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A escola de São João. Sua morte

Capítulo 21: A escola de São João. Sua morte

I

São João tornara-se a luz da Ásia.

«Convinha, escreve um grande doutor, que a Igreja, em seu começo, tivesse em algum lugar um facho resplandecente que ficasse aceso a fim de esclarecer as dúvidas dos fiéis. Primeiramente, Maria fora esse facho; ela morta, ficou São João para ser a luz da Igreja, até que esta tomasse sua forma definitiva e sua consistência» (1)

Graças à estadia prolongada e luminosa no centro da Igreja do primeiro século, foi que João pôde reunir um certo número de discípulos que receberam suas lições, apossaram-se de seu espírito e transmitiram-no em seguida às longínquas cidades do Oriente e do Ocidente.

Formam eles o que se chamou a escola de São João. Era, sem dúvida, numerosa; e entre os que a frequentaram, muitos são desconhecidos. Outros fizeram-se conhecer pelo brilho de suas virtudes ou de suas obras; e a história desses discípulos lança uma última luz sobre a do mestre.

Inácio e Policarpo ocupam um lugar proeminente nesta escola.

Inácio, Ignatius, que muitos autores chamam Egnatius, é o mais conhecido de todos (2). Alguns historiadores supõem que seja aquele menino que o Senhor colocara no meio dos apóstolos, dizendo-lhes:

«Se vos não tornardes semelhantes a este pequeno, não entrareis no reino dos céus» (3)

Ele mesmo escrevia mais tarde aos cristãos:

«Quanto a mim, conheci Jesus Cristo em carne, depois de sua ressurreição» (4)

Vivera talvez na companhia de Maria e de João, depois do Pentecostes. Vamos encontrá-lo agora bispo de Antioquia, sucessor de Evódio, nesta primeira cátedra de São Pedro, por ele ordenado, seguindo depois os passos de João, seu segundo mestre, e recebendo a doutrina e direção deste grande santo (5).

Antioquia era na Ásia a rival de Éfeso. A beleza de seus edifícios, sua numerosa população, seu extenso comércio, o gosto e o culto das artes, faziam-na, na opinião de Josepho, a terceira cidade do império. Era também a cidade de costumes dissolutos e prazeres infames, velados pelas sombras dos bosques de Dafné, que consagravam as festas de Astartéa e os mistérios de Adônis.

Deus, que se compraz nos milagres, escolhera aquela cidade perversa para torná-la uma metrópole da fé. Os fiéis se haviam multiplicado mais do que em qualquer outra cidade da Ásia, e pela primeira vez tinham tomado o nome de cristãos. Inácio, uma vez bispo, dera ao culto o brilho que reclamava o gênio dos Gregos, porém compatível com a pobreza desses princípios. Conta-se em sua vida que, transportado por uma visão ao seio das melodias dos anjos, ensinou depois à Igreja de Antioquia essa música celeste (6). Começaram assim a ressoar os hinos puros nos lugares desonrados pelas canções delirantes das sacerdotisas sírias.

Se não nos é dado assistir às frequentes entrevistas de Inácio com São João, ao menos as lições do apóstolo deixaram nas cartas autênticas do mártir sinais evidentes. São impressões, inflamadas. A verdade, a caridade, tem ali a mesma linguagem nos escritos de um, como nas epístolas do outro; Inácio, como São João, prega a doutrina do Verbo; insiste como ele, e nos mesmos termos sobre a verdade da carne do Filho de Deus feito homem. Como São João, chama o corpo de Jesus um pão, e seu sangue uma bebida:

«É o pão de Deus que desejo, este pão que é a carne de Jesus Cristo, filho de Davi, e não quero outra bebida a não ser o seu sangue, fonte de amor imortal» (7)

A luz, a caridade, a vida, a pureza, todas as palavras de São João aparecem constantemente na pena de seu discípulo. Por isso, pretende ser irmão dos Efésios, porque recebeu como eles, a doutrina de João.

«Desejo ser sempre considerado como cristão de Éfeso, pois pela virtude poderosa de Jesus Cristo, eles não se afastaram da doutrina dos apóstolos» (8)

Não é somente a doutrina de São João que transborda nas cartas de Inácio às Igrejas da Ásia, mas também seu amor a Deus. Estas Igrejas são as mesmas onde João espalhou a unção de Jesus Cristo: Éfeso, Esmirna, Magnésia, Tralles, Filadélfia, a própria Roma. Inácio, tal qual seu mestre, foi levado a Roma para ali sofrer o martírio. Foi acorrentado; dez soldados, que ele chama dez leopardos, torturavam-no dia e noite: assim foi arrastado até o pretório de Trajano. Mas a esperança da morte consolava-o de tudo.

«Agora é que começo a ser um verdadeiro discípulo, dizia ele; já meu espírito vai ao encontro da cruz»

Inácio queria ser moído pelos dentes das feras, como o trigo, a fim de se tornar o pão de Jesus Cristo. Proibia aos romanos que intercedessem por ele, dizendo, ao contrário, que tencionava excitar as feras que lhe dariam um túmulo. «Não há mais em meu coração uma faísca sequer que se abrase por qualquer coisa de material», exclama ele; e compara a morte à um pôr do sol que precede o raiar maravilhoso de um dia divino.

Raiou esse lindo dia. Inácio era daqueles a quem João escrevia:

«Sois de Deus meus filhinhos; e foi por isso que vencestes o mundo»

«Trago o Cristo em mim; chamo-me Cristóforo», respondia também Inácio ao imperador Trajano. Este nome de Porta-Cristo é o que ele se dá do alto de suas cartas. Trajano enviou-o às feras, e Inácio viu, enfim, o momento do qual ele dizia:

«O ferro e a cruz, os ossos quebrados, a violência dos animais ferozes, os membros partidos e todo corpo espedaçado, sofra eu todos estes males, contanto que obtenha Jesus Cristo» (9)

Inácio encontrou-se no glorioso caminho que o levava ao martírio com um outro discípulo de João, Policarpo de Esmirna. Era dele que João dizia:

«Estás firme em Deus como sobre um rochedo. Vela como um atleta de Deus. O prêmio do combate é a incorruptibilidade e a imortalidade. Fica firme na verdade como a bigorna que se bate. É prova de um grande atleta ser batido e vencer» (10)

Por seu lado, Policarpo dizia aos Filipenses:

«Recebestes Inácio, este modelo de caridade, carregado de correntes sagradas, que são os diamantes dos verdadeiros eleitos de Deus» (11)

Policarpo parecia, ele também, ter sido, predestinado a grandes coisas, pelos prodígios de sua primeira infância (12). Contam que uma santa mulher, de nome Callisto, avisada em sonho, o achara numa das estradas que vão à cidade de Esmirna, perto da porta Efesíaca. Era uma destas crianças vindas dos confins do Oriente, trazidas por negociantes que faziam esse trafico para servir os Romanos. Callisto a comprara, libertando-a, educara-a no temor de Deus, dotara-a de alguma fortuna, mas da qual ele só quis servir-se para aliviar os pobres. Um bispo do lugar chamado Bucolos, instruíra-o primeiro, depois fora eleito diácono e, em seguida, sacerdote. Um dia, sentindo-se morrer, o velho chamou-o tomou-lhe a mão direita e levou-a ao coração e aos lábios com estas únicas palavras:

«Glória seja a ti, Senhor!» (13)

Mostrava isto que legava a Policarpo sua alma de apóstolo e sua palavra. O povo aprovou esta escolha. Uma chama que brilhou na fronte de Policarpo designou-o aos sufrágios da assembleia santa. João consagrou-o bispo (14); e São Jerônimo declarou que ele fora o primeiro pontífice do Oriente.

Esmirna e Éfeso eram contíguas uma da outra. Policarpo foi discípulo assíduo de São João, e, segundo Irineu, guardou esta lembrança toda a sua vida. Aliás, o mesmo amor de Jesus, o mesmo zelo da verdade, a mesma indignação contra os heréticos, no discípulo e no mestre:

«Aquele, dizia Policarpo aos Filipenses, que não confessa que Jesus Cristo veio em carne, é um anticristo»

É uma citação textual de São João. Tinha tal horror à impiedade gnóstica, que, diz ainda Irineu, tapando os ouvidos àquelas blasfêmias dizia:

«Oh! Meu Deus, a que tempo me reservastes, para que eu suporte semelhantes coisas!»

E então levantava-se e deixava a assembleia (15).

Policarpo era um bispo missionário, como São João: por ele ou por outros, a verdade foi levada até às plagas mais longínquas do Oriente e do Ocidente. Segundo o Martirológio, teria sido Policarpo quem instalou sucessivamente em Lião, Potino e Irineu. De sorte que a Igreja de Lião parece ligar-se diretamente a São João.

Inácio, passando por Esmirna, viu Policarpo e abraçou santamente esse irmão que não devia tardar a segui-lo no martírio. «Assim possamos nos reunir um dia em Deus!», escrevera-lhe. Policarpo foi fiel ao encontro. Sabe-se que Marco Aurélio não podendo obrigá-lo a blasfemar contra o Deus que servia havia oitenta e seis anos, condenou-o às chamas (16).

Papias, bispo de Hierápolis poderá ser incluído entre os discípulos de João?

«Papias, disse Irineu, foi o auditor de João e amigo de Policarpo» (17)

O testemunho de Eusébio, pretendendo o contrário, não poderia, portanto, prevalecer contra a afirmação daqueles que, como Irineu, são contemporâneos. Alegou-se, além disso, que Papias não pôde ser discípulo do apóstolo São João, porque nada dissera do quarto Evangelho. Um fragmento antigo, descoberto por Thomasio, mostra no entanto, que Papias não só era discípulo do apóstolo, mas, moço ainda, escrevera sob o ditado de São João, e que lhe servira de secretário na composição de seu Evangelho (18).

Papias era eloquente. Tinha aquela beleza de estilo e de palavra que é um dom do gênio grego, e que fazia São Jerônimo desesperar de fazer uma tradução latina digna de seus escritos (19).

Essencialmente curioso dos fatos da tradição, chegado aos fins do século apostólico, e como os últimos ecos da testemunha contemporânea de Jesus Cristo, Papias, não satisfeito com o que soubera por João, seu primeiro mestre, informara-se também junto daqueles que tinham ouvido a palavra dos apóstolos, apanhando assim como as migalhas da mesa dos Evangelhos. Cinco livros, que chamou exposição das palavras do Senhor Jesus Cristo, foram os frutos dessas pesquisas. Deles quase nada nos resta. Favorecendo a opinião errônea dos milenários, seria para temer que Papias não tivesse carregado com seus próprios erros as tradições que nos queria transmitir. Mas, o Cristo não quis deixar viver outra exposição de sua palavra, a não ser a do Evangelho. A obra de Papias pereceu: o livro do homem caiu diante do livro de Deus.

II

«A escola de São João, disse o menos suspeito dos críticos contemporâneos, é aquela cuja progressão melhor se percebe no II século»

São Justino, Taciano, Orígenes, São Clemente, vão recolher a sucessão de Inácio, de Policarpo e de Papias. Já Santo Irineu leva a mesma herança à terra da Gallia. Nascido cerca de vinte anos depois da morte do apóstolo, vai ele tornar-se o vínculo entre a era do Evangelho e os tempos apostólicos. Repetirá nas margens do Ródano, o que aprendera nas margens do Melesio. Na carta a Florino, eis em que termos se proclama discípulo de Policarpo, que foi discípulo de João.

«Eu te vi em minha mocidade na Ásia Menor, junto de Policarpo. Como então procuravas a sua aprovação! Lembro-me desses tempos antigos melhor do que da hora atual; porque os conhecemos feitos desde a infância crescem com nossa alma, identificados com ela. Poderia dizer o lugar onde se assentava o bem-aventurado Policarpo quando discorria, seus hábitos, gestos, discursos ao povo. Contava-nos como vivera com João e com os outros discípulos, que tinham visto o Senhor. Lembrava-se de suas palavras, de tudo que guardara com relação ao Cristo, seus milagres, sua doutrina. Policarpo contava tudo isto conforme as Escrituras, tendo-o sabido daqueles que haviam visto, com seus próprios olhos, o Verbo de vida. E, pela misericórdia de Deus, eu tudo ouvia com atenção, não o notando no papel, mas gravando em meu coração; e por esta mesma misericórdia lembro-me e o medito constantemente» (20)

Mas a escola de São João era maior do que a Ásia; estava em toda a parte onde penetrara o seu Evangelho. O próprio mundo pagão sentia sua influência; e o apóstolo ainda em vida, pôde ver o cristianismo começar a transformar um século que o insultava e perseguia.

Com efeito, foi nessa época que uma revolução singular se produziu nas ideias, sem que causa alguma humana o pudesse explicar (21). O amor do homem para com o homem penetra os espíritos. Um filósofo como Sêneca fala em amar o gênero humano. Plínio, o jovem, um advogado, começa a colocar o dever acima da pátria (22). Epiteto prega a primitiva e grande unidade de todos os homens em uma só família, tendo Deus como pai (23). O gênero austero de Juvenal se enternece para nos dizer, grande novidade! Que, se temos uma alma, é para nos amarmos muito uns aos outros (24). Dio Crisóstomo conta-nos que «todos os homens formam juntos uma mesma cidade, uma comunidade de irmãos debaixo da autoridade de Deus» (25). Ora, cada um desses filósofos, escritores, oradores, — e isto está provado — viu os cristãos de perto. Um sopro do Evangelho passou sobre os espíritos, mesmo os mais dissidentes. Fez-se um movimento de que a história se admira: é «a fraternidade», como chamava Paulo a sociedade cristã, que conquistava os espíritos, e que será em breve senhora das almas.

Uma revolução análogas se anuncia nos costumes. A vingança, ainda ontem a delícia das almas magnânimas, é tratada por Juvenal de volúpia dos corações fracos e dos espíritos estreitos (26). Na ordem social, o escravo vai tornar-se um homem: o cativeiro abranda-se e eis que, pela primeira vez, se discute sua legitimidade (27). Pensa-se nos operários, honra-se o trabalho; celebra-se a honestidade conjugal, e os príncipes ocupam-se em fundar asilos para as crianças (28).

No entanto não é que os príncipes sejam melhores, os filósofos mais razoáveis, os poetas mais bem inspirados do que no século de Augusto; mas é o século de Cristo. O Evangelho chegava publicamente. Do cenáculo à rua, da loja à escola, do ergástulo do escravo ao quarto do seu senhor, do gineceu à casa, da casa ao foro, do foro ao senado, sua palavra ia subindo até o Palácio imperial, onde chegava muitas vezes mutilada e inexata; mas mesmo assim, elevava os pensamentos, forçava os costumes a corar, vinha em auxílio do pobre; e antes mesmo de receber uma nova fé, já era capaz de inspirar uma lei melhor.

III

São João podia morrer. Último executor do testamento de Jesus, via já despontar a exaltação da caridade no mundo.

Para ele, a caridade era seu único pensamento, seu único discurso. São Jerônimo conta que, não podendo por causa da idade avançada, ir à assembleia dos santos, fazia-se carregar, e ali não cessava de repetir estas palavras:

«Meus filhinhos, amai-vos bem uns aos outros»

Desejariam que dissesse alguma coisa mais, porém ele voltava sempre a seu discurso:

«Amai-vos uns aos outros. É o preceito do Senhor; se o cumprirdes, nada mais é preciso» (29)

Não me parece estar longe desse tempo uma anedota familiar que Cássio atribui a São João e da qual deduz apreciável moralidade.

Um dia, conta ele, que João estava acariciando uma perdiz, um caçador, vendo-o nessa distração, manifestou-lhe surpresa.

«E vós, perguntou-lhe o santo, tendes sempre armado o arco que vejo em vossas mãos? — Não, disse o caçador, eu o afrouxo e deixo descansar, a fim de que possa depois retomar o impulso e a elasticidade necessários. Oh! Jovem, volveu São João, por que vos admirais então de que eu também distenda e repouse minha alma, para que em seguida ela dispare seus pensamentos para o céu?» (30)

O céu tornara-se o objeto dos pensamentos de João, e o termo de seus desejos. Bossuet assim se exprime:

«Não vedes que este velho está morrendo todos os dias de não poder morrer de uma vez? Ouvi como fala:

“Meus queridos, nós somos desde já filhos de Deus; mas o que seremos um dia ainda não se vê”

Escutai o que diz em seu Apocalipse:

“O espírito e a esposa dizem juntos: Vinde!”

O que lhe responde o divino Esposo?

“Sim, eu venho já” – ecce venio cito

Oh! Instante tão longo, o modicum longum! Redobra os gemidos, os gritos: “Vinde, Senhor Jesus!” – Veni Domine Jesu!» (31)

O Senhor veio afinal; segundo uma crença piedosa, foi a Virgem Maria que anunciou a São João sua próxima libertação:

«Oh! Meu filho, levastes-me para vossa casa quando eu estava na terra. Agora, vinde comigo para a casa de Deus!» (32)

Outros escreveram:

«Jesus rodeado dos discípulos veio em pessoa perto de João, seu amigo, e lhe disse:

“Vem, meu querido. É tempo de vires sentar-te à minha mesa celeste, no meio de teus irmãos”

Ouvindo esta voz, o apóstolo levantou as mãos para o Mestre, dizendo:

“Eu vos dou graças, ó Jesus, por quem tanto aspirei. Abri ao meu coração a porta da vida para os séculos dos séculos”» (33)

A morte de João foi suave e sem dor: neste ponto toda a antiguidade está de acordo. Quanto as circunstâncias em que ela ocorreu, estão longe de ter a autenticidade necessária à história.

Um dia, vendo que sua hora era chegada, contam certos autores, João preveniu aos discípulos, reuni-os na Igreja, fez a fração do pão, distribuiu aos fiéis e dirigiu-lhes este adeus:

«Que meu quinhão seja o vosso, que o vosso seja o meu…» (34)

Feito isto, encaminhou-se com alguns dos seus para o lugar do próprio sepulcro. Era na encosta de uma colina vizinha da cidade, provavelmente o monte Libato, onde repousava em paz o bispo Timóteo. Dali pôde abençoar mais uma vez Éfeso estendida a seus pés, toda a praia da Iônia, onde se elevavam as Igrejas que fundara, e, para além do mar, as colinas onde seus filhos iam levar o fogo sagrado do Evangelho.

Chegando ali, São João começou a conversar calmamente com seus discípulos, que não devia mais tornar a ver. Recomendou-lhes que se mantivessem na unidade da fé em Jesus Cristo e que fugissem da impiedade. Insistiu principalmente no mandamento de amarem-se uns aos outros. Depois, levantando os braços e os olhos ao céu, o santo velho começou uma longa oração.

Segundo as mesmas narrativas, ninguém foi testemunha da morte de São João. Tendo despedido os irmãos, João entrou no subterrâneo do sepulcro e os discípulos deixaram-no para que meditasse e descansasse. Algum tempo depois, ali penetrando, viram que São João não era vivo e que sua alma virginal voltara ao seio do Senhor.

Autores católicos de nomeada vêm nesta representação da morte do apóstolo, apenas a imagem da doçura com a qual o ancião adormeceu no sono eterno (35).

Segundo Eusébio, esta bem-aventurada morte ocorreu no 68.º ano depois da ressurreição de Jesus Cristo, o 100.º da Encarnação, sob o reinado de Trajano, cônsul pela terceira vez. Santo Irineu é que nos diz que o apóstolo viveu até esse tempo. Segundo Santo Epifânio, João teria então noventa e quatro anos. A crônica de Alexandria, talvez ainda mais exata, fá-lo viver cem anos. Dá a sua morte como ocorrida no 104.º da era cristã, o 7.º de Trajano, sendo cônsules Neracio Marcello e Licinio Sura, e sendo Santo Evaristo soberano pontífice da Igreja de Deus.

O túmulo de São João achava-se em Éfeso. Escrevia mais tarde o papa Celestino ao concílio reunido nesse lugar:

«Acima de tudo, pensai que estais na cidade onde São João pregou, e onde tendes suas relíquias que venerais» (36)

São Dionísio de Alexandria, São Jerônimo, Santo Agostinho, São João Crisóstomo, falam desse túmulo. Cedo foi erigida uma igreja sobre os despojos do amigo de Jesus; chamavam-na a Apostólica. Hoje, na aldeia miserável que marca o local de Éfeso, uma mesquita levantou-se sobre as ruínas de uma igreja cristã muito antiga. Consta serem as ruínas da basílica onde, por muito tempo, se conservou o corpo e o nome de São João.

À religião desse túmulo, juntaram-se em breve, crenças maravilhosas. Uns diziam que apenas se fechara o sepulcro, uma grande luz o envolvera. Outros contavam que nesse lugar brotara uma fonte, de onde jorrava uma água pura e cristalina. Outros ainda, pretendiam que saíra um maná branco como a neve, que cobria a terra tal qual um manto de pureza. Enfim em maior número, acreditavam que São João ressuscitara, não podendo Deus permitir que a corrupção da terra atingisse o corpo virginal que repousara sobre seu coração (37).

Outra imortalidade foi mesmo, neste mundo, dada ao apóstolo São João. Vimos como nos primeiros séculos da história da Igreja, esta se ocupa dele. No entanto, o que é a existência histórica do discípulo, perto da que lhe fazem com seu culto e docilidade, todas as almas que lhe pedem a regra da fé, o código de seus deveres, o modelo de suas virtudes, as lições para a vida presente e as esperanças para a eternidade? O que são mesmo os templos que o universo inteiro dedicou a seu nome, perto dos que lhe foram erigidos nos corações dos homens que o querem imitar? Estes corações são todos aqueles onde o Filho de Deus tem um lugar; porque, como se amar a Jesus sem amar o discípulo que Jesus amava? Uma espécie de reflexo da face do divino Mestre fixou-se lhe nas feições. É o objeto perpétuo da contemplação e veneração dos santos. Mas é também o motivo de desespero daqueles que desejariam reproduzir-lhe os traços numa imagem fiel, incapacidade que tantas vezes se apoderou de mim no correr deste trabalho.

— Eis porque, ó João, quero ao terminar, pedir-vos perdão. Vós me deslumbrastes com vossa santa beleza, me atraístes pela vossa caridade. E se tomei o pincel para este pálido esboço de vosso coração admirável, foi porque esperava que, tendo sido o discípulo e o amigo do Filho de Deus, saberíeis, melhor do que qualquer outro, no-lo fazer conhecer, e, portanto, amar!


Referências:

(1) AEquum erat ut, initio nascentis. Ecclesiae, lampas aliqua splendidissima maneret, in ea, ad quam omnes in rebus dubiis confugerent… Maria haec fuit primum. Virgine mortuâ, mansit Joannes, donec Ecclesiae, firmiter constituta, ipse per se firmitatem retineret (Apud Lopez, episc. Croton, t. III, p. 31, col. I)

(2) Ver sobre Santo Inácio:
Bolland. Acta Sanct., I Febr
Cotellier, Patres œvi apostolici, t. I
Halloix, Ecclesiae orient. scriptorum Vitae, in-fol., p. 289; Douai, 1533

(3) Tradunt Græci quod parvulus erat quem Dominus advocatum statuit in medio dicens: Nisi efficiamini si cut parvulus iste (Anastas. Bibliothec., in Scholiis ad actionem primant octavae synodi. — Metaphrast., ad XX Decernb. Item apud Surium, etc.)

(4) Ignat. ad Smyrnenses

(5) Metaphrast,, ad XX Dec
S. Chrysost., Op.,t. I, orat. XLII, p. 499

(6) Socrat. Hist. Lib. VI, cap. VIII, p. 313

(7) Ignat. ad Roman. IV

(8) Ignat. ad Ephes. XI

(9) Ignat. ad Rm. IV

(10) Ignat. ad Polycarp. I

(11) Polycarp, ad Philipp.

(12) Ver sobre São Policarpo:
Bolland. Acta SS. t XXVI Jan., t. III, pag. 305; edit. Palmé. — Sua vida Pionius Tillemont, Mémoires, t, II.
Halloix, Eccl. orient. script. Vitae.
Cotellier, Patres aevi apostolici.

(13) Imminente jam morte, Polycarpi manum capit, et primum quidem eam pectori suo apprimit, dein vultui. Quae cum egisset Bucolus: Gloria tibi, Domine, inquit; itaque abdormivit (Pion. Vita S. Polycarpi)

(14) Joannis apostoli discipulus ab eo Smyrnnae Episcopus ordinatus, totius Asiae princeps fuit (São Jerônimo, de Scriptor. Eccl. XVII)

(15) Si quid tale audisset beatus ille et apostolicus presbyter, aures obturabat et pro more suo dicebat: O bone Deus! In quae tempora me reservasti, ut ista patiar (S. Inin. Epistol. ad Florinum, apud Euseb. Lib, V, cap. IX)

(16) Ver seu martírio na linda carta escrita pela igreja de Esmirna a de Filadélfia: Octoginta et sex anos ei servivi et nullo me affecit incommodo. Et quomodó potero blasphemare Regem meum qui me salvaviti? (Boland., p. 318)

(17) S. Iren, S. Haeres, V, XIII.
S. Hieronym, de Vir. illustr.

(18) Papias nomine, Hierapolitanus, discipulus Joannis carus, in exotericis (exegeticis?) quinque libris retulit…

Descripsit Evangelium dictante Johanne rectè.

(Thomasius, Catalog, des manuscripts dela Bible. Este fragmento achado num código da rainha da Suécia, vinha talvez de S. Wenceslau, duque da Boemia, e datava do IX século)

(19) Sanctorum Papiae et Polycarpi volumina nec otii mei, nec virium est tantas res eadem in alteram linguam exprimere venustate (S. Hieronvm. Lib, contra Helmiium, c. IX)

(20) Vidi te cúm adhuc puer essem, in inferior Asiá, apud Polycarpum in Eclesiá splendidé versatem et conantem ei te probari. Magis enim eorum recordor quam quae nuper contigére… Disserebat Polycarpus, et quem se habuisset cum Joanne usum familiaritatem que referebat, etc. (S. Iren. Ad Florin., apud Euseb. Lib. V. IX)

(21) Ver sobre este assunto:
M. Jules Denys, Hist. des idées morales dans l’antiquité, t. II
Ver sobretudo, M. de Champagny, les Antonins, t. II, liv, II

(22) Patria, et si quid carius patria, fides (Plin, I, XVIII)

(23) Epictet., apud Arrian. IV, XVII

(24) Juvenal. Satir. XV, 140 et sq.

(25) Dion. Chrysost. Orat. LXXX, de Libertate

(26) …Minuti
Semper et infirmi est animi exiguique voluptas ultio (Juvenal XIII)

(27) Dion. Chrysost. De Servitut, XV, p. 242
Sonec. Espist. V, XIX, et II, VI; XIV, XIX, etc.
Plin. Epist. XVI, XXXII

(28) Ver as inscrições de Velleia e de Benevent, sobre as fundações de Trajano.

It. Pline, Panégyr. De Trajan.

(29) Cúm Ephesi moraretur, usque ad ultimam senectutem, et vix inter discipulorum manus ad Ecclesiam deferretur, nec posset in plura verba vocem contexere, nihil aliud per singulas solebat proferre collectas, nisi hoc: Filioli, diligite alterutrum. Tandem disccipuli et fratres, qui aderant, taedio effecti quod eadem semper audirent, dixerunt: Magister, quaré semper hoc loqueris? Qui respondit dignam Joanne sentetiam: Quia praeceptum Domini est; et solum fiat, sufficit (São Jerônimo, Comment. In Espit. Gala. Lib. III, c. VI)

(30) Collat. XXVI, e. XXI.
Item, Hincmar Remensis, in Vita S. Remigtii, apud Surium, Januar, XIII.
Cornel. a Lapid in Joan. XXI, p. 543
Item, Mapheus Vegius Billitoth. Patr., t. XXVI, p. 719.

(31) Bossuet, Panegyriq. de S. Joan.

(32) Revel. a S. Gertrudes, apud Cornel. À Lapid, Proaemium in I Epist., p. 415, col. 2.
Item Salmeron., X, Tract. XLI: “Pro illis aedibus in queis ad tempus erat recepta, beata Virgo excepit Joannem in coelestribus tanquam peculiarem filium suum”

(33) Office ad asum ordinis SS. Dominici – Paris, in 4, Th de Hansy, 1743 – It, S. Petri Damian – Opp. T, II, p. 156.

(34) Pars mea sit vobiscum, et vestra mecum (Apud Laurent de la Barre, Abdias)

Ver sobre a morte de São João:

Petr. Damian. Sermo II de Joanne
Nicephor, Callixt. Hist. Lib. II e XLII
Nicet. Paphlagon., apud Biblioth. Patrum., t. XXVII, p. 397
Gregor. Turonensis, de Gloria virg. Lib. I

A autoridade mais importante é a de Santo Agostinho (Traité CXXIV sur S. Jean, édit, Migne, col, 1970). Ele pretende que no seu tempo acreditava-se que o santo se deitara no sepulcro, onde ainda vive.

Santo Epifânio (Haeres LXXIX) conta que Deus concedeu a João uma morte maravilhosa.

D. Calmet. Supõe que estas narrativas não têm outras bases a não ser o livro das atas de São João, obra muito antiga, mas corrompida pelo famoso Lucio

(35) Bem como Don Calmet, Dissert. sur la mort de saint Jean, p. 17

(36) Ate omnia vos praecipue considerare, literum atque literum recolere decet haec loca esse, quibus Joannes apostolus praedicaverit, cujus reliquias praesentes honoratis (Caelestin. Pap. ad Conc. Ephes.)

(37) Santo Agostinho, in Joan. edit Migne, p. 1970
Santo Ambrósio, Sermo in Pasalmo, CXVIII
Nicephor, Hist. Lib, II, c. XLII

Ver sobre esta morte e ressurreição, a opinião dos abades na dissertação de D. Calmet, no começo da explicação do IVº Evangelho

Voltar para o Índice da Biografia do Apóstolo São João, de Mons. Baunard

(BAUNARD, Monsenhor L’abbé Loui. O Apóstolo São João. Rio de Janeiro, 1974, p. 371-388)