HÁ duas espécies de amor: o amor por causa do prazer que dá, ou o amor por causa de outrem; o primeiro é amor carnal, o segundo espiritual. O amor carnal conhece a outra pessoa só no momento biológico. O amor espiritual conhece-a, em todos os momentos. No amor erótico, as angústias do outro são consideradas dano da felicidade própria; no amor espiritual, as angústias dos outros são oportunidades para servir.
Por motivos vários, o mundo moderno foi ludibriado e caiu no logro de dar o nome de amor a uma espécie de vaga obsessão, que se alardeia em cartazes, reina na indústria de filmes, embaraça os dramaturgos que, para amantes rivais, têm de encontrar um desfecho que mais ou menos implique o suicídio, gera romances de venda fácil, perfumes exóticos impróprios para adolescentes ou gostos sãos. Tanto se tem banalizado o amor e tornado tão carnal que aqueles que amam verdadeiramente quase receiam usar esta palavra. Emprega-se, hoje, quase exclusivamente, mais para designar alguém do sexo diferente do que para nomear uma pessoa; fazem-no girar à volta de glândulas e não da vontade, está concentrado na biologia, em vez de estar na personalidade. Mesmo quando se disfarça em paixão louca por outrem, nada mais é do que o desejo de intensificar o egocentrismo.
O amor puramente humano é o embrião do Amor Divino. Disto encontram-se algumas sugestões em Platão, quando diz que o fim do amor é dar o primeiro passo para a religião. Ele descreve a transformação do amor por pessoas belas em amor de almas belas, e depois em amor da justiça, da bondade e, finalmente, de Deus que é origem de tudo quanto é belo e bom. O amor erótico, portanto, é uma ponte que se atravessa, não uma escora para descansar e se apoiar; não é um aeroporto, mas um avião; vai sempre em demanda do além, para a frente e para o alto. Todo o amor carnal pressupõe imperfeição, deficiência, desejo de perfeição, e anseio de enriquecimento, porque todo o amor é uma fuga para a imortalidade. Como o lago reflete a lua, todo o amor erótico há um reflexo do Amor Divino. A única razão por que no coração humano existe amor pelas criaturas, é a possibilidade de nos conduzir ao amor do Criador. Como o alimento é por causa do corpo, o corpo por causa da alma, o material por causa do espiritual, assim a carne é por causa do eterno. Eis porque na linguagem do amor humano pode, muitas vezes, descobrir-se a linguagem da teologia, tal como «adoração», «anjo», «adoro».
O Salvador não esmagou, nem extinguiu, depois, as chamas que abrasavam o coração de Madalena, mas transfigurou-as num novo objeto de afeição. O louvor Divino, tributado à mulher que derramou bálsamo nos pés do Salvador, lembrou-lhe que o amor, que, outrora, buscava o prazer próprio, podia ser transfigurado em amor capaz de morrer pelo amado. Por isso Nosso Senhor falou da Sua morte, naquele momento em que os pensamentos dela mais perto estavam da vida.
Porque está no plano Divino usar do amor carnal, como degrau para subir até o amor Divino, acontece sempre que, num coração moralmente bem equilibrado, à medida que o tempo corre, o amor erótico diminui e o amor religioso aumenta. Eis porque nos casamentos verdadeiros, o amor de Deus aumenta pelos anos fora, não no sentido de marido e esposa se amarem menos, mas porque amam mais a Deus. O amor passa de um afeto a aparências externas para aquelas íntimas profundezas da personalidade, que encarnam o Espírito Divino.
Poucas coisas há mais belas na vida do que ver esta paixão profunda do homem pela mulher que gerou filhos como mútua encarnação do seu amor, transfigurar-se naquela mais profunda «paixão sem paixão e violenta tranquilidade» que é Deus.
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(SHEEN, Dom Fulton. Rumo à Felicidade – WAY TO HAPPINESS. Tradução de Dr. A. J. Alves das Neves, pároco de São Pedro da Cova. Livraria Figueirinhas, Porto, 1956, p. 72-74)