Skip to content Skip to footer

“Eis aí a tua mãe, eis aí o teu filho”

Capítulo VIII. "Eis aí a tua mãe, eis aí o teu filho"
Explica-se literalmente a terceira palavra de Cristo na Cruz

A última sentença das três, que particularmente dizem respeito à caridade do próximo, foi aquela:

“Eis aí a tua mãe, eis aí o teu filho”

Antes, porém de tratarmos dela, temos de explicar as palavras do Evangelista, que as precedem. Diz São João (Jo 19):

“Estava junto da cruz de Jesus sua Mãe, Maria mulher de Cléofas, e Maria Madalena: e vendo Jesus sua mãe, que estava em pé, e o seu discípulo predileto, diz para sua Mãe: Eis aí o teu filho, e depois diz para o discípulo: Eis aí tua Mãe; — e desde aquela hora o discípulo a tomou naquela conta”

Das três mulheres, que em grupo estavam junto da cruz do Senhor, duas são conhecidíssimas, Maria, sua Mãe, e Maria Madalena. A respeito de quem fosse Maria, mulher de Cléofas, não há certeza: geralmente, porém se diz que era irmã germana da Bem-aventurada Virgem, Mãe de Deus, filha de Ana, sua Mãe, que, dizem, também tivera uma terceira filha, chamada Maria Salomé, porém esta opinião não se pode admitir de modo nenhum, porque nem é crível, que três irmãs tivessem o mesmo nome, e tem fundamento o juízo de eruditos e pios, que dizem, que Santa Ana nenhuma filha mais tivera além da Virgem Maria, nem nos Evangelhos se faz menção de alguma Maria Salomé.

Na passagem de São Marcos (cap. 16): “Maria Madalena, et Maria Jacobi et Salome emerunt aromata” Salomé não é genitivo para significar — Maria de Salomé —, como pouco atrás aquele Evangelista disse —Maria, mãe de Tiago — mas é nominativo, do gênero feminino, como bem se vê do texto grego. Finalmente Salomé era mulher de Zebedeu e mãe de Tiago e João, Apóstolos, como se pode entender de São Mateus no cap. 27 e de São Marcos no cap. 15, assim, como Maria de Tiago ou de Cléofas era mulher de Cléofas e mãe de Tiago Menor, ou Tadeu. Por isto a verdadeira opinião é que Maria de Cléofas foi chamada irmã da Virgem Mãe de Deus, porque Cléofas era irmão de São José, esposo da Virgem Maria: pois, as esposas de dois irmãos bem se podem entre si chamar irmãs. Por igual razão também Tiago Menor foi chamado irmão do Senhor, sendo primo, porque era filho de Cléofas, irmão de José. Assim o diz Euzébio de Cesárea na História Eclesiástica (1), apoiando-se no verídico escritor, Egezippo, que foi contemporâneo dos Apóstolos, e confirma Santo Agostinho no seu livro contra Helvidio.

Deve também resolver-se aqui outra questão literal, que consiste em dizer São João, que estas três mulheres estiveram junto da cruz de Cristo, dizendo São Marcos no cap. 15, e São Lucas no cap. 28, que elas estiveram longe. Santo Agostinho no livro 3.° da Concordância dos Evangelistas harmoniza estas afirmativas, dizendo, que destas santas mulheres se pode afirmar, que estiveram longe da cruz, e que dela estiveram próximas: longe em relação aos soldados e oficiais de justiça, que tão perto estavam da cruz, que a tocavam: perto, porque podiam ouvir as palavras de Cristo, pela distância em que se achavam, às quais já não podiam ser ouvidas pelas turbas, que estavam em muita distância da cruz. Poderia também dizer-se, que aquelas santas mulheres, em quanto se fez a crucificação, estiveram muito distantes, pelas não deixarem aproximar nem a turba nem os soldados, mas, que pouco depois dela, e tendo-se já retirado muita gente, elas com São João se chegaram para junto da cruz. Por esta questão, assim resolvida, se resolve outra, como puderam a Santa Virgem e São João tomar como ditas a si, as palavras de Cristo: Este é o teu filho, esta é a sua mãe, estando ali grande multidão de povo e não tendo Cristo proferido nem o nome da Virgem nem o do discípulo, pois a ela respondemos que aquelas três mulheres e São João tão perto estiveram da cruz, que facilmente podia o Senhor indicar com os olhos as pessoas a quem se dirigia, principalmente sendo certo, que falava aos Seus e não a estranhos, e, que no número daqueles nenhum outro homem se achava, sendo São João, a quem se pudesse dizer: Esta é tua mãe, e nenhuma outra mulher, a quem a morte privasse de seu filho senão a Virgem Mãe. Disse, pois à Mãe: Eis aí o teu filho, e ao discípulo: Eis aí tua mãe; sendo o sentido destas palavras:

“Eu estou a passar deste Mundo, para ir para meu Pai; e porque sei, que tu, minha Mãe, és órfã, e já não tens marido, nem tens irmãos, nem irmãs, te recomendo ao meu caríssimo discípulo João, para te não deixar abandonada dê todo o auxílio dos homens; tê-lo as na conta do filho, e ele te tratará como sua mãe”

Foi este saudável conselho, ou preceito de Cristo muito do agrado de ambos e ambos anuíram, como é crível, inclinando a cabeça; e de si diz São João:

“E desde aquela hora o discípulo a aceitou como pessoa da sua família”

Isto é, logo Lhe obedeceu, e a contou no número das pessoas por quem devia desveladamente olhar, como eram seus pais, já velhos, Zebedeu e Salomé.

Ocorre, porém neste lugar uma nova questão de sentido literal; pois São João era um daqueles que tinham dito:

“Eis aqui estamos nós, que deixamos tudo, e te seguimos; que galardão pois será o nosso?” (Mt 19)

E entre o que tinham deixado o mesmo Senhor enumera pai, mãe, irmãos, irmãs, casa e fazenda; e deste mesmo São João, e de seu irmão São Tiago, São Mateus escreveu:

“E eles no mesmo ponto, deixando as redes e o pai, foram em seu seguimento” (Mt 4)

Como é então, que, quem tinha deixado uma mãe, toma outra? A isto facilmente se responde. Os Apóstolos, para seguirem Cristo, deixaram seus pais e suas mães só, como sendo-lhes eles estorvo, para pregarem o Evangelho, e só porque, de os não deixarem, lhes provinha comodidade ou gozo, não espiritual; mas não deixaram de cumprir os deveres de justiça, a que estavam obrigados para com seus pais ou filhos, quanto à educação ou socorros, de que precisassem (2); motivo, pelo qual, como dizem os doutores, não pode entrar em religião um filho, cujo pai seja tão velho, ou tão pobre, que não possa prescindir do seu arrimo. Deixou, pois São João seu pai e sua mãe, quando eles não precisavam dele, e encarregou-se do cuidado e amparo da Virgem Mãe por determinação de Cristo, para ela não ficar sem arrimo nenhum. Podia Deus sem dúvida por ministério dos Anjos, e sem nenhum dos homens, subministrar a Sua Mãe o que para a conservação da sua vida lhe fosse necessário; pois também a Cristo os Anjos serviam alimento no deserto (Mt 4), quis, porém que o fizesse São João para não só providenciar a respeito da Virgem, mas também para honrá-lo e ajudar. Para casa da viúva mandou Deus Elias, para ela o sustentar; não por ele não poder fazê-lo por meio de Corvos, como já tinha feito; mas, para abençoar a viúva, como advertiu Santo Agostinho (3). Assim também foi da vontade do Senhor incumbir o Seu discípulo de cuidar de Sua Mãe, para com isto lhe fazer a maior mercê, e lhe mostrar, que na verdade ele era o Seu predileto (Mt 19). Certamente naquela mudança de Mãe se realizou “o que deixa seu pai ou sua mãe, etc., receberá centuplicado, e possuirá a vida eterna”: pois centuplicado recebeu o que deixou uma mãe, mulher de um pescador, e recebeu para mãe a Mãe do Criador, a Senhora do Mundo, cheia de graça, bendita entre as mulheres, e, que pouco depois havia de ser exaltada sobre os coros dos Anjos no Reino dos Céus.


Referências:

(1) Lib. 2, cap. I, e lib. 9, cap. XI
(2) Suma Teológica 2. 2.q. 189 art. 6
(3) Serm. 26 de verb. Domini

Voltar para o Índice de As Sete Palavras de Cristo na Cruz, de São Roberto Belarmino

(BELARMINO, Cardeal São Roberto. As Sete Palavras de Cristo na Cruz. Antiga Livraria Chadron, Porto, 1886, p. 93-100)

Leave a comment

0.0/5