Hoje em dia faz-se a miúdo um emprego abusivo do termo “ciência”. Tanto na positiva técnica como na teórica filosofia existe, a par de uma ciência construtiva e fecunda, outra que é destrutiva e malsã. Por exemplo, o gigantesco trabalho técnico, durante a Primeira Conflagração Mundial, foi preferentemente destrutivo, armas da guerra, gases devastadores, projéteis explosivos. Também no combate sempre aceso do mundo espiritual, o inimigo lança mão de gases deletérios, ardilosas minas e bombas explosivas. Destruir é fácil. Muito mais fácil do que construir. Alcebíades sozinho destruiu mais em Atenas, do que uma série de geniais governantes puderam edificar durante séculos, desde Solon até Milcíades, de Temístocles a Péricles. Alguns decênios de invasões bárbaras foram suficientes para aniquilar as grandiosas obras de mil anos de cristianismo. Por que demolir é mais fácil do que edificar? Porque para construir são necessárias grandes qualidades espirituais e morais, planos, perseverança, domínio de si mesmo, valorização de ideais. Destruir, porém, qualquer malfeitor ou imbecil o pode fazer.
Amanhã de tarde voltaremos para casa. Peta última vez, arde o fogo do acampamento. Todo o grupo o rodeia com saudade. Uma inefável tristeza se apoderou de nosso coração. Certamente, em casa a gente está bem... dormir em cama bem arrumada... um almoço preparado por mamãe ou pela cozinheira... mas estas três semanas! É duro despedir-se do riacho, da floresta, do firmamento! Sim, a separação é dura! Já eram dez horas.
O dia de hoje foi esplêndido — Os rapazes se divertiram o dia inteiro, em trajes de banho, ao redor das tendas ou junto ao regato. Que alegria, que sadio gozo. Infelizmente está para findar nossa vida de acampamento. Quanta pena tenho da mocidade “moderna”, de trajes ao rigor da moda e perfumada decadência... Essa juventude que procura a felicidade da vida unicamente nos cinemas, bares, teatros e “footing”! Pobres almas esfaimadas! Se uma vez que fosse saboreassem o gozo da natureza livre e vivificante!
Esta tarde, os pequenos organizaram uma partida de futebol. Nós “os grandes” repousávamos num declive, ao redor do professor. Júlio quebrou o silêncio inicial:
“Senhor professor, eu aprecio muito os livros de história natural. Ultimamente, lendo alguma coisa sobre assimilação dos alimentos, veio-me uma idéia interessante. Acho que, baseados no metabolismo e assimilação, poderíamos provar que temos uma alma, uma alma espiritual que se distingue do corpo.” “Estou curioso por ver, como você conseguirá isso.”
Ontem, no descascar batatas, Carlito cortou o dedo. Júlio, o enfermeiro, logo acorreu e aplicou um penso. O talho não fora profundo, mas Júlio teve a satisfação de poder utilizar seu ambulatório para fim um pouco mais sério do que as poucas gotas de amoníaco aplicadas ultimamente contra a ferroada da abelha, o que realmente não era serviço de monta... O Chiquinho, porém, correu direitinho ao mestre.
"Senhor professor, por obséquio! Carlos se cortou, e está sangrando horrivelmente!..."Como é natural, o professor apressou-se e de pronto surgiu na cozinha, onde a metade do acampamento, alarmado pelo Chiquinho, estava reunida: Felizmente não havia razão para sustos. O sangue já estancara.
Jorge procurou sanar sua ignorância em anatomia, e durante alguns dias dedicou-se a esse estudo. Em nossa biblioteca ambulante encontrava-se uma obra relativa ao assunto. Depois, orgulhoso apresentou-se ao professor para submeter-se a um exame. O mestre aceitou, fez algumas perguntas, mas intercalou muitas ponderações interessantes, sobretudo quanto à mão do homem.
“Diga-me, Jorge, que sabe você da mão?” “A mão do homem se compõe de 27 ossos, ligados entre si por meio de 4O músculos, segundo um princípio tão maravilhado quão simples”, começou Jorge.
“Caramba! Se o Luís não merece agora uma surra, então nunca mais! O cozido que ele nos preparou para o jantar de ontem! Horrível! Comemo-lo, é verdade; pois, quando se tem fome de lobo não se faz luxo, mas, à noite! Horror! — Ainda agora me vem suor frio, quando me lembro. Sonhei que me enterravam vivo. Vi claramente como me deitavam no caixão, e me desciam na cova, e os torrões a caírem, produzindo um som abafado. Esperneio... grito... em vão. Os torrões caem e caem, e cada qual deles cai diretamente sobre meu estômago e o comprime. Por que exatamente ali? E como pesam! Não aguento mais... Agora berro: Socorro!! Estão-me matando!— Uma lanterna elétrica projeta um facho de luz no meu rosto, acordo vejo rostos espantados ao redor... Que aconteceu? — Nada! — No dia seguinte, porém, quis dar uma sova no cozinheiro. Justamente entrava o professor para vi¬sitar a cozinha. Assim ele ficou ciente de tudo”
Mais uma vez o acampamento sofria o enfado produzido por monótonos dias de chuva. O vento ia tangendo grandes blocos de nuvens, e nós preparávamos as refeições dentro do abarracamento. O professor se assentou junto do Jorge, que demonstrara precedentemente formidável ignorância, quando perguntado acerca do corpo humano.
“Ora, que tapeação!” gania a voz exaltada de Jorge, debaixo duma árvore. Pelo tom devia ser mesmo alguma desilusão séria. Os rapazes, logo se acercaram: “Que história é essa de tapeação?” perguntaram três a uma voz.
“Refinado logro! Peguei um elatro e coloquei-o de costas, bem quietinho. Olhava-me tão sereno, que pensei que não podia mexer-se. Fazia como se não tivesse uma centelha de vida. De repente — hup! — Um salto, e desapareceu simplesmente, à francesa! Abandonou-me sem mesmo dizer adeus! Fiquei logrado!”Desiludidos os rapazes já iam debandar, quando o professor aproveitou o ensejo para uma conversa.
“Alô, rapazes! Depressa... Depressa!”Francisco soltara o grito de alarme da borda do mato. Todos, mesmo os mais lerdos, correram direitinho para ele, que estava debaixo de majestoso carvalho, ostentando vitorioso sua presa, entre os dedos estendidos.
“Vejam este escaravelho! Estava justamente saindo do carvalho”.De fato, era presa respeitável. Escaravelho tão vistoso, com antenas formidáveis como este, talvez riem o gabinete da História Natural do ginásio o possuísse. Na coleção de Francisco receberá naturalmente o lugar de honra. Atraído pelas expressões de júbilo, veio também o professor.