Lição 1: Título e conteúdo de 1/2 Reis
Os dois livros constituem, a princípio, uma só obra: foi desdobrada em duas pelos tradutores alexandrinos (LXX), a fim de facilitar o uso dos manuscritos; essa divisão se tornou comum a todas as edições da Bíblia. A Vulgata latina intitula esses escritos ”3° e 4° dos Reis”, pois considera 1° e 2° Sm como se fossem o 1° e o 2° dos Reis. Tal nomenclatura da Vulgata já não é utilizada em nossos dias.
1/2Rs narram a história de Israel desde Salomão até o exílio babilónico (587-538 a.C.). Começa com os últimos dias de Davi (972) e termina com a libertação de Jeconias, rei de Judá, que estava detido na Babilônia (561); abrange, pois, cerca de quatrocentos anos de história, que contém os elementos mais significativos da história de Israel: o apogeu da monarquia sob Salomão, sua divisão em dois reinos rivais (o de Samaria e o de Judá), a queda de ambos (em 722 e 587 respectivamente), a destruição da cidade santa de Jerusalém e o exílio na Babilônia (ponto importantíssimo da história do povo hebreu). Tal é também a época dos grandes profetas (Elias, Eliseu, Amós, Oséias, Isaías, Jeremias, Ezequiel…).
1/2Rs se dividem em três partes, de proporções desiguais: a mais extensa é a segunda, que cobre dois séculos e duas séries de reinados:
1) Reinado de Salomão, esplendor e decadência: 1Rs 1,1-11,43;
2) Separação e história dos dois reinos separados: o de Israel (Samaria ou Efraim) ao norte, e o de Judá ao sul, até a queda de Samaria e a deportação dos habitantes desta: 1Rs 12,1-2Rs 17,41. Esta divisão do povo entre setentrionais e meridionais não era algo de novo, mas sim o cume de antigas rivalidades; basta lembrar que, após a morte de Saul, Davi só conseguiu ser reconhecido pelas tribos do Norte após mais de sete anos.
3) História do reino de Judá até a destruição de Jerusalém e o exílio babilónico, com alusão final à libertação de Jeconias: 2Rs 18,1-25,30.
Na primeira parte (1 Rs 1,1-11,43), distinguimos dois períodos:
- os preliminares do reinado de Salomão: sucessão a Davi e morte deste (1,1-2,12); a eliminação dos adversários políticos pelo novo rei (2,13-46).
- o governo do “rei-sol”(3,1-11,43), no qual também distinguimos dois períodos: a glória de Salomão, rei sábio e construtor (3,1-10,29); os insucessos de Salomão como castigo de seus pecados, especialmente a admissão de cultos pagãos por condescendência com mulheres estrangeiras (11,1-43).
A segunda parte é uma galeria de reis que ocupam sucessivamente o trono de Judá e o da Samaria. Doze reis se sucedem em Judá, todos da mesma dinastia davídica; esta é posta em perigo, mais de uma vez, por revoluções, mas o Senhor a preserva providencialmente a fim de cumprir a promessa feita a Davi (cf. 2Sm 7,14-16). Ao contrário, na Samaria reinam sucessivamente dezenove monarcas, pertencentes a um conjunto de nove dinastias; perdeu-se aí a sucessão dentro da linhagem de Davi. Eis os episódios mais notáveis desse segmento da história (930-721):
- Jeroboão proclama a separação das dez tribos do Norte; constitui os santuários de Betel e Qã, onde colocou bezerros de ouro, símbolos da Divindade (1Rs 12,1-13,34); para que o povo não descesse a Jerusalém, o rei criou santuários próprios, cismáticos;
- o ciclo do profeta Elias, que ficou sendo muito popular e caro a Israel (1Rs 17T1-2Rs 1,17). Tem-se aqui uma figura corajosa, que enfrenta reis e falsos profetas para defender a causa do único Deus. A leitura de tais episódios é agradável por seus pormenores muito vivazes. Ver em Eclo 48,1-11 como Elias foi posteriormente apreciado;
- o ciclo de Eliseu, discípulo de Elias, também muito popular e autor de milagres (1 Rs 19,19-21 ;2Rs 2,1-25; 3-9; 13). Ver em Eclo 48,12-14 a imagem que de Eliseu faziam os pósteros;
- o golpe de estado de Jeú, da Samaria (2Rs 9,1-10,36);
- façanhas de Joás de Judá (2Rs11,1-12,22); salvo de um morticínio que atingiu todos os seus irmãos, foi escondido por sua tia no Templo do Senhor, onde permaneceu seis anos com sua ama. Quando subiu ao trono após a morte de Atália, sua perseguidora resolveu restaurar o templo de Jerusalém;
- o reinado de Acaz de Judá (736-716). Deve-se levar em conta que a Terra Santa ficava entre os poderosos impérios da Mesopotâmia (Assíria e Babilônia) e do Egito; estes disputavam entre si o domínio sobre os povos da Palestina, da Síria e vizinhanças. Isto obrigava os filhos de Israel a procurar apoiar-se sobre um dos dois contendentes: ora, sobre o Egito para se defender da Assíria ou da Babilônia, ora sobre os mesopotâmios para se defender do Egito (ver mapa do próximo Oriente no fim da sua edição da Bíblia). Esta política de alianças com estrangeiros era espontânea aos filhos de Israel, mas proibida pelo Senhor Deus, que queria evitar o perigo de contaminação religiosa do povo santo. Muitas vezes os profetas se insurgiram contra as alianças com povos pagãos; ver Is 30,1-7; 31,1-3, Jr 2,18; também Is 36,4-10. – Ora, sob o rei Salomão as relações de Israel com o Egito eram muito boas, como se percebe das uniões conjugais de Salomão (1Rs 3,1; 9,15s); os egípcios deram asilo a Jeroboão, que se rebelara contra Salomão (1Rs 11,40; 14,25-27). Mas no século IX a.C., com o rei Assur-nasir-apai (884-859), os assírios se fortaleceram e passaram a se impor no cenário da Palestina. Foi precisamente então que Acaz de Judá (2Rs 16,7-10) resolveu pedir auxílio a Tiglaí-pileser III da Assíria contra os reis de Samaria e da Síria, que ameaçavam Judá (2Rs 16,7-10). Nesse período desenvolveu-se parte da atividade do profeta Isaías; este interveio junto ao rei Acaz para lhe recomendara confiança em Javé, e não no auxilio dos estrangeiros; cf. Is 7,1-17;
- o rei Oséias da Samaria tentou emancipar-se do tributo que os assírios lhe haviam imposto. Em conseqüência, Salmanassar V cercou a Samaria, que capitulou em 722. Deu-se então o fim do reino de Israel ou Samaria, com a deportação dos israelitas mais capacitados para Haia, na Mesopotâmia do Norte (2Rs 17,1-6; cf. Is 28,1-6). A queda de Samaria levou o autor sagrado a uma meditação sobre o triste acontecimento; segundo a mentalidade deuteronomista, ele atribui a ruína do reino setentrional ao pecado e à infidelidade da Samaria à Lei do Senhor. É muito típica da corrente deuteronomista a reflexão posta em 2Rs 17,7-23. – Em lugar dos israelitas deportados, os assírios enviaram colonos para a Samaria; estes se mesclaram com os israelitas remanescentes no país, dando origem a um povo bastardo, os samaritanos, que os judeus não toleravam, porque resultavam de matrimônios ilícitos; cf Jo4,9; Lc9,53; 10,33; At 8,5.
A terceira parte (2Rs 18,1-25,30) descreve a história do reino de Judá desde 721 até a sua queda em 587. Foi este um período de declínio religioso, em que se destacaram duas figuras de reis reformadores: Ezequias (717- 687) e Josias (649-609).
Ezequias (2 Rs 18,1-20,21) foi um rei piedoso, que eliminou todas as formas de culto pagão, inclusive o culto nos bosques e nas colinas (reminiscência do culto pagão dos cananeus). Sob Ezequias desenvolveu-se intensa atividade literária; foram recolhidos provérbios proferidos por Salomão (cf. Pr 25,1), assim como leis e histórias do povo eleito.
Josias (2Rs 22,1-23,30) foi outro entusiasta reformador do culto de Javé. Durante as obras de restauração do Templo, foi encontrado um exemplar da Lei do Senhor (2Rs 22,3-23), o chamado “Deuteronômio” (ao menos o núcleo central; Dt 12-26); em conseqüência, foram eliminados os cultos idolátricos e celebrada solenemente a Páscoa. Infelizmente Josias morreu em expedição contra Necao, o faraó do Egito, na batalha de Meggido (2Rs 23,29s). Sob Josias teve início a atividade profética de Jeremias.
Lição 2: A mentalidade de 1/2 Rs
Os livros 1/2Rs são a expressão de mentalidade profundamente religiosa, muito inspirada pelos princípios deuteronomistas. Notemos, por exemplo, os seguintes traços:
1) Biografia dos reis
Cada rei é apresentado dentro de um esquema bem definido:
Introdução: sincronismo de um rei com o contemporâneo do outro reino, anos de reinado e, para os reis de Judá, idade que tinham quando subiram ao trono, muitas vezes também o nome da mãe.
Corpo: juízo sumário sobre o rei, proferido na base da sua atitude frente à Lei do Senhor. Os reis da Samaria são condenados em bloco por terem seguido o modelo do cismático Jeroboão (cf. 1Rs 14,7-9; 16,26-28; 2Rs 15,9.18.24.28…). Os reis de Judá são julgados em relação a Davi, “o rei segundo o coração de Deus“; o autor os distribui em três categorias;
- reis maus, por terem permitido ou praticado a idolatria; assim Abdias, 1 Rs 15,3- 5 ; Acaz, 2 Rs 16,2-4; Manassés, 2 Rs 21,2-9 ; Joacaz, 2 Rs 23,32;
- reis bons, por terem combatido a idolatria, embora tenham deixado subsistir o culto a Javé nos bosques e nas colinas, à semelhança dos cananeus; assim Asa, 1Rs 15,11-13; Josafá, 1 Rs 22,43-47; Joas, 2Rs 12,2-3; Amasias, 14,4, Azarias 15,3s; Joatam, 15,34;
- reis ótimos, por terem combatido a idolatria e também o culto nas colinas; assim Ezequias, 2Rs 18,3-5, e Josias, 2Rs 22,2; 23,25. Entre os reis da Samaria, os pecados se foram sucedendo na escala de crescente gravidade: Jeroboão proclamou a ruptura de Samaria com Judá e construiu dois santuários cismáticos em Betel e Dã respectivamente (1Rs 12,20-33); Baasa e seu filho Ela introduziram a idolatria (1Rs 16,12s; cf. 21,22); Omri e seu filho Acab “superaram os seus antecessores”, chegando ao culto oficial do deus fenício Baal (1Rs 16,25.30-33).
2) Inspiração deuteronômica
Os dois livros dos Reis não tencionam narrar a história pela história, mas, sim, para realçar que os acontecimentos humanos são orientados por Javé, para cumprimento do seu plano de salvação. Especialmente os golpes e reveses sofridos pelo povo eleito são vistos como sinais da justiça divina, que assim quer chamar os infiéis à consciência do seu pecado e à conversão. O leitor de 1/2Rs, segundo o autor sagrado, deve reconhecer as culpas dos antepassados e suas próprias culpas, que são resposta inadequada aos benefícios recebidos do Senhor; em conseqüência, procure voltar a Deus, que o pecado menospreza. A tese teológica do livro se encontra em 2Rs 17,7:
“Isto aconteceu, porque os filhos de Israel tinham pecado contra Javé seu Deus, que os tirara da terra do Egito”.
Muito sabiamente comenta o exegeta contemporâneo São Garofalo:
“O hagiógrafo… repensou a história da própria nação, de modo a destacar a providência daquele Deus que governa os acontecimentos humanos. Estes, aos olhos míopes do observador naturalista, ficam muitas vezes desligados entre si ou parecem devidos a pura trama de política humana e de exigências econômicas… No fundo, a história do livro dos Reis é a história vista com os olhos de Deus”.
Isto não quer dizer que o autor sagrado tenha distorcido os acontecimentos; ao contrário, ele mostra particular respeito por suas fontes. Por causa da sua fidelidade à história, o hagiógrafo não deixa de relatar aspectos pouco lisonjeiros de personagens que gozam da sua simpatia: por exemplo, as falhas do rei Salomão (1Rs 11,1-13), o sacrifício oferecido por Elias, que não era levita, fora de Jerusalém, no Carmelo (1Rs 18,30-38)…, também refere acontecimentos que contrariam a tese de fundo do livro: os desastres que aconteceram aos dois reis mais piedosos (o cerco de Jerusalém sob Ezequias, 2Rs 18,13-19,37, a derrota e a morte prematura de Josias, 2Rs23,29s).
Lição 3: Autor e data de origem
Há indícios de redação de 1/2Rs antes do exílio (1Rs 8,8; 9,21, 12,19; 2Rs 8,22; 16,6), como também há indícios de redação posterior ao exílio (2Rs 24,18-25,21; 25,22-26; 25,27-30).
O autor da primeira redação terá sido o autor principal, supõe-se que era filho de Jerusalém, provavelmente sacerdote, devoto do templo e convicto adepto dos princípios deuteronômicos. Talvez tenha trabalhado sob o rei Josias, ou seja, entre o início da reforma religiosa (621) e a morte do rei (609).
A tradição judaica atribui 1/2Rs ao profeta Jeremias. Entre outras razões, alegam-se semelhanças de língua e estilo entre 1/2Rs e Jr (cf. 2Rs 24,18-25,30 e Jr 52); além disto, o profeta não é citado em 1/2R, embora tenha exercido intensa atividade nos últimos anos do reino de Judá. Todavia tal tese não se apóia em argumentos suficientes; o fato de Jeremias não ser citado em 1/2Rs pode até depor contra tal tese, pois o profeta não tem dificuldade de falar de si no seu livro.
Para ulterior aprofundamento:
BALLARINI, T., Introdução à Bíblia H/2. Ed. Vozes 1976.
GRUEN, W., O tempo que se chama hoje. Ed. Paulinas 1977. CASTANHO, A., Iniciação à leitura da Bíblia. Ed. Santuário 1980. LAPPLE, A., Bíblia. Interpretação atualizada e catequese. Vol. l: o Antigo Testamento. Ed. Paulinas I978.
Perguntas sobre os Livros dos Reis
1) Compare a aparição de Deus (teofania) a Elias em 1Rs 19,9-14 com a aparição a Moisés em Ex 33,18-23. Quais os pontos semelhantes e quais as diferenças?
2) Como é que Elias desafiou os profetas de Baal em 1Rs 18,20-40?
3) Leia 1Rs 21,1-29 e responda:
– Quais os valores que Nabot defendia?
– De que crime foi acusado?
– Você vê alguma semelhança entre o crime de Acab, o crime de Caím (Gn 4,1-16) e o pecado de Davi em 2Sm 11,1-12,10?
4) Queira ler a oração de Salomão em 1Rs 8,22-61 e indique os pontos que mais o(a) tocaram.
5) Que quer dizer a imagem da lâmpada em 1Rs 11,36 e 2Rs 6,19?