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Pensamento do Inferno

Meditação para o 19º Domingo depois do Pentecostes. Pensamento do Inferno

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus 22, 1-14

Naquele tempo, 1tendo Jesus recomeçado a falar em parábolas, disse-lhes: 2«O Reino do Céu é comparável a um rei que preparou um banquete nupcial para o seu filho. 3Mandou os servos chamar os convidados para as bodas, mas eles não quiseram comparecer. 4De novo mandou outros servos, ordenando-lhes: ‘Dizei aos convidados: O meu banquete está pronto; abateram-se os meus bois e as minhas reses gordas; tudo está preparado. Vinde às bodas.’ 5Mas eles, sem se importarem, foram um para o seu campo, outro para o seu negócio. 6Os restantes, apoderando-se dos servos, maltrataram-nos e mataram-nos.

7O rei ficou irado e enviou as suas tropas, que exterminaram aqueles assassinos e incendiaram a sua cidade. 8Disse, depois, aos servos: ‘O banquete das núpcias está pronto, mas os convidados não eram dignos. 9Ide, pois, às saídas dos caminhos e convidai para as bodas todos quantos encontrardes.’ 10Os servos, saindo pelos caminhos, reuniram todos aqueles que encontraram, maus e bons, e a sala do banquete encheu-se de convidados.

11Quando o rei entrou para ver os convidados, viu um homem que não trazia o traje nupcial. 12E disse-lhe: ‘Amigo, como entraste aqui sem o traje nupcial?’ Mas ele emudeceu. 13O rei disse, então, aos servos: ‘Amarrai-lhe os pés e as mãos e lançai-o nas trevas exteriores; ali haverá choro e ranger de dentes.’ 14Porque muitos são os chamados, mas poucos os escolhidos.»

Meditação para o 19º Domingo depois do Pentecostes

SUMARIO

Meditaremos sobre as últimas palavras do Evangelho do dia, onde debaixo da figura do castigo infligido ao convidado às bodas, que não tinha veste nupcial, nos são representados os tormentos do inferno reservados ao pecador, que manchou a veste da sua inocência, e não a lavou com a sua penitência; e veremos que o pensamento do inferno é:

1.° Um remédio contra o pecado;

2.° Um meio eficaz para nos acostumarmos à virtude.

— Tomaremos depois a resolução:

1.º De nunca permanecermos vinte e quatro horas num estado em que, se morrêssemos, seríamos condenados;

2.° De nos animarmos em todos os obstáculos à virtude com este pensamento:

“Que é isto em comparação do inferno, onde arderei sempre, se não for um santo?”

O nosso ramalhete espiritual será a palavra de Santo Agostinho:

“Desçamos ao inferno durante a vida, para não descermos lá depois da morte” – Descendamus in infernum viventes, ut non descendamus mortui

Meditação para o Dia

Adoremos Jesus Cristo advertindo-nos, com o Evangelho deste dia, quais são as penas do inferno, a fim de nos incitar a evitá-las. São medonhas trevas, choro e ranger de dentes, provocados pela dor; são os pés e mãos atados, isto é, a vontade forçada a querer obstinadamente o mal, que ela detesta, e a detestar com furor o bem, cuja excelência sente. Oxalá possamos pensar seriamente e muitas vezes nesta desgraça! Acharemos neste pensamento um remédio contra o pecado e um meio eficaz para inclinar a alma à virtude.

PRIMEIRO PONTO

O pensamento do Inferno, remédio para o pecado

Este remédio tem o tríplice efeito de nos fazer expiar os pecados passados, corrigir os pecados atuais, e evitar aqueles a que o futuro poderia expor-nos.

1.° Faz-nos expiar os pecados passados. Com o pensamento de que merecemos o inferno, e de que Deus somente nos perdoa com a condição, que façamos penitência (1), não há penitência que pareça muito dura, e a alma precisa mais de ser contida do que excitada: como o provam esses antigos solitários do Egito que, por causa de um só pecado, se entregavam toda a vida a austeridades que assustam os nossos efeminados costumes.

2.° O pensamento do inferno corrige os pecados atuais. Com este pensamento seriamente meditado, é impossível permanecer um só dia em estado de pecado, ainda duvidoso. É uma loucura arriscar a nossa salvação, e não buscar o meio seguro de escapar a tão tremenda desgraça.

3.° Este pensamento faz evitar os pecados, a que o futuro poderia expor-nos. Quando dizemos conosco, como Santa Tereza: Sempre, nunca! Sempre padecer, nunca deixar de padecer, é impossível, que nos exponhamos voluntariamente ao perigo de pecar; que não vigiemos sobre nós mesmo, sobre todos os nossos pensamentos; que não fujamos de tudo o que arrisca a salvação, das ocasiões e das mesmas aparências do pecado, da dissipação, da ociosidade, das companhias perigosas, das leituras ou conversações licenciosas; é impossível, finalmente, que não oremos de todo o coração, não tomemos todas as precauções para evitar o pecado.

SEGUNDO PONTO

O pensamento do Inferno, meio eficaz para nos acostumarmos à virtude

Com efeito, este pensamento consolida a virtude com a humildade que inspira; aumenta-a com os atos que ela induz a praticar; aperfeiçoa-a com o amor que excita.

1.° Este pensamento torna-nos humildes. Vimos já, na sexta-feira da segunda semana depois de Pentecostes, que, ainda que tenhamos cometido um só pecado, e esse pecado nos fosse perdoado, não somos mais que um homem que escapou ao inferno, que mereceu ser atormentado, insultado e desprezado pelos demônios; e ignoramos se merecemos ainda este tratamento, porque ninguém sabe se é digno de amor ou de ódio; não sabemos tão pouco se, suposto que sejamos hoje dignos do céu, não seremos um dia dignos do inferno: não é necessário para isto senão um momento de fraqueza, um pensamento de soberba como o mostram os anjos rebeldes; senão uma maledicência, uma falta de pureza, segundo São Paulo; senão um desejo, um lance de olhos, segundo Jesus Cristo.

Ora não são todas estas considerações muito próprias para nos conservarmos humildes?

2.° Assim estabelecido o fundamento da virtude, o pensamento do inferno aumenta a virtude pelos atos que ele induz a praticar. Por certo nos custa a abnegar-nos a nós mesmo, a renunciar à leviandade, à dissipação, ao amor-próprio, a sujeitar-nos a uma vida regrada; mas quando pensamos no inferno, dizemos conosco:

“Que é tudo isto comparado com o inferno, onde ei-de arder sempre, se não for um santo?”

E então já não hesitamos. Custa-nos a mortificar os nossos sentidos, a humilhar-nos, a sofrer a dor, a contradição, o desprezo e o escárnio; mas quando pensamos no inferno, dizemos conosco:

“Que é tudo isto comparado com o inferno, onde ei-de arder sempre, se não for um santo?”

E daí concluímos:

“Ah! Ainda que me fosse preciso privar-me de todos os prazeres, sujeitar o meu corpo aos rigores da mais austera penitência; ainda que me fosse preciso passar os dias e as noites em oração, sepultar-me vivo, cortar os meus braços, arrancar os meus olhos, sacrificar os meus bens e a minha liberdade, não deveria vacilar um instante: porque, que é tudo isto comparado com o inferno, onde ei-de arder sempre se não for um santo?”

Assim discorrem, cheios de intrepidez, os que pensam no inferno; assim discorria Santo Agostinho, quando pedia a Deus que lhe fizesse padecer nesta vida o ferro e o fogo, contanto que lhe perdoasse na outra (1). Assim o compreendia esse antigo solitário, que dizia a um jovem religioso enfastiado da sua solidão:

«Ah! Meu filho, decerto nunca meditaste bem no que é o inferno, de que te livras na solidão»

Assim o compreenderam todos os mártires, todos os anacoretas, todos os ilustres penitentes, todos os santos finalmente; porque é do pensamento do inferno que eles tiram a coragem que os fez santos. Portanto, o pensamento do inferno aumenta a virtude.

3.° Aperfeiçoa-a com o amor que excita. Porque não há meio termo: ou arder em amor para com Deus sobre a terra, ou arder eternamente no inferno. Ora em semelhante alternativa, não se pode hesitar. Nada há mais cruel que o inferno, nada mais doce que o amor divino. Além disto, como é possível não amar a Deus que nos ama tanto, que quer a todo o custo que O amemos, pois só fez o inferno para nos obrigar a amá-lO? Como não amar um Deus, cuja ira, até mesmo provocada pelos nossos crimes, cria uma ordem de coisas que nos interessam no tempo e na eternidade? Ora é o que Ele fez, criando o inferno: porque se não houvesse inferno, a que ponto teríamos nós chegado? As leis naturais, divinas e humanas, seriam sem sanção, as paixões sem freio, o vício sem dique: então deixaria de haver garantia de ordem para a sociedade na terra, escolhidos para o céu, e o céu seria um reino sem habitantes.

Bendito e louvado pois sejais, meu Deus, não somente por nos terdes preparado as delícias do céu, mas também por terdes criado o inferno para reprimir as nossas paixões. Com isto obrigastes-nos a salvar-nos, e a vossa ira tem servido os desígnios do vosso amor. Finalmente, como é possível não amar um Deus que tem obrado tantos prodígios, e recorrido a tantos meios para nos preservar do inferno? A Encarnação, a Redenção, a conversão da Santa Igreja, o sacerdócio e todos os Sacramentos, todas as graças interiores e exteriores, todas as inspirações do Espírito Santo, todos os ensinos que ouvimos e bons exemplos que vemos, são outros tantos meios de que se serve para nos salvar. Oh! Quão dignos são do nosso amor tantos benefícios! E que diremos dessa paciência divina, que não nos deixou cair no fundo do inferno, quando o merecíamos? Ele conservava-nos como suspensos por um cabelo sobre o abismo; não tinha mais que abrir a mão, largar-nos, e estávamos perdidos (Sl 93, 17; 85, 13). Bendigam todas as criaturas ao Senhor por ter esperado que eu fizesse penitência! (Dn 3, 56). Ai! Tem caído no abismo tantos outros, depois de um só pecado, e eu muito mais culpado que eles, respiro ainda.

Tenho à minha disposição todas as Vossas graças para me salvar, ó bondade divina! Ó inefável predileção! Movido de tanto amor, ó meu Deus, eu quero mostrar-Vos a minha gratidão durante toda a minha vida. Devia ser sacrificado à Vossa ira, sacrificar-me-ei ao Vosso amor; havia de amaldiçoar-Vos sempre, abençoar-Vos-ei sempre; havia de Vos blasfemar, publicarei por toda a parte os Vossos louvores e bondade; havia de sofrer sempre, amar-Vos-ei sempre.

Resoluções e ramalhete espiritual como acima

Referências:

(1) Paenitentia compendium ignium aeternorum (Tertuliano)

(2) Hic ure, hic seca, modo in aeternum parcas (Santo Agostinho)

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(HAMON, Monsenhor André Jean Marie. Meditações para todos os dias do ano: Para uso dos Sacerdotes, Religiosos e dos Fiéis. Livraria Chardron, de Lélo & Irmão – Porto, 1904, Tomo V, p. 62-68)