«Suplico-vos, cara filha, para honra de Deus não O temais, pois nenhum mal vos quer fazer, amai-O bastante para que vos queira fazer muito bem», falava assim São Francisco de Sales a uma alma devota (em suas cartas espirituais). Palavras que se não fossem ditas por um Santo, poderiam escandalizar muito, principalmente aos devotos. Eles diriam: este Santo desaprova pois o temor de Deus, que é o princípio da sapiência, e dom do Espírito Santo? Pode ser Santo quem exorta e pede a uma alma devota que não tema a Deus? Todavia são palavras dignas de um Santo e tão célebre na ciência espiritual como é São Francisco de Sales, permita, pois que vo-las repita. Não penseis que ele desaprova o temor de Deus, que é o princípio da sabedoria, e dom do Espírito Santo, e sim o temor que nasce da desconfiança, produz inquietação, e em vez de honrar a Deus, O desonra, eis o que quero expulsar da vossa consciência, não vos faria bem nenhum, e poderia fazer-vos muito mal. O temor de Deus é o fundamento e base da perfeição cristã por isso é essencial até ás almas mais devotas e santas, e justamente são condenados os falsos místicos que ensinam que o temor de Deus se opõem á perfeição da caridade, isto é, ao amor de Deus, por isso desejo que sempre vos acompanhe para vos livrar do pecado, mas convém ter dele justa ideia para vos ajudar a obter a perfeição, de outro modo sereis pusilânime, desconfiada, medrosa, privada da paz do coração, refleti como deve ser o temor reto.
I Demonstra-se que o primeiro meio de adquirir a Perfeição é o desejo de consegui-la
Se eu vos mencionasse todos os meios que possam coadjuvar a posse da perfeição, seria mister que vos fizesse longo tratado, que seria fora do meu intento de escrever pequeno opúsculo adaptado a capacidade e estado de toda a gente. Só vos indicarei dois meios, de que os outros dependem. O primeiro vos fará trilhar a estrada da perfeição, o segundo vos servirá de guia seguro, para caminhardes bem e fazerdes progressos nela. O primeiro é o desejo de conquistar a perfeição, e sem este nada se consegue. Ninguém poderia aprender uma arte que não desejasse saber, e só a sabe bem quem vivamente a deseja. Se quereis ter a perfeição, desejai ardentemente obtê-la. Não julgueis soberbo o anelo de atingir a santidade perfeita; o demônio, disse Santa Tereza, faz pensar que é soberbo tão santo desejo; não o é, sim boa vontade de fazermos o que Deus exige de nós, pois é sua vontade que nos santifiquemos: Voluntas Dei sanctificatio vestra. Felizes seriamos se todos tivéssemos esta santa soberba! A de querermos ser santos!I
Quando uma coisa tem estes dois predicados, beleza e utilidade atrai o coração das criaturas com doce violência, que as obriga a amá-la, e buscar possui-la; como desejo que vos apaixoneis pela perfeição cristã, e procureis com muito empenho conseguir sua feliz posse, quero apresentar-vos parte da sua celeste beleza, e algumas razões da sua incompreensível utilidade. Começando pelo primeiro destes predicados, quanto é belo a Santidade que consiste na simples posse da graça santificante, tal beleza tem que enamora não só os Santos e Anjos, mas até o próprio Deus; a alma que a possui é na realidade amiga do Senhor, sua filha, embora tivesse e tenha bastantes manchas veniais. Ainda que uma alma fosse manchada com um milhão de faltas veniais, tendo a graça santificante, seria, porém resplandecente com tal formosura, que agradaria a Deus, que sempre a olharia como sua amiga e filha.I A prática dos Conselhos Evangélicos não é necessária para a Perfeição Cristã
Não obstante o que se disse alma devota, talvez penseis que para possuir a perfeição, a santidade perfeita, se exige muito mais; primeiro que tudo perguntais que valia dou aos Conselhos Evangélicos, que não mencionei, e que hão de ter o primeiro lugar quando se trata da perfeição. Se os julgais indispensáveis, estais enganada. Primeiro, como diz Santo Tomás, só é preciso para a santidade à obediência aos mandamentos (ver Sum. Teol. 2-2 que. 184 a. 3) tão grande autoridade deveria bastar-vos, porém quero convencer-vos com razões evidentes. Os Conselhos Evangélicos são três, Pobreza, Obediência, Castidade perfeita. Porém se fosse verdade que a prática destes conselhos fosse necessária para se obter a santidade, talvez que só os frades e freiras pudessem aspirar a tal glória. Dela seriam excluídos os casados e todos que não sujeitam a mãos alheias a vontade própria, nem vivem de esmolas. Neste caso não seria verdade que Deus quer que todos sejam Santos, como em vários lugares afirma a Sagrada Escritura, pois não quer que todos os homens pratiquem os Conselhos. A ordem de sua Providência quer que uns observem a continência, outros se casem, sejam ricos, pobres, não desaprova o Senhor que algumas pessoas se governem a si, aprecia, porém os que se submetem à obediência sacrificando a vontade própria. No entanto, quer que todos se tornem Santos. É, pois, um erro verdadeiro pensar que os Conselhos Evangélicos são necessários para a santidade. Se para a posse desta somente se requer a união completa com a vontade divina, e para havê-la é preciso evitar até as culpas veniais, e buscar nas coisas que não são ordenadas nem proibidas, o maior gosto de Deus; para vos convencer que não é mui difícil adquirir a perfeição cristã, união perfeita da nossa vontade com a de Deus, convém dizer que não custa muito evitar o pecado venial, e buscar em todas as coisas o maior gosto de Deus. Acerca destes vou fazer importante distinção.
I
Todos os Santos concordam que a Santidade cristã consiste na caridade, isto é na prática da vontade divina, a alma que a executa é santa, que melhor lhe obedece mais santa é. Não se pode duvidar da verdade desta doutrina, e nenhum autor espiritual dela duvidou. Alma devota, vede em que estado e condição estais, se procurais cumprir a vontade de Deus sois santa, e quanto melhor a executardes com perfeição mais santa sereis. Amo os que me amam, minhas delícias consistem em estar com os homens. Amei tanto o mundo que por ele dei minha vida, para que os que cressem em mim não se condenassem e alcançassem a vida eterna. Minha filha, por ti trabalhei, padeci fome, sede, fui ultrajado e perseguido, por teus pecados fui chagado, oprimido, angustiado, sofri a morte, para tua justificação ressuscitei, o amor com que te adotei como filha, me decidi a padecer assim: faze, pois penitência de tuas culpas volta-te para mim, lava-te no sangue das minhas chagas; adorna-te com os merecimentos da minha vida: tudo te dou com boa vontade, e por ti os ofereço; como Pai amante, com os braços abertos saio ao teu encontro a receber-te nas minhas entranhas; para que, me ames como te amo, vem a mim para eu te santificar, só quero teu coração.
Quem perdendo a esperança do perdão divino se abandona à desesperação, não acredita que Deus é Onipotente; pois pensa que há pecados que Ele não possa perdoar; mas também o supõem mentiroso, pois tendo prometido pelo Profeta que apenas o pecador chorar suas culpas o Senhor as esquecerá de todas, contra isto dizem os descendentes de Caim: A gravidade do meu pecado impossibilita o perdão. Blasfemo, o que dizes? Se Deus não pode perdoar, vencido pela grandeza do pecado, tu o privas da Onipotência; se não quer per-doar, O acusas de mentiroso, pois não cumpre o que tantas vezes prometeu por meio dos Profetas. O Salmo 144 diz que o Senhor é piedoso, clemente e mui misericordioso; manso e suave com todos, e que Sua misericórdia excede todas as Suas obras. Há, pois, coisa mais admirável do que haver criado o Céu com tantas estrelas que o iluminam, a terra com inumerável diversidade de animais, árvores, e tudo o mais, haver criado exércitos de Espíritos Angélicos? Quem ousaria afirmá-lo, se o Profeta não dissesse claramente que a misericórdia de Deus excede todas as Suas obras?
Levando seus pais o Menino Jesus ao Templo, Simeão esclarecido pelo Espírito Santo, de que não havia de morrer antes de ver Jesus Cristo, com inefável gozo o recebeu nos braços e disse: Agora deixa teu servo partir em paz, como se a necessidade e não à vontade o detivera no mundo; quebram-se nossas cadeias e a alma se liberta quando deixa a companhia do seu corpo, e isenta-se das terrenas tribulações. Para os justos a morte é porto de descanso, ficando livres da carga e embaraço do corpo, que os inclinava para os vícios, sua alma voa para as alturas habitar com o imortal e sumo Bem! Eis o destino dos que buscam praticar virtudes, obedecer a Deus. Não nos assuste, pois com demasia o fim destinado a todos os homens, anelemos sem temor pela presença do nosso Redentor, companhia dos Santos, e congregação dos Justos: aí veremos os mestres da nossa fé; embora não tenhamos feito muitas obras boas, havemos de reunir-nos a Abraão, Isaac, Jacó; lá também jubila o bom ladrão, companheiro dos cortesões da celeste Corte complexo de gozos, onde não há neves, trovões, relâmpagos, tempestades, trevas nem inferno. Não há frio, chuva, o sol atual, estrelas, pois só o resplendor de Deus lá fulgura; quando estivermos para morrer, recorramos com amorosa devoção a Jesus, Senhor nosso, abracemos Seus divinos pés, e O adoremos com as santas mulheres a quem apareceu no dia da Sua ressurreição, para que também nos diga:
Alegrai-vos desvanecei o temor dos pecados, pois Sou o perdão deles, não vos assustem as trevas, pois Sou a luz, nem a morte porque Sou a vida, e quem recorre a Mim não sofrerá a morte eterna.
Tu que na velhice ou no fim da vida começastes a seguir o caminho da virtude, deixando as torpezas dos vícios e culpas, e que já é homem de vontade reta, para que te assustas e te domina a tristeza, como se não tivesses esperança de salvação? Recorda-te de teu misericordioso e dulcíssimo Redentor, que veio ao mundo salvar pecadores; por eles encarnou, trabalhou, padeceu terrível Paixão, derramou Seu sangue, morreu!