Neste início de Quaresma, a liturgia faz-nos pensar na Páscoa. Isto porque o tempo quaresmal não é um fim em si mesmo, mas é caminho de luta e combate espiritual para bem celebrarmos, com o coração dilatado, a Páscoa do Senhor, maior de todas as festas cristãs.
Na primeira leitura, o Deuteronômio apresenta-nos o rito de oferta das primícias da colheita: ao apresentar ao Senhor Deus o fruto da terra, o israelita piedoso confessava que pertencia a um povo de estrangeiros e peregrinos, vindos do Pai Jacó, que não passava de um arameu errante. O israelita fiel recordava diante de Deus a história de Israel, história de escravidão e de libertação:
“Meu pai era um arameu errante, que desceu ao Egito… Ali se tornou um povo grande, forte e numeroso. Os egípcios nos oprimiram. Clamamos ao Senhor… e o Senhor ouviu a nossa voz e viu a nossa opressão… E o Senhor nos tirou do Egito… E conduziu-nos a este lugar e nos deu esta terra… Por isso eu trago os primeiros frutos da terra que tu me deste, Senhor”.
Éramos ninguém e o Senhor nos libertou, deu-nos uma vida nova – eis o resumo da história e da experiência de Israel!
Esta também é a nossa experiência, como Igreja, Novo Israel: “Se com a tua boca confessares Jesus como Senhor e, no teu coração creres que Deus o ressuscitou dos mortos, serás salvo”.
Também a nossa história é de libertação: éramos escravos, todos nós, do grande Faraó, o Pecado que nos destrói e destrói o mundo. Mas Deus enviou o Seu Filho numa carne de pecado (numa natureza sujeita às consequências do pecado):
Ele desceu a este mundo e entrou na nossa miséria, até a morte, a nossa morte.
Deus O arrancou da morte; ressuscitou-O e fez Dele Senhor e Cristo e quem Nele crê e confessa-O como Senhor na sua vida, encontra a salvação; encontra um novo modo de viver, encontra a paz, encontra já agora a comunhão com Deus e, depois, a Vida eterna!
Assim, Israel nasceu da Páscoa do deserto; a Igreja nasceu da Páscoa de Cristo.
Israel era escravo, atravessou o mar e o deserto e tornou-se um povo livre para o Senhor.
Nós éramos escravos, éramos ninguém, atravessamos as águas do Batismo com Cristo, e ainda que caminhemos neste deserto da vida, somos um povo livre para o Senhor nosso Deus.
O tempo da Quaresma prepara-nos para celebrar este mistério tão grande!
Recordemos que a Ressurreição de Cristo é causa da nossa ressurreição, é motivo da nossa comunhão com Deus é a razão da nossa fé cristã!
Há apenas dois domingos, São Paulo dizia abertamente:
“Se Cristo não ressuscitou, vã é a vossa fé, ainda estais em vossos pecados!” (1Cor 15,17).
Pois bem, neste sagrado tempo quaresmal, a Igreja nos quer preparar para a santa Páscoa, para que revivamos em nós, pessoal e comunitariamente, a libertação que Cristo nos trouxe com a Sua vitória.
Por isso, a Quaresma é um tempo de combate espiritual e de luta contra o pecado. É um tempo de seríssimo exame de consciência e de reorientação de nossa adesão ao Cristo Jesus. Só assim, atravessaremos o deserto dos quarenta dias rumo à Terra Prometida da Páscoa de Cristo, que se torna nossa Páscoa.
Nosso caminho quaresmal recorda e celebra tantas quaresmas:
a do dilúvio, quando durante quarenta dias e quarenta noites o Senhor Deus purificou a terra e a humanidade;
a de Moisés, que durante quarenta dias e quarenta noites jejuou e orou sobre o Sinai para encontrar o Senhor que lhe daria a Lei;
a de Israel, que caminhou no deserto durante quarenta anos;
a de Elias profeta, que caminhou quarenta dias pelo deserto rumo ao Horeb, monte de Deus;
a quaresma de Jesus nosso Senhor e Deus, que antes de iniciar publicamente Seu ministério, jejuou e orou quarenta dias e quarenta noites.
Eis o caminho de Deus, eis o nosso caminho: caminho de combate espiritual, de busca de Deus, de luta interior, de conversão!
Sem Quaresma ninguém celebra verdadeiramente a Páscoa do Senhor!
O evangelho de hoje, apresentando-nos as tentações de Jesus, nos ensina a combater:
Ele venceu Satanás ali, onde Israel fora vencido:
Israel pecou contra Deus murmurando por pão; Jesus abandonou-se ao Pai e venceu;
Israel pecou adorando o bezerro de ouro; Jesus venceu recusando dobrar os joelhos diante da proposta de Satanás;
Israel pecou tentando a Deus em Massa e Meriba; Jesus rejeitou colocar Deus à prova.
Nas tentações de Cristo estão simbolizadas as nossas tentações:
a concupiscência da carne (o prazer e a satisfação desregrada dos sentidos),
a concupiscência dos olhos (a riqueza e o apego aos bens materiais)
e a soberba da vida (o poder e o orgulho auto-suficiente e dominador).
Ora, Jesus foi tentado como nós, tentado por nossa causa, por amor de nós. Ele foi tentado como nós, para que nós vençamos como ele! Ele foi tentado não somente naqueles quarenta dias. O evangelho diz que “terminada toda a tentação, o diabo afastou-se de Jesus, para retornar no tempo oportuno”.
A tentação de Jesus foi até a cruz, quando Ele, no combate final, colocou toda a vida nas mãos do Pai e pelo Pai foi ressuscitado, tornando-Se causa de vida e ressurreição para nós, que Nele cremos, que O seguimos, com Ele combatemos e O proclamamos Senhor ressuscitado.
Caminhemos neste santo tempo rumo à Páscoa; usemos como armas de combate no caminho quaresmal: a oração, a penitência e a esmola do amor fraterno para que, ao final do caminho, sejamos mais conformes à imagem bendita do Cristo Jesus ressuscitado, nosso Senhor e Deus, vencedor do Maligno e da morte, a Quem seja a glória pelos séculos. Amém.