A dignidade incomparável de Maria Santíssima A Virgem Maria reúne em grau eminente todas as qualidades mais próprias para nos inspirar os sentimentos da mais profunda veneração para com ela. É a mais santa de todas as criaturas, a obra prima das mãos de Deus, a Rainha do céu e da terra, a protetora e Mãe dos cristãos, a dispensadora de todas as graças, e, o que excede tudo o que espírito humano pode compreender, é a Mãe de Deus, dela nasceu o adorável Jesus. Estas inefáveis prerrogativas a tornam muito superior a todos os Anjos e Santos, e lhe dão os mais incontestáveis direitos sobre os nossos corações. Tenhamos, pois, sempre para com esta divina Mãe respeito sincero, amor filial, e ilimitada confiança.
Resta o último fruto, que se colhe da consideração, da obediência, manifestada nas ultimas palavras e mesmo na morte de Cristo, pois o que o Apóstolo diz:
Cumpriu-se principalmente, quando o Senhor, proferidas aquelas palavras"Humilhou-se até morte, e morte de Cruz" (Fl 2)
Imediatamente expirou. Será, porém conveniente ir buscar mais no seu começo o que pode e deve dizer-se da obediência de Cristo, para colhermos um fruto preciosíssimo da árvore da Santa Cruz, pois Cristo, Mestre e Senhor de todas as virtudes, prestou a seu Pai uma obediência tal, que não pode mesmo imaginar-se outra maior."Meu Pai, nas Tuas mãos entrego o meu espírito"
Segue-se o quarto fruto, que se pode colher da felicíssima atenção com que foi ouvida a oração do Senhor, para que nós, animados com tão lisonjeiro resultado, mais nos inflamemos em Lhe encomendarmos o nosso espírito, pois com toda a verdade o Apóstolo deixou escrito (Hb 5) que Nosso Senhor Jesus Cristo fôra atendido pela Sua reverência. Tinha o Senhor pedido a seu Pai, como acima demonstramos que não fosse demorada a ressurreição do Seu corpo, foi ouvida aquela oração, para que a ressurreição se não demorasse mais tempo do que o preciso para se acreditar, que sem dúvida o corpo do Senhor morrera, pois se não pudesse provar-se que assim fôra, a Sua ressurreição, e a fé cristã ficava sem base.
O terceiro fruto consiste em aprendermos que na proximidade da morte não se deve confiar muito nas esmolas, jejuns e orações dos parentes e amigos, são muitos os que passaram a vida esquecidos da sua alma, não tratando de mais nada senão de deixarem ricos, quanto possa ser os filhos ou netos; e, quando estão para morrer, começam então a importar-se dela; e porque repartiram a sua casa por aqueles seus descendentes, lhes recomendam a sua alma, para que eles a sufraguem com esmolas, orações, missas, e outras, boas obras. Não nos deu Cristo este exemplo, pois não encomendou o seu espírito a seus parentes, mas a seu Pai, nem é isto o que nos ensina São Pedro, que nos diz, encomendemos as nossas almas por meio de boas obras ao nosso fiel Criador (1Pd 4). Não repreendo os que determinam, pedem, ou desejam, que, por suas almas se deem esmolas, ou digam missas, repreendo, porém em primeiro lugar os que confiam demasiadamente nos sufrágios dos filhos ou dos netos, quando a prática está mostrando que eles facilmente se esquecem dos seus maiores, depois que estes são falecidos.
Será segundo fruto, e utilíssimo, aprendermos a dizer frequente vezes a oração que Cristo, nosso Mestre, nos ensinou, quando, estando a ir para Seu Pai, disse:
Mas porque Ele se não via na mesma necessidade em que nós nos vemos, porque era Filho e Santo, e nós somos servos e pecadores; por isso a Igreja, nossa Mãe e Mestra, nos ensina a dizermos repetidas vezes a mesma oração, porém inteira, como está no Salmo de Davi, e não metade dela, como Cristo a disse. No Salmo é assim:"Nas tuas mãos entrego o meu espírito"
"Nas tuas mãos entrego o meu espírito; foste tu que me remiste Senhor Deus de verdade" (Sl 30)
Desta última palavra e da morte de Cristo, que depois dela se seguiu, vamos, segundo o nosso costume, colher alguns frutos. Em primeiro lugar vejo, que de uma coisa que parece não poder indicar senão muita fraqueza e muita estultícia, se demonstra o poder, a sabedoria e a caridade de Deus no grau o mais subido, pois no grande brado, com que expirou, bem se deixa ver o Seu poder, e daqui se colige que Ele podia deixar de morrer, e que morreu, porque assim o quis. Os que morrem naturalmente vão pouco a pouco perdendo as forças e a voz, não podendo gritar na última respiração; foi por isto que o centurião, vendo que Jesus depois de ter derramado tanto sangue, expirara, bradando fortemente, disse não sem motivo:
"Na verdade este homem era filho de Deus" (Mc 15)
Explica-se literalmente a sétima palavra
Chegamos à última palavra de Cristo, que Ele, a morrer na cruz, proferiu, bradando: Meu Pai, etc. Explicaremos por sua ordem cada uma das expressões. Meu Pai, disse Ele; e com razão assim Lhe chama, porque foi seu Filho obediente até à morte, e por isto digníssimo de ser atendido. Nas tuas mãos. Na linguagem da Escritura chamam-se mãos de Deus a inteligência e a vontade, ou a sabedoria e, o poder, ou, o que vem a dar no mesmo o entendimento que tudo sabe, e a vontade, que tudo pode, pois com estas duas como mãos faz Deus tudo, nem precisa de instrumentos, porque, como diz São Leão (1), à vontade em Deus é potência, e por isso o querer em Deus é ação. Fez tudo quanto quis no Céu e na Terra (Sl 134). Entrego, como, ponho em depósito, para me ser lealmente restituído a seu tempo. Resta o último fruto, que se deve colher com o maior proveito, da perseverança de Cristo na Cruz, pois daquela palavra: Tudo está consumado, entendemos que o Senhor concluiu a obra da sua Paixão do princípio ao fim, de sorte que nada Lhe pudesse faltar. «As obras de Deus são perfeitas» diz Moisés (Dt 33), e assim como o Pai no sexto dia concluiu a obra da Criação, e descansou no sétimo, assim também o Filho terminou no sexto a obra da Redenção, e no sétimo descansou. Debalde clamavam os judeus, em frente da Cruz:
Melhor diz São Bernardo (1):"Se é Rei de Israel, desça da Cruz, e acreditamo-lo" (Mt 26)
E pouco abaixo:«Antes, porque é Rei de Israel, não abdique o seu título»
«Não te dará ocasião de nos ser roubada a perseverança, a qual só é coroada. Não fará emudecer as línguas dos pregadores, que consolam os pusilânimes, e que a cada um estão dizendo: "Não abandones o teu lugar", o que sem dúvida aconteceria, se eles lhes pudessem responder que Cristo abandonará o seu»
Um quinto fruto se há de colher daquela palavra, por ela significar também, que o edifício da Igreja se concluiu na Cruz, e que a mesma Igreja saiu do lado de Cristo moribundo, assim como Eva saíra da costela de Adão, quando este dormia. Este mistério nos ensina que amemos a cruz, que a honremos, e que dedicadamente nos afeiçoemos a ela. Quem há, pois, que não tenha afeição ao lugar da naturalidade de sua mãe? Admirável é sem dúvida a que todos os fiéis consagram à sacratíssima casa do Loreto, por nela ter nascido a Virgem Mãe de Deus, pois o Anjo diz a José:
"O que nela se gerou, é obra do Espírito Santo" (Mt 1)
Pode colher-se um quarto fruto da explicação da quarta palavra: Tudo está consumado. Sendo verdade, como não pode deixar de o ser, que por justo juízo de Deus Cristo, livrando-nos da escravidão do Diabo, nos passou para o reino do Filho da sua predileção; indaguemos diligentemente, e não nos cansemos de indagar a causa, enquanto não a descobrirmos, porque tamanho número de gente antes queria tornar-se escravo do inimigo do gênero humano, para com ele arder eternamente nas chamas do inferno, do que servir a Cristo, Príncipe benigníssimo; e, mais ainda do que isto reinar felicíssima e certissimamente com Ele. Eu não acho outra senão que no serviço de Cristo se deve começar pela cruz, e que é necessário crucificar a carne com todos os seus vícios e apetites. Esta amarga bebida, este cálice de absinto, nauseia o homem, fraco por natureza; e é muitas vezes o motivo porque ele antes quer continuar na enfermidade, do que curar-se, tomando aquele remédio.