Capítulo XV
1. “Assim Deus amou o mundo que lhe deu seu Filho unigênito” (Jo 3,16). Três coisas devemos considerar nesta dádiva: quem é quem dá, que coisa e com que o amor no-la dá. É sabido que, quanto mais nobre o doador, tanto mais apreciável a dádiva; se alguém recebe uma flor de um monarca, estimará essa flor mais que um tesouro. Quanto, pois, devemos estimar este dom que nos vem das mãos de Deus? E que foi o que nos deu? Seu próprio Filho. Não se contentou o amor desse nosso Deus com dar-nos tantos bens nesta terra, mas chegou a dar-se todo inteiro a nós na pessoa do Verbo encarnado. São João Crisóstomo diz: Deu-nos não um servo, nem um anjo, mas seu próprio Filho (In Jo. Hom. 26). Por isso exclama a Igreja, cheia de júbilo:
“Ó maravilhosa condescendência de vossa ternura! Ó inapreciável rasgo de caridade! Para resgatar o escravo, sacrificastes o Filho!”
Ó Deus infinito, como pudestes usar para conosco de tão admirável piedade? Quem jamais poderá compreender um excesso tão grande, que, para resgatar o escravo, quisésseis sacrificar vosso único Filho? ah, meu benigníssimo Senhor, desde que me destes o que de melhor possuíeis, é justo que eu vos dê o mais que me for possível. Vós quereis o meu amor e eu nada mais de vós desejo que o vosso amor. Aqui tendes o meu mísero coração que eu consagro inteirinho a vos amar. Criaturas todas, saí do meu coração e dai lugar ao meu Deus, que o merece e quer possuí-lo todo e sem partilha. Amo-vos, ó Deus de amor, amo-vos sobre todas as coisas e só a vós quero amar, meu Criador, meu tesouro, meu tudo.
2. Deus nos deu seu Filho e por quê? Só por amor. Pilatos, por temos humano, entregou Jesus aos judeus (Lc 23,25). O Eterno Pai entrega-nos seu Filho, mas pelo amor que nos consagra (Rm 8,32). Santo Tomás afirma que numa dádiva o amor vem em primeiro lugar (I q. 38. a. 2). Quando nos fazem um presente, o primeiro dom que recebemos é o amor que o doador nos oferece na dádiva que faz, porque a única razão de um dom gratuito é o amor: quando se dá com outro fim, que não seja o puro afeto, o dom perde a razão de verdadeiro dom. A dádiva que nos fez de seu Filho o Padre Eterno, foi um verdadeiro dom todo gratuito e sem mérito algum da nossa parte. É por isso que se diz que a Encarnação do Verbo foi obra do Espírito Santo, isto é, efetuada por puro amor, como afirma o mesmo santo doutor:
“Que o Filho de Deus se revestiu de carne proveio do mais acendrado amor de Deus” (III q. 32, a. 1).
Mas Deus não somente nos deu seu Filho por puro amor, mas no-lo deu igualmente com amor imenso. Foi justamente o que quis Jesus significar, dizendo: “Assim amou Deus o mundo”. A palavra assim denota a grandeza do amor, diz São João Crisóstomo, com que Deus nos fez essa grande dádiva (In Jo. Hom. 26). E que maior amor poderia um Deus demonstrar-nos do que condenar à morte seu próprio Filho, inocente, para nos salvar a nós, míseros pecadores?
“Não poupou a seu próprio Filho, mas entregou-o por nós todos” (Rm 8,32).
Se o Padre Eterno pudesse padecer, que dor não sentiria ao ver-se obrigado por sua justiça a condenar o Filho, que amava como a si mesmo, a uma morte tão cruel e cheia de ignomínias? Quis que morresse consumido pelos tormentos e pelas dores, diz Isaías (53,10).
Imaginai que estais vendo o Padre eterno com Jesus morto nos braços, dizendo-vos: Ó homens, é este o meu Filho muito amado, em que eu encontrei todas as minhas complacências. Vede como eu o quis ver maltratado pelas vossas iniqüidades (Is 53,8). Ei-lo condenado à morte nessa cruz, aflito, abandonado até de mim, que tanto o amo. E tudo isto eu o fiz para que vós me ameis.
Ó bondade infinita! Ó misericórdia infinita! Ó Deus de minha alma, já que por minha causa quisestes a morte do objeto mais caro ao vosso coração, ofereço-vos por mim o grande sacrifício que vos fez de si mesmo este vosso Filho, e por seus merecimentos vos peço o perdão de meus pecados, o vosso amor, o vosso paraíso. São grandes estes favores que eu vos peço, mas é ainda mais valiosa a oferta que vos apresento. Perdoai-me e salvai-me, ó meu Pai, pelo amor de Jesus Cristo. Se vos ofendi pelo passado, arrependo-me disso mais que de todo o mal e agora eu vos estimo e vos amo mais que todos os bens.
3. Quem, a não ser um Deus de infinito amor, poderia nos amar a tal ponto? São Paulo escreve:
“Mas Deus, que é rico em misericórdia, pela excessiva caridade com que nos amou, nos vivificou em Cristo quando estávamos mortos pelo pecado” (Ef 2,4).
Chama o Apóstolo amor excessivo esse amor que Deus nos demonstrou, dando aos homens, por meio da morte de seu Filho, a vida da graça que haviam perdido por seus pecados. Para Deus, porém, não foi excessivo esse amor, pois que Deus é o mesmo amor: “Deus é amor” (1Jo 4,16). Diz São João que nisso quis Deus fazer-nos ver até aonde chegava a grandeza do amor de um Deus para conosco, enviando seu Filho ao mundo para obter-nos com sua morte o perdão e a vida eterna (1Jo 4,9). Estávamos mortos à graça pelo pecado, e Jesus com sua morte os restituiu a vida. Estávamos na miséria disformes e abomináveis, mas Deus, por meio de Jesus Cristo, tornou-nos belos e caros aos seus olhos divinos. Escreve o Apóstolo:
“Ele nos fez agradáveis a si no seu amado Filho” (Ef 1,6).
O texto grego diz: fez-nos graciosos. Por isso São João Crisóstomo ajunta que, se houvesse um pobre leproso todo dilacerado e disforme, e alguém o curasse da lepra e o tornasse belo e rico, qual não seria a sua obrigação para com esse benfeitor? Ora, imensamente maior é a nossa dívida para com Deus, pois sendo nossas almas disformes digno as de ódio pelas culpas cometidas, ele por meio de Jesus Cristo não só as livrou dos pecados como também as tornou mais belas e amáveis.
“Abençoou-nos com toda a bênção espiritual em bens celestes, em Cristo” (Ef 1,3).
Cornélio a Lápide comenta esta passagem: “Gratificou-nos com todos os bens espirituais”. A bênção de Deus é gratificar ou fazer bem e o Padre eterno, dando-nos Jesus Cristo, cumulou-nos de todos os bens, não terrenos para o corpo, mas espirituais para a alma. Em bens celestes, “dando-nos com seu Filho uma vida celeste neste mundo, e no outro uma glória celeste”.
Abençoai-me, pois, fazei-me bem, ó Deus amantíssimo, e que esse benefício seja atrair-me inteiramente ao vosso amor: “Atraí-me pelos laços de vosso amor”. Fazei que o amor que me consagrastes me arrebate em amor pela vossa bondade. Vós mereceis um amor infinito: eu vos amo com o amor de que sou capaz, amo-vos sobre todas as coisas, amo-vos mais do que a mim mesmo. Consagro-vos toda a minha vontade e esta é a graça que vos peço: fazei que de hoje em diante eu viva e faça tudo segundo a vossa vontade, visto que nada mais quereis que o meu bem e minha salvação eterna.
4. “Introduziu-me em sua adega e ordenou em mim a caridade” (Ct 2,4). O meu Senhor, diz a esposa sagrada, conduziu-me à adega, isto é, pôs-me diante dos olhos todos os benefícios que me fez para induzir-me a amá-lo: Ordenou em mim a caridade. Diz um autor que Deus, para conquistar nosso amor, enviou, por assim dizer, contra nós um exército de graças de amor.
“Dispôs contra mim a caridade como um exército” (Casp. Sánchez).
Segundo o Cardeal Hugo, o dom de si mesmo a nós, que Jesus nos fez, foi a seta reservada predita por Isaías:
“Pôs-se como uma seta reservada: escondeu-me na sua aljava” (Is 49,2).
Como o caçador reserva a melhor seta para o último tiro que deve abater a fera, assim Deus entre todos os seus benefícios reservou Jesus, até chegar o tempo da graça, e então o enviou como último golpe para ferir de amor os corações dos homens. Ferido por esta seta, dizia S. Pedro a seu Mestre: Senhor, vós bem sabeis que eu vos amo (Jo 21,15).
Ah, meu Deus, vejo-me circundado de todas as partes pelas finezas de vosso amor. Eu também vos amo e se eu vos amo sei que também vós me amais. E quem poderá privar-me de vosso amor? Só o pecado. Mas deste monstro do inferno, vós, pela vossa misericórdia, me haveis de livrar. Prefiro todos os males, a morte mais cruel, mesmo a destruição de meu ser, a ofender-vos com um pecado mortal. Vós, porém, já conheceis minhas quedas passadas, conheceis minha fraqueza, ajudai-me, meu Deus, pelo amor de Jesus Cristo. “Não desprezeis a obra de vossas mãos” (Sl 137,8). Sou a obra de vossas mãos, vós me criastes; não me desprezeis. Se por minhas culpas mereço ser abandonado, mereço não menos que tenhais misericórdia de mim por amor de Jesus Cristo, que vos sacrificou sua vida por minha salvação. Eu vos ofereço os seus merecimentos, que são todos meus, e por eles eu vos peço e espero de vós a santa perseverança com uma boa morte e, entretanto, a graça de viver o resto de minha vida todo consagrado à vossa glória. Basta quanto vos ofendi: eu me arrependo de todo o coração e quero amar-vos quanto posso. Não quero mais resistir ao vosso amor: entrego-me inteiramente a vós. Dai-me a vossa graça e o vosso amor e fazei de mim o que quiserdes. Meu Deus, eu vos amo e quero e peço-vos sempre o vosso amor: Atendei-me pelos merecimentos de Jesus Cristo. Maria, minha Mãe, rogai a Deus por mim. Amém.
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