LÁ vem um momento, em que o mistério desaparece, mesmo no mais nobre amor humano. Uma pessoa tornou-se «habituada» ao melhor e chegou a considerar isto a coisa mais natural do mundo, como os joalheiros podem lidar desinteressadamente com as pedras mais preciosas, sem se incomodar a admirá-las. O que plenamente possuímos, não o desejamos mais. Nem podemos esperar o que já conseguimos. No entanto a esperança, o desejo e sobretudo o mistério são necessários para conservarem vivo o nosso interesse na vida.
Quando a maravilha se desvanecer dos nossos dias, estes tonar-se-ão, então, banais. O nosso espírito foi feito para a luta e para tentar sempre a solução de algum problema elevado, que sempre nos escapa. A atual popularidade dos romances de mistério talvez seja motivada pelo fato de muitos terem deixado de meditar nos mistérios da fé e, por isso, buscam, em qualquer substituto barato que lhes vem à mão, algo que substitua o que perderam. Os leitores das histórias de mistério dispensam toda a sua admiração à maneira como alguém foi morto; mas não se interrogam, como os contemporâneos de Dante e de Miguel Angelo, a respeito do destino eterno dos que morrem.
O homem saciado, não pode ser feliz; o nosso entusiasmo deriva do fato de haver portas ainda por abrir, véus ainda por rasgar, harmonias ainda por tocar. Se o «amor» apenas for físico, o casamento acabará com a aventura amorosa: terminou a procura e desvendou-se o mistério. Sempre que uma pessoa nada tem que pareça estar fora do alcance do seu amante, há uma perda de sensibilidade e delicadeza que são a condição essencial da amizade, da alegria e do amor nas relações humanas. O casamento não é exceção alguma; uma das suas mais trágicas consequências é a mera posse sem desejo.
Já não resta amor, quando se chegou ao fundo, ou se imagina que lá se chegou. Aquele, cuja personalidade deixou de estar envolvida na neblina do mistério, é um importuno. Tem que haver sempre algo de velado, algum mistério que não tenhamos sondado, alguma paixão que não possamos saciar… e isto é verdade até nas artes. Não queremos ouvir uma cantora a repetir constantemente a sua nota mais aguda, nem um orador a retorar insistentemente a veementes patéticos.
No casamento verdadeiro há um mistério sempre crescente e, portanto, uma ventura amorosa sempre tecida de encanto. Pelo menos, quatro mistérios no casamento se podem enunciar. Primeiro, o do ser físico do outro cônjuge, o mistério do sexo. Quando foi desvendado e nasceu o primeiro filho, novo mistério principia: o marido vê na esposa uma coisa que, antes, nunca vira — o belo mistério da maternidade. Por sua vez, ela vê nele o doce mistério da paternidade. E como outros filhos vêm renovar sua força e beleza, nunca aos olhos da esposa o marido parece mais velho que no dia em que se encontraram, e a esposa apresenta-se tão frescamente bela, como quando se prometeram casamento.
Quando os filhos atingem o uso da razão, um terceiro mistério se vai desenrolando: o da arte paternal e arte maternal, isto é, a sujeição dos espíritos e corações juvenis ao jugo do Senhor. À medida que os filhos se vão aproximando da maturidade, mais se aprofunda este mistério: a personalidade de cada criança é algo que os pais devem ir explorando, para depois a formar mais parecida com o Deus de amor.
O quarto mistério do casamento feliz compreende a vida social, o contributo que eles, conjuntamente, proporcionam ao bem comum do mundo. Aqui se encontra a raiz da democracia, porque na família o indivíduo não é avaliado pelo que vale, nem pelo que pode fazer, mas pelo que é. A sua categoria e situação no lar é-lhe reconhecida pela simples razão de existir. Se uma criança é muda ou cega, se um filho foi mutilado na guerra, é amado mesmo assim, por causa de si mesmo e do seu valor intrínseco, como filho de Deus. Nenhum pai diminui o amor, porque as possibilidades de ganhar ou a sagacidade terrena se alteram no filho, nem se importa posição social a que a sua descendência possa pertencer. Na família, este respeito pela personalidade, em atenção a si mesma, é o princípio social de que depende uma vida mais ampla de comunidade, e uma vigorosa admoestação a não esquecer o mais importante de todos os princípios políticos: o estado existe para a pessoa e não a pessoa para o estado.
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(SHEEN, Dom Fulton. Rumo à Felicidade – WAY TO HAPPINESS. Tradução de Dr. A. J. Alves das Neves, pároco de São Pedro da Cova. Livraria Figueirinhas, Porto, 1956, p. 87-89)