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Da gratidão que devemos a Jesus Cristo por sua paixão

Capítulo IX

O amor de Cristo nos constrange.

1. Diz Santo Agostinho que, tendo sido Jesus Cristo o primeiro a dar a vida por nós, obrigou-nos com isso a que demos a vida por ele (Trac. 46 in Jo). Escreve o santo:

“Conheceis qual é a mesa que contém o corpo e sangue de Cristo: o que dela se utiliza, deverá também tê-la preparada”.

Quer dizer: quando nós vamos à mesa eucarística, para comungar, isto é, nutrir-nos do corpo e sangue de Jesus Cristo, devemos por gratidão preparar-lhe igualmente a oferta de nosso sangue e nossa vida e, se for necessário, sacrificar um e outra para sua glória. Mui belas são as palavras de São Francisco de Sales a respeito do texto de São Paulo:

“A caridade de Cristo nos constrange” (2Cor 5,4).

O amor de Jesus nos força, mas para quê? Nos força a amá-lo. Mas ouçamos o santo:

“O conhecimento de que Jesus nos amou até à morte de cruz não é um conhecimento que força os nossos corações a amá-lo com uma violência tanto maior quanto mais amável ele o é? O meu Jesus se dá todo a mim e eu me dou todo a ele: eu viverei e morrerei sobre seu peito, nem a morte nem a vida dele mais me separarão”.

2. São Pedro, para que nos recordemos de ser gratos a nosso Salvador, nos faz lembrar que não fomos resgatados da escravidão do inferno com ouro ou prata, mas com o sangue precioso de Jesus Cristo, o qual se sacrificou por nós como um cordeiro inocente sobre o altar da cruz (1Pd 1,18). Grande, portanto, será o castigo dos homens ingratos, que não correspondem a tal benefício. É verdade que Jesus veio para salvar todos os homens que estavam pedidos: “Veio o Filho do homem buscar e salvar o que se havia perdido” (Lc 19,19), mas é igualmente verdade o que afirmou o santo velho Simeão, quando Maria apresentou no templo Jesus menino:

“Eis que este está posto para a ruína, a ressurreição de muitos em Israel e como sinal de contradição” (Lc 2,34).

Com as palavras, para ressurreição de muitos, significou a salvação que Jesus traria a todos os crentes, que pela fé haviam de ressurgir da morte para a vida da graça. Mas com as palavras, este foi posto para ruína, predisse que muitos deviam cair em maior desgraça por sua ingratidão para com o Filho de Deus, que descera à terra para tornar-se o alvo de seus inimigos, como exprimem as palavras: como sinal de contradição, fazendo de Jesus o alvo para o qual dirigiam os judeus todas as calúnias, injúrias e maus tratos. Este sinal, pois, que é Jesus Cristo, não é só contradito pelos judeus que não o reconhecem pelo Messias, mas também pelos cristãos ingratos que pagam o seu amor com ofensas e desprezo de seus preceitos.

O Rei dos corações.

1. Nosso Redentor, diz São Paulo, chegou até a dar a vida por nós, para se tornar senhor absoluto de todos os nossos afetos, demonstrando-nos o seu amor, morrendo por nós:

“Por isso Cristo morreu e ressuscitou, para dominar sobre os vivos e os mortos” (Rm 14,9).

Não, nós não somos mais nossos depois de termos sido comprados pelo sangue de Jesus Cristo: “Quer vivamos, quer morramos, somos do Senhor”, ajunta o Apóstolo (Rm 14,8). Logo, se não o amamos e não observamos seus preceitos dos quais o primeiro é o de amar, não somos somente ingratos, mas também injustos, e merecemos castigo duplo. A obrigação de um escravo resgatado por Jesus das mãos do demônio é dedicar-se totalmente a amá-lo e servi-lo, vivo ou morto. São João Crisóstomo faz uma bela reflexão sobre o texto de São Paulo, dizendo que Deus pensa mais em nós do que nós mesmos e por isso reputa como seu bem a nossa vida e como seu prejuízo a nossa morte. Assim, se morremos, não morremos só para nós, mas para Deus também. Oh! como é grande a nossa felicidade! Mesmo vivendo neste vale de lágrimas no meio de tantos inimigos e tantos perigos podemos contudo dizer: nós somos do Senhor, somos de Jesus Cristo: e sendo propriedade sua, ele terá cuidado em nos conservar na sua graça nesta vida e junto a si por todo e sempre na vida futura.

Jesus Cristo morreu,, por por cada um de nós, para que cada um de nós viva também para seu Redentor.

“E Cristo morreu por todos, para que os que vivem já não vivam para si, mas para aquele que por eles morreu e ressuscitou” (2Cor 5,15).

Quem vive para si mesmo, para si dirige todos os seus desejos, temores, dores e põe nisso a sua felicidade. Mas todos os desejos do que vive para Jesus Cristo consistem em amá-lo e dar-lhe gosto e todos os seus temores em desgostá-lo. Sua única aflição é ver Jesus desprezado e sua única alegria é vê-lo amado pelos outros. Isto é viver para Jesus e é o que pretende seguramente cada um de nós. Por esse motivo procurou ele conquistar todo o nosso amor, sofrendo tão grandes penas.

2. Talvez pretenda ele demais? Não, diz São Gregório, é justo que pretenda tanto, depois de nos ter dado tão grandes provas de seu amor, que até parece doido de amor por nós.

“Pareceu até doidice, escreve São Gregório, o autor da vida morrer pelos homens” (Hom. 6 in Evang.).

Ele se dá sem reserva, inteiramente a nós; tem, pois, razão de pretender que nos demos incondicionalmente a ele e lhe consagraremos todo o nosso amor. E se lhe negamos uma parte, amando outra coisa fora dele ou não por ele, tem motivo de se queixar de nós. “Ama-te menos do que o mereces, quem juntamente contigo ama outra coisa que não é por ti que ama”, diz Santo Agostinho (Confess. 1. 10, c. 29).

E que outra coisa podemos nós amar fora de Jesus senão as criaturas? Em comparação com Jesus Cristo, que são, porém, as criaturas senão vermes da terra, lodo, fumaça e vaidade? O tirano ofereceu a São Clemente, papa, grande quantidade de dinheiro, de ouro e pedras preciosas, para que renunciasse a Jesus Cristo. O Santo deu um grande suspiro e exclamou: “

Ah, meu Jesus, bem infinito, como podeis suportar ser considerado pelos homens menos que o lodo da terra?”

Não foi a temeridade nem a afoiteza que levou os mártires a ir ao encontro dos cavaletes, das lâminas incandescentes e da morte a mais cruel, mas o amor de Jesus Cristo, quando o contemplavam morto na cruz por seu amor (Serm. 62 in Cant.). Sirva por todos o exemplo de São Marcos e São Marcelino, que, tendo os pés e as mãos cravados, eram insultados pelo tirano como loucos por quererem padecer um tormento tão atroz só para não renegar a Jesus Cristo. Eles, porém, responderam que jamais tinha experimentado delícias tão grandes como as que então gozavam estando transpassados por aqueles cravos. Todos os santos, para contentar a Jesus Cristo tão maltratado por nós, abraçaram com alegria a pobreza, as perseguições, os desprezos, as enfermidades, as dores e a morte. As almas esposas de Jesus crucificado não acham coisa alguma mais honrosa que trazer consigo as insígnias do crucifixo, isto é, os padecimentos.

Cristo vive em mim.

1. Ouçamos o que diz Santo Agostinho:

“A vós não é lícito amar pouco: esteja inteiramente fixo em vossos corações aquele que por vós foi fixado na cruz” (De san. virgin. c. 13).

A nós, que cremos firmemente num Deus que morreu na cruz por nosso amor, não é lícito amá-lo pouco: em nosso coração não se deve aninhar outro amor senão o que devemos a quem por nosso amor quis morrer pregado na cruz. Unamo-nos todos com São Paulo e digamos:

“Estou pregado com Cristo na cruz. Já não sou eu que vivo, Cristo é que vive em mim” (Gl 2,19).

Comentando São Bernardo as palavras: Já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim, diz:

“Estou morto para todas as outras coisas; encontram-me, porém, vivo e pronto todas aquelas que se referem a Cristo” (Serm. 7 in Quadrag.).

Assim diz cada um que ama o Crucifixo com o Apóstolo: Eu deixei de viver por mim mesmo, depois que Jesus quis morrer por mim, tomando sobre si a morte que me era destinada. E por isso estou morto para toas as coisas do mundo e não percebo nem dou atenção àquelas que não são para Jesus Cristo e só me encontram vivo e aparelhado para abraçá-las, mesmo que tragam consigo suores, desprezos, dores e até a morte as que dizem respeito a Jesus. São Paulo podia afirmar: “Para mim o viver é Cristo” (Fl 1,21) querendo com essas breves palavras dizer: Jesus é o meu viver, ele é todo o meu pensamento, todo o meu fito, toda a minha esperança, todo o meu desejo, porque ele é todo o meu amor.

2. “Palavra de fé, porque, se morrermos com ele, com ele também viveremos; se sofrermos por ele, com ele também reinaremos; se o negarmos, ele também nos negará” (2Tm 2,11-12). Os reis da terra, depois de vencer seus inimigos, repartem com os que combateram os bens conquistados; assim procederá também Jesus Cristo no dia do juízo: repartirá os bens celestes a todos os que trabalharam e sofreram por sua glória. Diz o Apóstolo: Se morrermos com ele, com ele viveremos; o morrer com Cristo implica o negar-se a si mesmo, isto é, renunciar àquelas satisfações, porque, se não as abdicarmos, chegamos a renegar a Jesus Cristo, que então no dia das contas nos renegará a nós. E é preciso saber que não só negamos a Jesus Cristo quando renegamos a fé, mas também quando nos negamos a obedecer-lhe naquilo que ele quer de nós, como o perdoar qualquer afronta recebida do próximo por amor dele, o ceder em qualquer ponto de honra, assim dito, o romper qualquer amizade que nos põe no perigo de perder a amizade de Jesus, o desprezar o receio de ser tidos por ingratos, visto que nossa primeira gratidão deve ser para com Jesus, que deu seu sangue e sua vida por nós, coisa que criatura alguma jamais fez por nós. Ó amor divino, como podes ser assim desprezado pelos homens! Ó homens, contemplai sobre essa cruz o Filho de Deus que, qual cordeiro inocente, se sacrificou à morte para pagar os vossos pecados e desta maneira conquistar o vosso amor. Contemplai-o, contemplai-o e amai-o. Jesus meu, amabilidade infinita, não me deixeis viver mais ingrato para com tão grande bondade. Vivi no passado esquecido de vosso amor e do quanto padecestes por mim: de hoje em diante não quero pensar em mais nada senão em amar-vos. Ó chagas de Jesus, feri-me de amor. Ó sangue de Jesus, inebriai-me de amor. Ó morte de Jesus, fazei-me morrer a todo outro amor que não seja de Jesus. Eu vos amo, ó meu Jesus, sobre todas as coisas: amo-vos com toda a minha alma, amo-vos mais do que a mim mesmo. Eu vos amo e porque eu vos amo desejaria morrer de dor, pensando que no passado tantas vezes vos voltei as costas e desprezei a vossa graça. Por vossos merecimentos, ó meu Salvador crucificado, dai-me o vosso amor e fazei-me todo vosso. Ó Maria, minha esperança, fazei-me amar a Jesus Cristo e nada mais vos peço.

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