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Da Natividade de Maria

Resumo histórico.

É no século VII que surge a festa da Natividade da Virgem. Dela temos menção no Sacramentário Gelasiano, livro que enumera as festividades da Igreja. O Papa Sérgio I (687-701) prescreveu para o dia de sua celebração uma procissão de rogações. No Oriente a festa era também conhecida, como vemos de dois Sermões de Santo André de Creta (720).

A grandeza da santidade de Maria provém das graças abundantes com que Deus a enriqueceu desde o princípio, e da sua admirável correspondência às mesmas

O nascimento de um filho é considerado dia de festa para a família. Entretanto haveria antes motivo para lamento e pranto, considerando-se que a criança nasce não só privada de méritos e de razão, como ainda manchada pela culpa e sujeita, como filha da cólera divina, às misérias e à morte. O nascimento de Maria, sim, é justo seja celebrado com festas e louvores universais. Pois a Virgem viu a luz do mundo, criança na idade, porém grande em merecimentos e virtudes. Todavia para compreendermos o grau de santidade com que nasceu, precisamos considerar primeiramente a grandeza da graça com que Deus a enriqueceu; em segundo lugar, quanto foi grande a fidelidade de Maria em corresponder a essa graça.

I. A primeira graça em Maria excede em grandeza à graça de todos os anjos e santos

Testemunho dos teólogos

Inegavelmente foi a alma de Maria a mais bela que Deus criou. Depois da Encarnação do Verbo foi esta a obra mais formosa e mais digna de si, feita pelo Onipotente neste mundo. Uma maravilha enfim que só é excedida pelo próprio Criador, como diz Nicolau, monge. Por isso não desceu a graça em Maria gota a gota, como nos outros santos. Desceu, ao contrário, tal como “a chuva sobre o velo” (Sl 71,6). Semelhante à lã do velo, sorveu a Virgem com alegria toda a grande chuva de graça, sem perder uma só gota.

Era-lhe, pois, lícito exclamar: Na plenitude dos santos está minha morada (Eclo 24,16). Isto significa, conforme a explicação de S. Boaventura: Possuo em sua plenitude o que só em parte possuem os outros santos. E São Vicente Ferrer, referindo-se particularmente à santidade de Maria, antes de seu nascimento, diz que excedeu a de todos os anjos e santos.

A graça que adornou a Santíssima Virgem sobrepujou não só a de cada um em particular, mas a de todos os santos reunidos, como prova o doutíssimo Padre Francisco Pepe, jesuíta, em sua bela obra das Grandezas de Jesus e de Maria. Nela afirma que essa tão gloriosa opinião para nossa Rainha é hoje em dia comum e certa entre os teólogos modernos, como Cartagena, Suárez, Spinelli, Recupito, Guerra e outros. Todos examinaram a questão ex-professo, coisa que não haviam feito os doutores antigos. Conta Pepe que a Mãe de Deus agradeceu a Suárez, por meio do Padre Gutiérrez, o haver defendido com tanto valor essa probabilíssima sentença. Em seu Devoto de Maria atesta Ségneri que essa proposição é sustentada pela comum opinião da escola de Salamanca. Ora, se esta é comum e certa, muito provável é também esta outra sentença: Maria, desde o primeiro instante de sua Conceição Imaculada, recebeu uma graça superior à de todos os anjos e santos juntos. Suárez defende-a com energia, sendo nisso acompanhado por Spinelli, Recupito e Colombière.

Há ainda duas grandes e convenientes razões a favor desta sentença, além da autoridade dos teólogos, acima citados.

Primeira razão:
A eleição de Maria para Mãe do Divino Verbo.

Escreve Dionísio Cartusiano: Por causa dessa predestinação foi Maria elevada a uma ordem superior à de todas as criaturas. Pois, segundo Suárez, de certo modo a dignidade de Mãe de Deus pertence à ordem de união hipostática, isto é, à união do Verbo Divino com a natureza humana. Com razão por isso, desde o princípio de sua vida, lhe foram conferidos dons de ordem superior, os quais incomparavelmente excedem a quantos foram concedidos às demais criaturas. Com efeito, não se pode pôr em dúvida que, simultaneamente com o decreto divino da Encarnação, ao Verbo de Deus foi também destinada a Mãe da qual devia tomar o ser humano. E essa foi Maria. Ora, Santo Tomás ensina que a cada um dá o Senhor graça proporcionada à dignidade a que o destina. Já antes dele dissera São Paulo: O qual também nos fez aptos ministros do Novo Testamento (2Cor 3,6). Diz ele com isso que os apóstolos receberam de Deus dons proporcionados aos grandes ofícios para que foram escolhidos. Sobre isso assim as externa São Bernardino de Sena: Quando alguém é eleito por Deus para um cargo, recebe não só as disposições necessárias, mas ainda os dons precisos para exercê-lo dignamente. Ora, em vista da escolha de Maria para Mãe de Deus, convinha certamente que o Senhor, desde o primeiro instante, a adornasse com uma graça imensa, superior em grau à de todos os outros homens e anj os. Pois tal graça tinha de corresponder à imensa e altíssima dignidade, à qual o Senhor a elevara. Assim concluem todos os teólogos com Santo Tomás. A Santíssima Virgem, diz este, foi escolhida para ser Mãe de Deus e para tanto o Altíssimo capacitou-a certamente com sua graça. Antes de ser Mãe foi Maria, por conseguinte, adornada de uma santidade tão perfeita, que a pôs à altura dessa grande dignidade.

Já em outra passagem da Suma Teológica, havia dito o Doutor Angélico que Maria é chamada “cheia de graça”, mas não tanto por causa da graça propriamente, porque a não possuía na suma excelência possível. Também em Jesus Cristo, diz o Santo, a graça habitual não foi suma, isto é, de tal forma que o poder divino a não tivesse podido fazer maior em absoluto. Foi entretanto suficiente e correspondente ao fim para o qual a Divina Sabedoria a predestinara, digo para a união da santa Humanidade com a Pessoa do Verbo. Disso a razão no-la dá o mesmo doutor:

“Tão grande é o poder divino, que, por mais que conceda, sempre lhe resta a dar. Por si só, é a criatura muito limitada em sua natural receptividade, e ao mesmo tempo capaz de ser inteiramente cumulada. Entretanto é sem limites a sua faculdade de obediência à divina vontade, podendo Deus aumentar-lhe a receptividade e cumulá-la de graças”.

Mas voltemos ao nosso assunto. Afirma Santo Tomás que Maria, não fosse embora cheia de graça em relação propriamente à graça, é entretanto chamada cheia de graça em relação a si mesma. Pois a recebeu imensa, suficiente e correspondente à sua sublime dignidade. Por ela então se tornou capaz de ser Mãe de um Deus. Escreve por isso Benedito Fernández: Na dignidade de Mãe de Deus está a medida para se avaliar da graça comunicada a Maria.

Com razão, pois, disse Davi “que os fundamentos dessa cidade de Deus deviam ser colocados no cimo dos montes” (Sl 86,1). Isto é: que o princípio da vida de Maria tinha de ser mais alto que a consumação da vida dos santos. O Senhor – continua o régio cantor – tem mais amor às portas de Sião (de Maria), do que às tendas de Jacó (aos santos). E com razão alega que o Senhor devia fazer-se homem no seio virginal de Maria: E nela nasceu como homem (id., 5). Foi conveniente, portanto, conceder a essa Virgem, desde o primeiro instante em que a criou, uma graça correspondente à dignidade de Mãe de Deus.

O mesmo quis expressar Isaías, ao dizer:

“que, nos tempos futuros, se havia de elevar o monte da casa do Senhor (que foi a Santíssima Virgem) sobre o vértice de todos os outros montes, e que todas as nações haviam de correr a ele para receberem as divinas misericórdias” (2,2).

Sobre o que nos dá São Gregório a seguinte explicação: O monte que se eleva sobre os outros montes é Maria, a qual ultrapassa a todos os santos. São João Damasceno vê na Virgem “a montanha que Deus quis escolher para morada” (Sl 67,17). Maria chama-se por isso cipreste do monte de Sião; cedro do Líbano; oliveira, mas oliveira especiosa; eleita, mas eleita como o sol. Como este – observa Nicolau, monge – excede com sua luz o esplendor das estrelas e fá-las empalidecer, assim a Virgem Maria supera com sua santidade e com seus méritos a corte celestial. De São Bernardo ouvimos o mesmo com as belas palavras: Não convinha a Deus outra Mãe que não Maria, e à Virgem Maria não convinha outro Filho senão Deus.

Mais uma razão existe comprobatória de que Maria, no primeiro instante de sua vida, foi mais santa que todos os santos juntos.

Segunda razão:

Temo-la no sublime ofício de Medianeira dos homens, que foi confiado a Maria, desde o princípio de sua vida. Já antecipadamente esse ofício reclamava um cabedal de graças, maior que o concedido a todos os homens. Sabem todos que os teólogos e Santos Padres atribuem geralmente a Maria este título de Medianeira, por ter ela com sua poderosa intercessão, e mérito de congruência, obtido a salvação de todos, proporcionando ao mundo perdido o grande benefício da Redenção. Dissemos mérito de congruência, porque só Jesus Cristo é nosso Medianeiro por via de justiça e por mérito de condigno. Para tanto ofereceu seus merecimentos ao Eterno Pai, que para nossa salvação os aceitou. Maria, ao contrário, é medianeira de graça por via de simples intercessão e de mérito de côngruo. Ofereceu, dizem os teólogos com S. Boaventura, seus merecimentos pela salvação de todos os homens. E Deus aceitou-o por graça com os merecimentos de Jesus Cristo. Daí as palavras de Arnoldo de Chartres: Cooperou Maria com Cristo para nossa salvação. E ainda a sentença de Ricardo de São Vítor: Para todos Maria desejou, procurou e obteve a salvação. Assim, pois, todo bem, todo dom de vida eterna recebido de Deus, por cada santo, lhe foi dispensando por meio de Maria.

É o que nos quer dar a entender a Santa Igreja, aplicando-lhe vários textos do Eclesiástico:

Em mim há toda a esperança do caminho e da verdade (24,25).

Do caminho, porque por ela são dispensadas as graças aos peregrinos neste mundo; da verdade, porque por Maria se nos dá a luz da verdade.

“Em mim há toda a esperança da vida e da virtude” (24,26).

Da vida, porque por ela esperamos obter a vida da graça na terra e da glória no céu. Da virtude, porque por meio dela se adquirem as virtudes, especialmente as teologais, que são as principais virtudes dos santos.

“Eu sou a mãe do belo amor e do temor, do conhecimento e da santa esperança” (24,24).

E tudo porque Maria com sua intercessão impetra a seus servos os dons do divino amor, do santo temor, da luz celeste, da santa confiança. Do que São Bernardo deduz que é ensinamento da Igreja o ser Maria medianeira universal de nossa salvação.

É por isso, assevera o Pseudo-Jerônimo, que o arcanjo chamou a Virgem cheia de graça; porque, enquanto que aos outros santos a graça é concedida com limites, sobre Maria foi derramada em sua plenitude. E tal se deu, observa Basílio de Seleucia, para que ela pudesse servir como digna medianeira entre Deus e os homens. Com efeito, pergunta São Lourenço Justiniano, sem essa plenitude da graça divina, como teria a Virgem podido ser a escada do paraíso, e advogada do mundo, a verdadeira medianeira entre os homens e Deus?

Eis, pois, suficientemente esclarecida a segunda razão que propusemos. Como Mãe destinada ao comum Redentor, já recebeu Maria, desde o começo, o ofício de medianeira de todos os homens, e por conseguinte de todos os santos. Assim sendo, foi necessário que tivesse, também desde o começo, graça maior que a de todos os santos, pelos quais devia interceder. Vou explicar-me com mais clareza. Se por meio de Maria haviam os homens de tornar-se mais caros a Deus, preciso era que ela fosse mais santa e mais querida de Deus, do que todos os homens juntos. Porque, assim não sendo, como teria podido interceder por todos eles? Para que um intercessor obtenha do príncipe obséquio para todos os vassalos, é absolutamente mister que lhe seja mais caro do que os seus demais súditos. Maria, conclui Eádmero, mereceu pois ser digna Reparadora do mundo decaído, porque foi a mais santa e a mais pura de todas as criaturas.

Foi a Virgem, pois, medianeira dos homens. Mas, dirão talvez, como pode ela ser também medianeira dos anjos? Sustentam muitos teólogos que Jesus Cristo mereceu a graça da perseverança aos anjos também. Tornou-se-lhes assim medianeiro de condigno, o que permite chamar a Maria de medianeira de côngruo, desde que com suas preces acelerou a vinda do Redentor. Pelo menos merecendo de côngruo tornar-se Mãe do Messias, mereceu aos anjos a reparação dos lugares perdidos pelos demônios. Eis como se expressa Ricardo de São Vítor: Anjos e homens foram reparados por Maria; por ela a ruína dos anjos foi restaurada e a natureza humana, reconciliada. E antes dele, escrevera Eádmero: Tudo foi restaurado por essa Virgem.

Assim a nossa celeste menina, tanto por causa de seu ofício de medianeira do mundo, como em vista de sua vocação para Mãe do Redentor, recebeu, desde o primeiro instante de sua vida, graça mais abundante que a de todos os santos reunidos. E que admirável espetáculo para o céu e para a terra, não seria a alma dessa bem-aventurada menina, encerrada ainda no seio de sua mãe! Era a criatura mais amável aos olhos de Deus, pois que, já cumulada de graças e méritos, podia dizer: Quando era pequenina agradei ao Altíssimo. E ao mesmo tempo era a criatura mais amante de Deus, de quantas que até então haviam existido. Houvera, pois, nascido imediatamente após a sua Imaculada Conceição, e j á teria vindo ao mundo mais rica de méritos e mais santa do que toda a corte dos santos. Imaginemos, agora, quanto mais santa nasceu a Virgem, vendo a luz do mundo só depois de nove meses, os quais passou adquirindo novos merecimentos no seio materno! Mas prossigamos para a consideração do ponto segundo.

II. A grande fidelidade na pronta cooperação com a graça

Maria teve o uso da razão desde o primeiro instante de sua Imaculada Conceição

Ao mesmo tempo que a santa menina recebia no seio de Santa Ana a graça santificante, era-lhe dado também o perfeito uso da razão. A ele se uniu uma grande luz divina, correspondente à graça com que fora enriquecida. O exposto aqui não é já uma opinião isolada, mas um parecer universal, na frase do venerável autor La Colombière. Por conseguinte bem poderemos crer que, desde o primeiro instante da união da sua bela alma ao seu corpo puríssimo, foi Maria iluminada com todas as luzes da divina sabedoria, para bem conhecer as verdades eternas, a beleza das virtudes e sobretudo a infinita bondade de seu Criador e os direitos dele aos afetos do coração, e ao seu em particular. Eram disso razões os singulares dons com que ele a adornou e distinguiu entre todas as criaturas. Pois não a preservara da culpa original? não lhe dera tão imensa graça? não a destinara para Mãe do Verbo e Rainha do universo?

Maria esteve livre de toda inclinação desordenada e de toda distração

Gratíssima a seu Deus, a partir desse primeiro instante, empenhou-se a Virgem em aproveitar fielmente aquele grande cabedal de graças de que era senhora. Aplicou-se toda em amar a Divina Bondade. Desde então amou a Deus com todas as suas forças e continuou amando-o com os nove meses anteriores a seu nascimento. Não cessou, com efeito, um só momento de unir-se a Deus cada vez mais, com ferventes atos de amor Estava livre não só da culpa original, mas de todo movimento desordenado, de toda distração, de toda rebelião dos sentidos, de tudo enfim que lhe pudesse impedir o adiantamento no divino amor. Todos os seus sentidos estavam igualmente de acordo com seu bendito espírito na tendência para Deus. Por isso, desvencilhada de todo impedimento, voava-lhe a formosa alma para Deus, incessantemente. Amava-o sempre, e cada vez mais crescia em seu amor. É esta a razão por que Maria diz de si mesma: Eu cresci para o alto como um plátano junto à água (Eclo 24,19). Planta nobilíssima de Deus, ela cresceu sempre junto à corrente das graças divinas. Também se compara à vinha: Eu, como a vide, lancei flores de um agradável olor (Eclo 24,23). Fá-lo não só por ter sido humilde aos olhos do mundo, mas porque era constante o seu crescimento em perfeição. Diz um provérbio latino: A vide cresce sem fim. As outras árvores, a laranjeira, a amoreira, a pereira, têm uma altura determinada, enquanto a vide cresce continuamente, até atingir a altura da árvore à qual se encosta. Assim também a Santíssima Virgem cresceu incessantemente na perfeição.

Eis o motivo por que, sob o nome de Gregório Taumaturgo, escreveu certo autor: Eu te saúdo, ó Maria, videira que não cessa de crescer. Conservou-se ela unida sempre a Deus, seu único apoio, e por isso pergunta o Espírito Santo nos Cânticos dos Cânticos:

Quem é esta que sobe do deserto, inundando delícias, e firmada sobre o seu Amado? (8,5).

Segundo Santo Ambrósio, quer isso dizer:

Quem é esta que, unida ao Verbo Divino, cresce como a videira apoiada a uma grande árvore?

Maria foi fiel à divina graça

Dizem muitos e graves teólogos que uma alma virtuosa produz um ato de virtude, em intensidade igual ao hábito que possui, cada vez que corresponde às graças atuais que de Deus recebe. Adquire assim, vez por vez, um novo e duplo merecimento que é igual à totalidade de todos os méritos adquiridos até então. Esse aumento, dizem eles, foi concedido aos anj os durante o tempo de sua provação. Ora, se os anjos possuíam semelhante graça, quem ousará sonegá-la à Divina Mãe, enquanto viveu na terra, principalmente no mencionado tempo de sua existência no seio materno, no qual foi certamente mais fiel que os anj os, em corresponder à graça? Durante ele duplicou a cada momento aquela graça sublime que possuía desde o começo. Pois, correspondendo-lhe com todas as forças e perfeitamente, duplicava por conseguinte seus méritos a cada ato que fazia, em todo instante. Só por aí podemos avaliar que tesouros de graça, de merecimentos e de santidade trouxe Maria ao mundo, quando nasceu.

Alegremo-nos, portanto, com a nossa amável menina, que nasce tão santa, tão cara a Deus, e cheia de graça. e alegremo-nos não só por ela mas também por nós. Pois veio ao mundo enriquecida de graça tanto para a glória como para o bem nosso. Adverte Santo Tomás que de três modos foi cheia de graça a Santíssima Virgem. Na alma, porque desde o princípio sua bela alma foi inteiramente de Deus. No corpo, pois que de sua puríssima carne mereceu revestir o Verbo Eterno. Finalmente o foi em nosso comum benefício, para que todos os homens pudessem participar da sua graça. Alguns santos, aj unta o Doutor Angélico, possuem tanta graça que não só lhes basta a eles, como é suficiente para salvar a muitos, ainda que não a todos os homens. Só a Jesus e a Maria foi dada tão abundante graça, que seria suficiente para salvar a todo o gênero humano. Por isso São João diz de Jesus Cristo: Nós todos temos recebido de sua plenitude (Jo 1,16). De Maria afirmam também a mesma verdade. Santo Tomás de Vilanova, por exemplo, escreve: Ela é cheia de graça e de sua plenitude recebem todos. E assim – afirma Pacciucchelli – não há quem não participe da graça de Maria. Quem existiu jamais no mundo, pergunta ele, a quem Maria não tenha sido tão benigna, ou não haja dispensado alguma misericórdia? É preciso notar, porém, que recebemos a graça de Jesus Cristo, como de seu autor, e de Maria como medianeira; de Jesus como Salvador, de Maria, como advogada; de Jesus, como fonte, de Maria, como canal.

Eis o motivo por que São Bernardo diz que Deus constituiu Maria qual aqueduto das misericórdias, que quer dispensar aos homens. Encheu-se de graça, para que de sua plenitude cada um recebesse sua parte. À vista disso o Santo exorta-nos a considerarmos com que amor quer o Senhor que honremos essa grande Virgem, na qual colocou todos os tesouros de sua riqueza. Fê-lo assim, a fim de que quanto temos de esperança, de graça e de salvação, tudo agradeçamos à nossa amantíssima Rainha. Pois tudo nos provém de suas mãos e pela sua intercessão. Infeliz da alma que, descuidando-se de se recomendar a Maria, se fecha assim este canal de graças! Holofernes, quando quis apoderar-se da cidade de Betúlia, procurou cortar-lhe os aquedutos. E isto faz também o demônio quando quer tomar posse de uma alma: fá-la abandonar a devoção a Maria Santíssima. Fechado este canal, perderá ela facilmente a luz, o temor de Deus, e enfim a salvação eterna.

Leia-se o seguinte exemplo, no qual se verá quanto seja grande a piedade do Coração de Maria, e a ruína que chama sobre si quem, abandonando a devoção a esta Rainha do céu, se fecha este canal.

Exemplo

Viviam em Madri dois rapazes que levavam uma vida bem desregrada. Um deles sonhou certa noite que via seu amigo agarrado por uns homens negros e atirado num mar tempestuoso. O mesmo lhe queriam fazer a ele. Mas o moço no seu desespero recorreu a Maria, prometeu entrar para um convento, e os malvados o largaram então. Viu o infeliz como o Salvador, cheio de cólera, estava assentado sobre um trono e como a Santíssima Virgem lhe implorava a misericórdia. Encontrando-se com o amigo, contou-lhe depois o sonho que tivera. Mas o amigo se riu do sonho e dele fez pouco caso. Entretanto, pouco tempo depois, tombava apunhalado por uns assassinos. Vendo o outro como se ia realizando o sonho, foi confessar-se, renovou o propósito de ingressar numa Ordem e vendeu por isso seus haveres. Em vez de dar aos pobres o lucro apurado, como tal prometera, esbanjou-o com más companhias e nos vícios. Em consequência do que adoeceu seriamente e de novo teve outro sonho no qual viu o inferno aberto, que o esperava, e o Juiz condenando-o ao suplício. Novamente recorreu a Nossa Senhora e ela outra vez o atendeu. Sarou de fato, mas recaiu em vícios ainda mais vergonhosos. Partiu para Lima, no Peru, e aí adoeceu, vindo parar num hospital. Deus tornou a compadecer-se do infeliz, que se confessou com um padre jesuíta, chamado Francisco Perlino. Fez solene promessa de mudar de vida, mas não guardou a palavra. Indo certa vez o referido sacerdote visitar uma Santa Casa, muito distante de Lima, nela encontrou o nosso infeliz rapaz, deitado no chão. E dele ouviu estas horríveis palavras: Desgraçado de mim! Para meu maior sofrimento vem agora justamente esse padre, que vai ser testemunha do meu castigo. De Lima vim para cá, levando sempre uma vida infame, a qual me atirou na mais horrenda miséria e me leva já para o inferno!

Com estas palavras expirou, sem que tivesse o padre tempo de o assistir.

Oração

Ó santa e celeste menina, vós que sois a Mãe destinada ao meu Redentor, e a grande medianeira dos míseros pecadores, tende piedade de mim. Eis aqui aos vossos pés outro ingrato, que a vós recorre e implora compaixão. É certo que eu, por minhas ingratidões para com Deus e para convosco, mereceria ser abandonado por Deus e por vós. Mas eu ouço dizer, e assim creio, que vós não recusais ajudar quem com confiança a vós se recomenda. Assim o creio por saber quanto é grande a vossa misericórdia. Ó criatura, a mais sublime do mundo, já que acima de vós não há senão Deus, e diante de vós são mui pequenos os grandes céus; ó santa dos santos, ó Maria, abismo de graça e cheia de graça, socorrei um miserável, que a perdeu por sua culpa. Sei que sois tão cara a Deus que ele nada vos nega. Sei também que gostais de empregar vossa grandeza em aliviar os miseráveis pecadores. Eia, pois, mostrai quanto é grande o crédito que tendes junto a Deus, e impetrai-me uma luz, uma chama divina tão poderosa, que de pecador me mude em santo. Desprendei-me de todo afeto terreno para que eu me abrase todo no divino amor. Fazei-o, Senhora, que bem podeis fazê-lo. Fazei-o pelo amor daquele Deus que vos fez tão grande, tão cheia de poder e de piedade. Assim espero. Amém.

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