Lição 1: O fundo de cena
Os livros de Esdras e Neemias relatam a restauração do povo judeu na sua terra após o exílio (587-538 a.C.). Cobrem um período de tempo que vai possivelmente até 398 a.C. Após esta data, a história de Israel não nos é documentada pela Bíblia até a época dos Macabeus, que começa em 175. A partir de fontes não bíblicas, podemos assim reconstituir os principais acontecimentos:
O domínio persa, sob o qual os judeus voltaram à Terra Santa, não ocasionou dificuldades religiosas para Israel. Os persas foram vencidos por Alexandre Magno na batalha de Arbelas (331 a.C.). Já antes, em 338 a.C., Alexandre havia invadido a Palestina. Morto o imperador em 323, os seus territórios foram repartidos entre os generais: Ptolomeu I Lago ficou com o Egito e, a partir de 295, com a terra de Judá; o domínio da família dos Ptolomeus se estendeu até 198 sem incômodo religioso para os judeus (exceto sob o reinado de Ptolomeu IV, 221-203).
Em 198, Antíoco III, que reinava na Síria, venceu Ptolomeu V na batalha de Panion, e passou a dominar a Palestina; foi favorável aos judeus e ao Templo de Jerusalém. O seu sucessor, Seleuco IV (187-175), deixou os judeus em paz, até o último ano do seu reinado, quando tentou depredar o Templo de Jerusalém (cf. 2Mc 3,1-40). O rei seguinte, Antíoco IV (175-163), ocupou Jerusalém, e quis impor aos judeus costumes pagãos ou a helenização, com anfiteatros, estádios esportivos, consumo de carne de porco… Muitos judeus resistentes foram mortos; outros, reduzidos a escravidão; outros, porém, cederam à pressão, desertando da fé. O Templo de Jerusalém foi profanado, pois nele introduziram uma estátua de Júpiter.
Levantou-se então o sacerdote Matatias, como chefe de guerrilha e guerra contra os sírios, acompanhado por seus filhos João, Simão, Judas, Eleazar e Jônatas (1Mc 2,1-14). O mais valente de todos esses guerreiros foi Judas, chamado “Macabeu” (= martelo, provavelmente). – Aliás, o nome “Macabeu” passou a designar todos os que resistiam aos dominadores pagãos (em 2Mc 7, sete irmãos mártires são chamados “macabeus”). A família de Matatias também foi dita “dos hasmoneus”; uma vez bem sucedida na luta, teve a chefia em Judá durante uns 130 anos, mas aos poucos foi perdendo a sua têmpera ardorosa e cedeu aos costumes pagãos, de modo que o nome “hasmoneu” soa mal aos ouvidos dos judeus até hoje.
Os livros dos Macabeus narram as façanhas da resistência judaica; o primeiro vai do começo do reinado de Antíoco IV (175 a.C.) até a morte de Simão Macabeu {134 a.C.), o que equivale a quarenta anos; o segundo não continua o primeiro, mas vai de 175 a 160 a.C.
Abordemos cada qual dos dois livros.
Lição 2: O primeiro livro dos Macabeus
1. O 1Mc, após breve relato da difícil situação (1,1 -2,70), narra os feitos de Judas Macabeu (166-160) em 3,1-9,22; os de Jônatas (160-142) em 9,23¬12,53, os de Simão (142-134) em 13,1-16,22. Judas conseguiu vencer os sírios e recuperar o Templo, que ele mandou purificar e dedicar de novo em 164(3,1- 4,61); morreu no campo de batalha (9,17s). Jônatas foi ainda mais feliz em suas campanhas militares e diplomáticas, mas começou a se afastar do ideal do seu pai, aliando-se a pagãos e colocando os interesses políticos acima dos religiosos; aceitou ser nomeado Sumo Sacerdote pelo rei sírio Alexandre Balas, morreu vítima de emboscada em 142. Sucedeu-lhe seu irmão Simão, cujo prestigio ainda foi maior; cultivando amizade com os estrangeiros (sírios, espartanos, romanos), obteve a autonomia política para seu povo; usava os títulos de “Sumo Sacerdote” e “Etnarca” (chefe da nação) dos judeus; cf. 15,1. Morreu tragicamente colhido em cilada, e teve por sucessor seu filho João Hircano (134); cf. 16,11-24.
2. O 1Mc é o livro bíblico que mais se aproxima do modo cientifico de narrar a história; expõe os fatos – geralmente façanhas militares – com clareza e objetividade; não deixa, porém, de ceder ao gosto dos historiadores semitas antigos, quando, por exemplo, exagera os números dos soldados postos em guerra (4,28.34; 5,30.45; 6,30; 7,41…) ou as dimensões da derrota do inimigo (5,50s; 7,46…). O autor se compraz em referir longos discursos e orações (2,49¬68; 3,18-22.50-60; 4,8-11…) e em transmitir ao leitor fragmentos da poesia popular (1,27-29.38-42; 2,8-13; 2,1-9…).
Algumas passagens do livro parecem ser o depoimento de uma testemunha ocular, que acompanhou de perto os acontecimentos (6,39; 7,33; 8,19; 9,43-49). Outros trechos nos apresentam o próprio texto de documentos oficiais, que o autor deve ter conhecido nos arquivos e nos anais do Templo de Jerusalém; ver 5,10-13 e 8,23-32 (cartas a Galaad e aos romanos), 12,6-18 (carta de Jônatas aos espartanos); 15,16-21 (carta de Lúcio, cônsul romano, a Ptolomeu), 14,27-45 (inscrição em honra de Simão)…
3. A leitura de 1Mc talvez pareça um tanto árida, porque o autor se detém longamente nos acontecimentos de guerra e nas intrigas políticas. É preciso, porém, perceber através dessas narrativas a fé ardente do judeu que as escreve; ele é um adversário enérgico da helenização ou paganização da sua gente e quer exprimir a sua admiração pelos heróis que combateram em prol da Lei e do Templo e que reconquistaram para o povo a liberdade religiosa. As diversas façanhas do livro são precisamente a demonstração do zelo religioso: por causa da Lei Santa a batalha começa (2,21s. 27.42-48) e só termina quando a Lei é devidamente restaurada na vida do povo (3,20s; 14,14). Observemos que o nome de Deus é sempre substituído por outra expressão como “o Céu” (3,18s.50.60; 4,10.24; 12,15…), “Ele…” (4,24)…
O autor deve ter escrito nos últimos anos de João Hircano (134-140 a.C.) ou pouco depois da morte dele, em hebraico, na Palestina. O livro não foi recebido pelos judeus da Palestina em seu catálogo bíblico, pois estes julgavam encerrado o cânon antes da época dos hasmoneus, que não lhes era de grata recordação. Os israelitas, porém, estimavam os livros dos Macabeus, como se depreende do uso que deles fazem os escritores Flávio José (37-95 d.C.) e Filon de Alexandria (t 44 d.C.).
Lição 3: O segundo livro dos Macabeus
1. O 2Mc repassa a história dos Macabeus desde a tentativa, feita por Heliodoro (ministro de Seleuco IV), de depredar o Templo de Jerusalém até a morte de Nicanor, General do rei Demétrio II da Síria, ou seja, desde 175 até 160 a.C.
Após uma introdução, que apresenta duas cartas e o prólogo (1,1-2,32), o livro se divide em duas partes:
1) a perseguição movida pelos reis Seleuco IV e Antíoco IV (3,1-7,42);
2) a guerra de Judas Macabeu contra os sírios (8,1-15,37). Donde se vê que 2Mc corresponde apenas a primeira das três partes de 1Mc (1Mc 3,1-9,22).
2. O 2Mc é o resumo de uma obra que constava de cinco volumes, escrita por Jasão de Cirene. O próprio autor do resumo nos diz no prefácio (cf. 2,20-33) que a longa obra de Jasão constava de dados prolixos e copiosos (cf. 2,24), que provavelmente foram retirados dos arquivos do Templo e dos depoimentos de testemunhas oculares. O estilo, porém, do autor de 2Mc muito difere do estilo de 1Mc: parece um pregador mais do que historiador; compraz-se em descrições trágicas, na menção de intervenções extraordinárias de Deus e dos anjos nos acontecimentos narrados; serve-se de construções retóricas e apresenta números exagerados (cf. 3,11; 10,23); propõe suas reflexões piedosas sobre os acontecimentos (5,17-20; 6,12-17, 6,31….). Aliás, tal modo de escrever não era raro na época entre os autores de língua grega. Pode-se dizer que entre 1 e 2Mc existe a diferença que há entre 1/2Rs e 1/2Cr; estes são livros cujo fio condutor é estritamente teológico, procurando enfatizar a ação do Senhor na historia mais do que Rs.
A finalidade do autor era confirmar a fé dos leitores na Providência de Deus para com seu povo. Quase toda a história narrada versa sobre o Templo de Jerusalém; os pagãos reconhecem a santidade deste (2,22; 3,2; 5,15; 15,18); o próprio Céu a afirma solenemente (3,24-29; 13,6-8; 14,32-35; 15,28-35), a profanação do Templo é apresentada como algo permitido por Deus (5,17-20); de resto, também as duas cartas transcritas no início do livro (1,1-10a; 1,10b- 2,19) tratam da celebração da festa da dedicação (hanukká) do Templo.
Note-se que a família dos hasmoneus é, de certo modo, posta na penumbra; somente no cap. 8 começa a menção de Judas, tido como o herói que reconquista o Templo. As figuras de Eleazaro (6,18-31) e dos sete irmãos “macabeus” (7,1-42), que não ocorrem em 1Mc, são descritas por 2Mc como mártires defensores da Lei de Deus, desprezada pelos ímpios.
Muito digno de nota é que em 1/2Mc se acham três relatos da morte do rei Antíoco IV; 1 Mc 6,1-16; 2Mc 1,11-17 e 2Mc 9,1-29. Ora observemos que o primeiro e o terceiro concordam entre si em suas linhas principais; o segundo, porém, diverge; deve ser o eco das tradições populares, que imaginaram o trágico desfecho do rei perseguidor; o autor sagrado apenas transcreve a carta que contém tais tradições populares, sem pretender garantir a veracidade das mesmas; ele é fiador apenas do que ele afirma como autor sagrado (1 Mc 6.1-16 e2Mc9,1-29). Ver 1a Etapa, módulo I.
As numerosas aparições de anjos e figuras maravilhosas em 2Mc não são algo de impossível; cf. 3,25s; 5,2-4; 11,6-8; 15,23… Visto, porém, o estilo geral do livro, pode-se crer que o autor sagrado, ao mencioná-las, tenha intencionado apenas salientar a intervenção de Deus que não abandona o seu povo; tais cenas seriam a concretização literária daquilo que o 1Mc chama simplesmente “o auxilio proveniente do céu” (1Mc 16,3; cf. 3,19; 4,10; 9,46; 12,15).
Jasão de Cirene, autor dos cinco livros subjacentes a 2Mc, foi um judeu da diáspora¹; Cirene ficava no norte da África. Era homem de zelo e piedade. Quanto àquele que fez o resumo (= 2Mc), é-nos desconhecido; preocupava-se com a arte de traduzir, na qual se afadigou (leia o prefácio: 2,19-32; o autor diz que muito labutou para fazer seu compêndio – o que bem mostra que a inspiração bíblica não é revelação, mas é iluminação da mente para que o escritor produza obra isenta de erros). Merece atenção também o epílogo (15,37-39).
Jasão terá escrito sua longa obra em meados do séc. II; em 2,21 alude ao fim do reinado de Antíoco V. O resumo (= 2Mc) terá sido confeccionado no último decênio do século II a.C. Os judeus não aceitaram tal obra, dada a sua origem tardia; por isto é deuterocanônica. Todavia a epístola aos Hebreus, em 11,35, alude ao martírio de Eleazaro (6,18-31) e dos sete irmãos “macabeus” (7,1-42).
Lição 4: A importância doutrinária de 2 Mc
O valor teológico de 2Mc é enorme; atesta a evolução do pensamento religioso judaico e algumas de suas proposições no limiar da era cristã. Enumeremos os seguintes pontos:
1) Toda a história narrada é a da Providência Divina. Deus “tudo fez a partir do nada” (7,28), e é o grande Regente dos acontecimentos humanos: 5,17s; 7,16-19.33-35.
2) A ressurreição dos corpos, no sentido próprio da expressão, é professada pelos mártires antes de serem entregues à morte: cf. 7,9.11.14.23. Os ímpios também terão sua ressurreição, embora “não para a vida” (7,14). A cada qual será atribuída a sorte correspondente após o percurso desta vida: Deus levará a juízo e a sanção todo e qualquer homem: 6,26; 7,14.19.23.29.36; 12,43¬46; 14,46.
Esta posição doutrinária é de grande significado. Punha fim à concepção de cheol, lugar subterrâneo no qual os bons e os maus, após a morte, se encontrariam adormecidos ou inconscientes, incapazes de receber alguma sanção. Os livros de Jó e do Eclesiastes, ao abordarem o problema da retribuição, não puderam formular a resposta cabal porque lhes faltava a noção de uma existência póstuma consciente.
3) A doutrina do purgatório póstumo e do sufrágio pelos defuntos se acha esboçada em 2Mc 12,38-46; alguns soldados judeus, caídos na guerra em defesa das suas tradições religiosas, traziam em suas vestes amuletos pagãos – o que era incoerente ou pecaminoso; Judas Macabeu então mandou fazer uma coleta, cujo produto foi enviado a Jerusalém “a fim de que se oferecesse um sacrifício pelo pecado” (12,43). “Ele mandou oferecer esse sacrifício expiatório pelos que haviam morrido, a fim de que fossem absolvidos do seu pecado” (12,46).
4) A intercessão dos Santos na glória pelos seus irmãos peregrinos na terra é atestada em 15,11-16; Onias e Jeremias, já falecidos, aparecem a Judas Macabeu como intercessores em favor dos irmãos militantes. Esta concepção de que a morte não interrompe a comunhão entre os membros do povo de Deus e não impede a oração de uns pelos outros havia de se desenvolver adequadamente na teologia do Cristianismo.
Por estes títulos o 2Mc foi muito caro à tradição cristã, especialmente à liturgia.
Referências:
1 – Diáspora quer dizer dispersão, em grego. Significa o povo judeu espalhado fora da Palestina.
Para aprofundamento, veja:
BALLARINI, T., Introdução à Bíblia, vol. Hl/1. Ed. Vozes 1983.
GRELOT, R, Introdução à Bíblia. Ed. Paulinas 1971.
GRÜEN, W., O tempo que se chama hoje. Ed. Paulinas 1977.
LÂPPLE, A., Bíblia: interpretação atualizada e catequese. Vol. 2: o Antigo Testamento. Ed. Paulinas 1980.
MONLOUBOU-BOUYSSON, Encontro com a Bíblia. Antigo Testamento. Ed. Lumen Christi, 1980.
Perguntas sobre os livros dos Macabeus
1) Leia 1Mc 1,11-15.43-53; 2Mc 4,7-20. E diga qual a mentalidade dos pagãos e o que exigiam dos judeus.
2) Leia 1Mc 2,29-41. E diga: como é que os judeus resolvem comportar- se no sábado? É novidade?
3) A obra de Simão Macabeu é descrita de modo a lembrar a bonança messiânica anunciada por outras passagens bíblicas. Compare 1Mc 14,11-15com 1Rs5,5; Mq4,4; Zc 3,10. Como entender as imagens desses textos?
4) Porque a doutrina da ressurreição dos corpos é importante? Releia 2Mc 7,1-41 e diga por quê.
5) Em 2Mc 14,45s está dito que Razias deu a si mesmo a morte. Há outro herói bíblico que tenha dado a morte a si? Procure nos livros de Samuel.
6) Em 2Mc quando e onde aparece a figura do profeta Jeremias?