra vos autem estis corpus Christi et membra de membro (I Cor. XII, 26-27).

[12] Solliciti servare unitatem spiritus in vinculo pacis unum corpus et unus spiritus sicut vocati estis in uma (Ephes. IV, 3-4).

[13]  Vincar jurgiis, vincam obsequiis, invitis praestabo, ingratis adjiciam, honorabo et coptemnentes me (Epist. CCLII).

[14] Sumus invicem membra (Ephes. IV, 25).

[15] Audiam de vobis quia statis in uno spiritu, unanimes collaborantes (Philipp. I, 27)

[16]  Nullum peccatum est quis umquam fecerit homo, quod non possit facere alter homo, si desit Creator a quo factus est homem (Soliloq. c. XV).

[17]  Fratres etsi praeoccupatus fuerit homo in aliquo delicto vos qui spiritales estis huiusmodi instruite in spiritu lenitatis considerans te ipsum ne et tu tempteris (Gal. VI, 1).

[18]  Quis dabit capiti meo aquam et oculis meis fontem lacrimarum et plorabo die et nocte interfectos filiae populi mei? (Jer. IX, 1).

[19]   Doleo, fratres, vobiscum; cum singulis copulo pectus meum, cum jacentibus jacere me credo, cum prostrastis fratribus, et me prostravit affectus (Epist. adMartyres).

[20] Caritas patiens est benigna est caritas non aemulatur non agit perperam non inflatur non est ambitiosa non quaerit quae sua sunt non inritatur non cogitat malum non gaudet super iniquitatem congaudet autem veritati omnia suffert omnia credit omnia sperat omnia sustinet caritas numquam excidit (I Cor. 13, 4-8).