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Canto

Canto, Tesouros de Cornélio à Lápide

Deus prescreve o canto

Cantai ao nosso Deus, cantai, diz o Salmista cantai, cantai salmos a nosso Rei, porque Deus é o Rei de toda a terra: cantai-lhe salmos com sabedoria: Psaliite Deo nostro, psallite; psallite Regi nostro, psallite; quoniam Rex omnis terrae Deus; psallite sapienter (Sl 46, 7-8). Reis da terra, cantai ao Senhor, celebrai em coro ao Eterno; cantai salmos a Deus que se elevou ao mais alto dos Céus, desde o Oriente (Sl 67, 33-34). Entoai salmos, tocai pandeiro, o harmonioso saltério junto com a cítara: Sumite psalmum, et date tympanum; psalterium jucundum cum cithara (Sl 80, 2). Tocai as trombetas no novilúnio, no grande dia de vossa solenidade (Sl 80, 3) cantai ao Senhor um novo cântico: Ele fez maravilhas: Cantate Domino canticum novum, quia mirabilia fecit (Sl 97, 1). Cantai seus louvores, cantai-os acompanhados de instrumentos: Cantate ei, et psallite ei; narrate omnia mirabilia ejus (Sl 104, 2).

Vantagens do canto

Alguém entre vós está triste?, pergunta o apóstolo São Tiago. Que ore. Está contente? Cante salmos: Tristatum aliquis vestrum? Oret. Aequo animo est? Psallat (Zc 5, 13). E tanto em meio à tristeza como em meio à alegria, uni a oração ao canto, e o canto à oração. Cantar é orar. O canto conserva e aumenta a alegria, leva­-nos a orar a Deus, e a exaltá-Lo.

Eis aqui por quais razões a Igreja estabeleceu o canto e a salmodia em suas

festas:

  1. a fim de que os fieis se achem exercitados ao amor de Deus;
  2. a fim de que não tenham mais que um mesmo espírito e um mesmo coração, assim como as diversas vozes se unem para não constituir mais que uma só e doce harmonia, diz Santo Atanásio: Sicut variae vocês in unam hamoniam consentiunt, ira in unum fidelium animi conspirent (Lib. ad Marcel. De Psalmis);
  3. a fim de que, com a suavidade do canto, dilatem-se os espíritos pra receber com maior avidez a força e a eficácia dos divinos oráculos, diz São Basílio: Ut suavitate cantus demulceantur animi, ut divinorum oraculorum, vim et fficaciam avidus excipiant (Praef. in Psalm.);
  1. a fim de imitar, segundo diz São Cirilo, aos Anjos e aos Serafins, que constantemente cantam hinos em louvor do Senhor, e repitam sem cessar: Santo, Santo, Santo, é o Senhor Deus, o Altíssimo (Is 6, 3 –  Cathec. XIII).

O canto, diz Santo Agostinho, é um mensageiro da paz, um perfume espiritual, o exercício dos espíritos celestiais, reprime o desregramento, inspira a sobriedade, e faz correr doces lágrimas[1].

O canto, diz São Basílio, é o repouso da alma, um princípio de paz, acalma o tumulto e o movimento dos pensamentos, dulcifica a ira. O canto prepara os homens ao amor, une aos que estão separados, reconcilia aos inimigos. Porque quem poderá olhar como inimigo aquele cuja voz se une com a sua para elevar suas preces ao Céu? O canto afugenta os demônios e chama em ajuda aos Anjos da Guarda; é uma segurança contra os terrores noturnos, um descanso em meio aos trabalhos do dia, o sustento da infância, o canto da juventude, o consolo dos anciãos, o adorno mais conveniente da mulher, a prova da sociedade, ele povoa a sociedade, é um elemento de perfeição para os principiantes, um aumento para os que fazem progressos, e a consumação dos perfeitos. O canto é a voz da Igreja, e é indispensável para suas festas. O canto é a ocupação dos Anjos e a magnificência da república celestial [2].

O canto, diz São João Crisóstomo, é a santificação da alma, o risonho concerto dos espíritos, uma flecha agudíssima contra os anjos das trevas. Os cervos fogem menos rapidamente das flechas dos caçadores do que os demônios fogem do canto dos salmos de Davi. Davi toma sua harpa e toca, e o espírito maligno retira-se de Saul, cai como cervo ferido com um dado mortal[3].

Lemos na vida dos Padres da Igreja que a nenhuma oração o demônio teme tanto como a Salmodia. Sofrônio (In Prato Spirit., c. CLII), indica a razão disto: na Salmodia, diz, ora rogamos e invocamos a Deus para nós mesmos louvando-Lhe, ora perseguimos os demônios com imprecações e maldições.

O canto, acrescenta São João Crisóstomo, leva consigo um prazer útil. Sua vantagem principal é louvar a Deus, purificar a alma, elevar os pensamentos até o Céu, proclamar os dogmas em sua concisão e pureza, ensinar, de forma sã, as coisas presentes e as futuras. Por mais petulante que seja aquele que cante, se ele canta com respeito, livra-se da vivacidade que lhe tiraniza, e ainda que estivesse sobrecarregado de tristeza e de males, acha-se aliviado com o prazer do canto, que eleva seu pensamento e seu espírito até o céu[4].

O canto, diz Santo Agostinho, é o tesouro comum da doutrina divina; desembaraça a alma de todas as paixões que a atormentam: Psalterium est communis quidam divinae doctrinae thesaurus, et universis animae passionibus, que humanas animas varie angunt, subvenit (Psalm. Initio).

O canto, diz São Justino, leva-nos docemente a piedosas aspirações; acalma as concupiscência e os desejos da carne. Afugenta os maus pensamentos que o demônio sugere, dá aos combatentes generosos a força e a consistência nas adversidades; proporciona às almas piedosas um remédio que alivia e cura os males da vida, provas do cristão (Quaest. CVII, ad Ortod.).

O canto, diz Santo Isidoro, consola os corações tristes e abatidos, dá alegria a alma, dissipa o fastio, excita aos preguiçosos, e brinda aos pecadores com o arrependimento. Porque, apesar da dureza do coração humano, no momento que ouve a doce melodia do canto, sente-se comovido por sentimentos de piedade. E não sei como o coração se comove mais, se com as modulações do canto ou com outra coisa qualquer: muitos se extasiam ante a formosura, a doçura do canto, e choram seus pecados (Lib. VII de Sentent. CVII).

Assim a Igreja, como já temos dito, serve-se em seus divinos Ofícios do cântico e da música para excitar a devoção dos fiéis, a atividade espiritual, o regozijo, e também para instar-lhes a que sirvam a Deus e façam resistência a Satanás.

Depois de haver experimentado estes divinos afetos do canto, Santo Agostinho exclama: Ao ouvir estes hinos, ao ouvir estes cantos celestes, que torrente de lágrimas faziam brotar em minha alma violentamente comovida aos suaves acentos de vossa Igreja! Resvalavam-se dentro de meu ouvido e destilava a vossa verdade em meu coração; levantavam em mim os mais vivos arrebatamentos de amor, e corriam minhas lágrimas, lágrimas deliciosas[5].

O canto, diz Santo Ambrósio, é a voz das bênçãos do povo, a glorificação de Deus, uma maneira muito agradável de louvá-Lo que lhe agrada infinitamente. O canto é um aplauso geral, uma lição que a todos convém, a voz da Igreja, um ato de fé, de esperança e de amor mais expressivo, uma devoção sedutora, o acento alegre da liberdade, a manifestação pública do regozijo e da felicidade. O canto acalma a cólera, afasta a inquietude, dissipa os negros pensamentos e as tentações de desespero. É uma arma contra as potências das trevas, um mestre assíduo, um escudo contra o temor, é o prazer dos santos, é a imagem do contentamento, a prenda da paz e da concórdia (Praef. in Psalm.).

Ressoe o eco dos salmos, diz Santo Agostinho, e os cegos verão, ouvirão os surdos, os paralíticos recobrarão o movimento, andarão os coxos, curar-se-ão os enfermos, e os mortos ressuscitarão: estes são os efeitos do canto. É preciso que a música deixe ouvir seus acordes, que nos excite em nós o desejo e o amor das coisas divinas, que dissipe nossa languidez espiritual, que se apodere de nossa alma, que açoite em nós o homem velho, ridicularize-o, crucifique-o e sepulte-o. Por isto, os Santos que sofreram o martírio, ou mortificaram sua carne e imolaram as suas paixões, tocam a harpa perante o Cordeiro, segundo no-lo manifesta o Apocalipse: Audivi vocem de coelho sicut citharaedorum, et cantabant quase canticum novum ante sedem (Ap 14, 2-3 – Aug., in Psalm. XXXVI).

Eu quisera, acrescenta Santo Agostinho, poder salmodiar e cantar os louvores do Senhor por todo o universo, a fim de sacudir o sono e a torpeza do gênero humano (Lib. IX, Confess., c. IV).

Os usos, os frutos e os fins do canto sagrado, são numerosos, dizem os Santos Padres.

Nada, diz São João Crisóstomo, eleva a alma e dá-lhe liberdade; nada a livra dos laços do corpo e a enche de amor da sabedoria; nada expressa melhor seus desprezo dos frágeis bens deste mundo; nada a faz adiantar tanto no desejo da virtude, como o canto piedoso e bem executado. Por isto, o mesmo Deus fez os salmos, os hinos e cânticos para serem cantados, e para que os homens encontrem neles utilidade e ventura (Praef. in Psalm. XLI).

Os Patriarcas e os Profetas cantaram os louvores do Senhor

Depois da passagem pelo mar Vermelho, depois de um milagroso triunfo conseguido contra seus numerosos e cruéis inimigos, Moisés e o povo de Deus, plenos de alegria, entoaram em ação de graças naquele formoso cântico: Cantemos ao Senhor, posto que fez resplandecer sua glória. Sepultou no mar o cavalo e o cavaleiro etc. (Ex 15, 1).

Lê-se no Eclesiástico que o rei Davi estabeleceu cantores que se colocavam diante do Altar e a quem ele mesmo acompanhava com os harmoniosos sons da harpa (Ecl 47, 11). Os cantores, diz em outra parte o sagrado autor, faziam ressoar seus cânticos, e enchiam o Templo de agradável melodia.

Aos Anjos cantam no Céu

Os Serafins, diz Isaías, cantavam em coro dizendo: Santo, Santo, Santo, o Senhor Deus dos exércitos. A terra está plena de sua gloria: Cantabant alter ad alterum: Sanctus, Sanctus, Sanctus Dominus Deus Excercituum: plena est omnis terra gloria ejus (Is 6, 3). Eis, aqui, porque São João Damasceno ensina que a Igreja imitou o coro dos Serafins estabelecendo os cantos alternativos. O canto e a Salmodia são, pois, a ocupação dos Anjos: os que cantam, participam da obra dos espíritos celestiais e mesclam sua voz com a deles.

Hoje, na cidade de Davi, acaba de nascer um Salvador para vós, o Cristo, o Senhor, disse o Anjo aos pastores, anunciando-lhes o grande prodígio do nascimento de Jesus Cristo. E, de repente, a seu lado, apareceu uma multidão que pertencia aos exércitos celestiais, louvava ao Senhor e dizia: Glória a Deus no mais alto dos céus, e paz na terra aos homens de boa vontade. Et súbito facta est cum angelo multidudo militiae coelestis, laudantium Deum, et dicentium: Gloria in altissimis Deo, et in terrapax hominibus bonae voluntatis (Lc 2, 13-14).

Porventura, não pronunciou a bem-aventurada Virgem Maria o sublime cântico do Magnificat?

Felizes são aqueles que cantam os louvores do Senhor

Feliz o povo, Senhor, que sabe se alegrar em Vós, diz o Salmista. Ó Senhor, à luz de vosso rosto caminharão os vossos filhos; regozijar-se-ão em vosso Nome, durante todo o dia, e mediante vossa justiça serão exaltados; posto que Vós sois a glória de sua fortaleza e, por causa de vossa boa vontade, exaltar-se-á nosso poder: Beatus populus qui scit jubilationem, Domine, in lumine vultus tui ambulabunt; et in nomnine tuo exaltabunt tota die, et in justitia tua exaltabuntur, quoniam gloria virtutis eorum tu es (Sl 88, 16-18).

Aquele que louva a Deus, tanto na adversidade, como na prosperidade, entoa o mais belo hino diante de Deus e dos homens.

Se estais na abundância, diz Santo Agostinho, dai glória a Deus por meio de um cântico de ação de graças; se viveis na indigência ou se uma grande perda desloca vossa posição, cantai também com confiança; contai com vosso Deus, fazei vibrar as cordas de vosso coração como as de um instrumento; que os acompanhe como uma harpa sonora e harmoniosa quando digais: O Senhor mo deu, e o Senhor mo tirou; faça-se a vontade de Deus, e bendito seja seu nome: Dominus dedit, Dominus abstulit, sicut Domino placuit, ita factum est; sit nomem Domini benedictum (Jó 1, 21).

É preciso cantar frequentemente

Senhor, diz o Salmista, sois para sempre o objeto de meus louvores. Bendigam-vos meus lábios, celebre vossa glória e vossa grandeza todo o dia: In te cantatio me semper. Repleatur os meum laude, ut cantem gloriam tuam, tota die, magnitudinem tuam (Sl 70, 6-8).

Cantarei a meu Deus enquanto eu vivo: Psallam Deo quamdiu fuero (Sl 145, 2). Uma vida santa é um canto perpétuo, uma continua e doce harmonia…

Com quais sentimentos é necessário cantar

Instruí-vos e exortai-vos uns aos outros, diz o grande Apóstolo aos Colossenses, por meio de salmos, hinos e cânticos espirituais, cantando de coração e com edificação os louvores de Deus: Docentes, et commonentes vos metipsos , psalmis, hymnis, et canticis spiritualibus, in gratia cantantes in cordibus vestri Deo (Col 3, 16). In gratia, isto é, com piedade, doçura e respeito; In cordibus, isto é, lembrando das bondades de Deus.

Cantai salmos com sabedoria, diz o Salmista: Psallite spienter (Sl 46, 8), isto é, que vosso canto esteja acompanhado de vossa sabedoria e boa conduta.

Celebrar-vos-ei em meus cantos, Senhor, na presença de vossos anjos, diz o Salmista: In conspetu angelorum psallam tibi (Sl 137, 1).

Cantemos aqui na terra de tal maneira que mereçamos obter o desejo de agradar a Deus, diz Santo Agostinho; porque, ainda que guarde silêncio, aquele que abriga este desejo, entoa um canto em seu coração. Ao contrário, aquele que não o abriga, por mais que acaricie os ouvidos dos homens com doce harmonia, permanece mudo diante de Deus: Ambulantes ergo, sic cantemus ut desideremus. Nam qui desiderato, etsi língua taceat, cantat corde. Qui autem non deseiderat, quolibet clamore aures hominum feriat, multus et Deo (In Psalm. XCVI).

Entoa um canto delicioso aquele cuja vida e costumes se harmonizam com sua voz; acabado o canto, a voz deixa de ressoar, porém a boa conduta jamais cala, louva, bendiz e adora a Deus sem descanso.

Nunca podemos empregar mal a voz

A voz é um dom de Deus. Por conseguinte é preciso consagrá-la a Ele. Desgraçados daqueles que a prostituem empregando-a em cantos ímpio, irreligiosos, obscenos e corruptores… é um grande escândalo. E o insensato que profana sua voz celebrando o vício, a impudicícia etc., terá que dar estreitas e terríveis contas a Deus no Dia do Juízo.


Referências:

[1] Psalmus est signifer pacis, spirituale tymiama, excercitium coelestium; luzum repirimit, sobrietate suggerit, lacrymas movet (Praef. in Psalm.).

[2]  Psalmus est animarum tranquillitas, pacis arbiter, turbas et fluctus cogitationum compescens, iracundiam mollit. Psalmus amicitiae conciliator, dissidentiam conjunctio, inimicorum reconciliatio. Quis enim inimicum existimabit eum, cum quo unam ad Deum vocem emittit? Psalmus daemones fugat, auxiliares angelos advocat, in nocturnis terroribus solatium, mulieribus honestissimus ornatos, solitudines celebres facit: elementum incipientibus, incrementum proficientibus, consummatio perfectorum. Psalmus est vox Ecclesiae, ac dies festos agit. Psalmus est angelorum opus, coelestis reipublicae spirituale ornamentum (Proaem. in Psalm. ).

[3] Psalmus est animae santificatio, est pucher animi concertus, acutissimum telum contra daemones; nec cervi ita tela fugiunt, ut Psalmos David daemones. Sumpsit David citharam, et pulsavit, et a Saule recessit malus spiritus, et recedens daemon cecidit, ut servus sagittapercussus et in jecore sanciatus (In Psalm. XVI).

[4]  Psalmus habet voluptatem cum utilitate. Principale ejus lucrum est ad Deum hymnus dicere, animam expurgare, cogitationem in altum extollere, vera et accurata dogmata discere, de praesentibus et futuris philisophari. Licet millies petulans sit is qui canit, dum psalmum reveretur, sopit tyrannidem suae petulantiae: licet oppessus sit malis innumeris, et ab aegritudine animi occupetur, dum demulcetur a voluptate, levat animum, extollit cogitationem, et mentem in sublime avehit (In Psalm. CXXXIV).

[5]  Quantum flevi in hymnis et canticis tuis, suave sonantes Ecclesiae tuae vocibus commotus scriter! Voces illae influebant auribus meis, et aliquebatur veritas tua in cor meum, et axaestuabat inde affeectus pietatis, et currebant lacrymae, et bene mihi erat cum eis (Lib. IX, Confess. c. VI).