Resumo histórico.
É esta a mais antiga das festas de Nossa Senhora. Não temos uma base histórica para o assunto da festa. Isso em nada a prejudica, porque a tradição em seu favor é antiquíssima. Já antes do ano 430 encontramos a festa. Até os Nestorianos, separando-se da Igreja, continuaram celebrando-a. No Ocidente é S. Gregório de Tours (| 573) o primeiro que fala da Assunção corporal de Maria ao céu. Em Roma, o Papa Sérgio I (687-701) ordenou que se fizesse uma procissão no dia da festa. No século X surgiram dúvidas e apareceram escritores aconselhando cautela no assunto. Mas tinham em vista as provas históricas e não as razões teológicas. Assentadas estas últimas, cessou o receio e hoje o mundo universo canta, jubiloso e convicto: Assumpta est Maria in caelum, gaudet exercitus angelorum. No Ano Santo de 1950 veio a definição desta verdade como dogma de fé (Nota do tradutor).
A preciosa morte de Maria
Neste dia a Igreja nos propõe a celebração de duas solenidades em honra de Maria: seu feliz trânsito desta terra, e sua gloriosa assunção ao céu. No presente discurso falaremos do Trânsito e, no seguinte, da Assunção de Maria.
É a morte uma pena do pecado. Ora, sendo Maria toda santa e isenta de toda mancha, parece que não devia ser sujeita a padecer a mesma desventura dos filhos de Adão, atingidos todos pelo veneno do pecado. Entretanto, querendo Deus fosse Maria bem semelhante a Jesus, convinha que morresse a Mãe como tinha morrido também o Filho. Queria o Senhor dar aos justos um exemplo da morte preciosa que lhes está preparada e por isso determinou que morresse a Virgem, mas de uma morte toda doce e feliz. Isto posto, entremos a considerar quanto foi preciosa a morte de Maria.
1. pelas graças que a acompanharam;
2. pelo modo por que se operou.
I. Prerrogativas da morte de Maria
Três coisas costumam tornar amarga a morte: o apego à terra, o remorso dos pecados e a incerteza da salvação. Mas a morte de Maria foi totalmente isenta dessas amarguras, e, ao contrário, acompanhada de três belíssimas graças que a tornaram sumamente preciosa e suave. Morreu, como sempre vivera, completamente desapegada dos bens mundanos; morreu com suma paz de consciência; morreu na certeza da glória eterna.
Maria morreu desprendida dos bens do mundo
Não há dúvida que o apego aos bens terrenos torna amarga e miserável a morte dos mundanos, como diz o Espírito Santo: Ó morte, quão amargosa é a tua memória para um homem que tem paz no meio de suas riquezas (Eclo 41,1). Mas, porque morrem os santos desapegados das coisas do mundo, a morte não lhes é amarga, mas doce, amável e preciosa. Isto é, na explicação de São Bernardo, digna de comprar-se por qualquer preço.
“Bem- aventurados os mortos que morrem no Senhor” (Ap 14,13).
Quais são esses que morrem, já estando mortos? São justamente essas almas venturosas que na hora da morte j á estão desapegadas das coisas terrenas, e só em Deus encontram todo bem, como acontecia a São Francisco de Assis, que dizia: Meu Deus e meu tudo! Mas, que alma j amais foi tão desapegada deste mundo, e tão unida a Deus, quanto a bela alma de Maria? Foi, sem dúvida, inteiramente desapegada dos seus parentes, pois que, desde a idade de três anos, quando as crianças têm mais afeição aos pais e mais necessitam de seus desvelos, ela com todo valor os deixou e foi encerrar-se no templo, para atender somente a Deus. Foi desprendida dos bens terrenos, contentando-se de viver pobre e sustentando-se com o trabalho de suas mãos. Igual foi seu desprezo das honras, amando a vida humilde e abjeta, posto que descendesse dos reis de Israel, cabendo-lhe assim o competente respeito e honra. Revelou a própria Virgem a Santa Isabel da Turíngia que, quando seus pais a deixaram no templo, ela estabeleceu no seu coração de não ter outro pai, nem amar outro bem senão Deus.
São João viu Maria figurada naquela mulher vestida de sol, que tinha a lua debaixo dos pés (Ap 12,1). Pela lua explicam os intérpretes significar-se o mundo, e seus bens caducos e sujeitos a inconstâncias, como o é a lua. Todos estes bens, Maria nunca os teve no coração, mas sempre os desprezou e teve debaixo dos pés. Viveu neste mundo como solitária rola num deserto, sem afeto a coisa alguma. Dela foi dito por isso nos Cânticos: Ouviu-se em nossa terra a voz da rola (2,12). E em outro lugar: Quem é esta que sobe pelo deserto? (3,6). Sobre a Virgem diz o abade Roberto: Subiste pelo deserto porque tua alma estava na solidão. Havendo, pois, Maria vivido sempre desprendida inteiramente das coisas terrenas, e sempre unida a Deus, não amarga, mas doce e suave devia ser-lhe a morte, por uni-la mais estreitamente a Deus com vínculo eterno no paraíso.
Maria morreu na mais doce paz do espírito
Em segundo lugar faz preciosa a morte dos justos a paz de consciência. São os pecados cometidos que mais afligem e roem o coração dos pobres moribundos. Lembrando-se que hão de comparecer dentro em pouco perante o tribunal divino, se veem nessa extremidade rodeados por seus pecados, que os apavoram e lhes dizem: Somos obras tuas, não te deixaremos. Assim no-lo afirma Vulgato Bernardo. Não pôde certamente Maria ser afligida na morte por algum remorso de consciência. Pois não fora sempre santa, pura e livre de toda a sombra de culpa atual e original?
Dela por isso foi dito: És toda formosa, minha amiga, e não há mancha em ti (Ct 4,7). Desde que teve o uso da razão, isto é, no primeiro instante da sua imaculada Conceição no seio de Santa Ana, começou a Virgem a amar o seu Deus com todas as veras. E assim continuou sempre, adiantando-se cada vez mais na perfeição e no amor em toda a sua vida. Todos os seus pensamentos, desejos e afetos, só a Deus tinham por objeto. Não disse palavra, não fez movimento, não deu uma vista de olhos, não respirou, que não fosse por Deus e para glória sua, sem jamais separar-se um momento do amor divino. Ah! que na hora feliz de sua morte lhe apareceram em torno do leito todas as suas belas virtudes, praticadas na vida: aquela sua fé tão constante; aquela sua confiança em Deus tão amoroso; aquela paciência tão forte no meio de tantas penas; aquela humildade no meio de tantos privilégios; aquela modéstia; aquela mansidão; aquela piedade para com as almas; aquele zelo da divina glória. Sobretudo apresentou-se-lhe aquela perfeita caridade para com Deus, ao lado daquela total conformidade com a vontade divina. Todas, em suma, lhe apareceram e, consolando-a, diziam-lhe: Somos obras vossas e não vos deixaremos. Nossa Senhora e nossa Mãe, nós somos filhas do vosso belo coração. Agora que vós deixais esta miserável vida, não queremos deixar-vos. Iremos também e formar-vos-emos eterno cortejo de honra no paraíso, onde por meio de nós assentareis como Rainha de todos os anjos e de todos os homens.
Maria morreu sem cuidados por sua salvação
Em terceiro lugar faz doce a morte a segurança da eterna salvação. A morte chama-se trânsito, porque por ela se passa de uma vida breve a uma vida eterna. Por isso é grande o espanto daqueles que morrem com dúvida da sua salvação, e se avizinham do grande momento com justo temor de uma morte eterna. Pelo contrário, é muito grande a alegria dos santos em acabar a vida. Pois com firme confiança podem esperar pela posse de Deus no céu. Uma religiosa de Santa Teresa, quando o médico lhe deu a nova da morte, teve tanta alegria, que lhe disse: E como, Sr. Doutor, me dais uma tão feliz notícia e não me pedis as alvíssaras? São Lourenço Justiniano, estando próximo à morte, e vendo as lágrimas com que o choravam os familiares, disse-lhes: Ide chorar em outra parte! Se quereis estar aqui comigo, deveis alegrar-vos como eu me alegro, porque vejo abrir-se a porta do céu, para unir-me com o meu Deus. Assim igualmente um São Pedro de Alcântara, um São Luís Gonzaga e tantos outros santos, à notícia da morte, prorromperam em vozes de júbilo e de alegria. Faltava-lhes, contudo, a certeza da graça divina, nem estavam seguros da própria santidade, como o estava Maria. Mas que júbilo sentiria a Divina Mãe, ao receber a notícia da sua morte? Ela, tão certa e segura de possuir a graça divina, especialmente depois que o arcanjo S. Gabriel lhe assegurou que era cheia de graça e possessora de Deus! (Lc 1,30). Maria estava também ciente das chamas de divino amor, em que lhe ardia o coração continuamente. Mais. Na sentença de Bernardino de Busti, ela, por singular privilégio não concedido a nenhum outro santo, amava e estava sempre amando a Deus, em cada instante de sua vida. E isso com tanto ardor, que, segundo S. Bernardo, só por um contínuo milagre lhe foi possível viver no meio de tão vivo incêndio de amor.
De Maria já se disse nos Cânticos: Quem é esta que sobe pelo deserto, como uma varinha de fumo, cheia de aromas de mirra, e de incenso, e de toda a casta de polilhos odoríferos? (3,6). A sua total mortificação, figurada na mirra; as suas fervorosas orações, expressas pelo incenso; e todas as suas santas virtudes, unidas à sua perfeita caridade para com Deus, acendiam nela intenso incêndio. No meio deles sua bela alma, toda sacrificada e consumida pelo amor divino, se eleva continuamente a Deus qual varinha de fumo, que de todas as partes trescalava suavíssimo perfume. A nuvem que sobe és tu, Maria, que exalaste para o Altíssimo a suavíssima fragrância das virtudes, diz Roberto, abade. E com maior expressão ainda, disse o Pseudo-Jerônimo: Foi Maria essa varinha de incenso, porque se consumia como um holocausto, inteiramente devorada pelo fogo do amor divino, e exalava sempre suavíssimo olor. E qual viveu a amante Virgem, tal morreu. Assim como o amor divino lhe deu a vida, assim lhe deu também a morte. Pois, como dizem comumente os doutores e os Santos Padres, ela morreu não de outra enfermidade, senão de puro amor. Ou Maria não devia morrer ou só morrer de amor, afirma um escritor sob o nome de Santo Ildefonso.
II. Particularidades da morte de Nossa Senhora
Saudades que Maria Santíssima teve de seu Filho
Mas vejamos agora como se deu a sua feliz morte. Depois da Ascensão de Jesus Cristo, ficou Maria no mundo para atender à propagação da fé. Por isso a ela recorriam os discípulos do Salvador. Resolvia-lhes a Senhora as dúvidas, confortava-os nas perseguições, animava-os nos trabalhos pela glória divina e salvação das almas remidas. Mui voluntariamente se demorava na terra, entendendo ser esta a vontade de Deus para o bem da Igreja. Mas não podia deixar de sentir a pena de ver-se longe da presença e da vista de seu amado Filho, que subira ao céu.
“Porque onde está o vosso tesouro, aí estará também o vosso coração” (Lc 12,34).
Onde alguém julga estar o seu tesouro e seu contentamento, aí estará fixo o amor e o desejo de seu coração. Se, pois, Maria não amava outro bem senão Jesus, estando ele no céu, no céu estavam todos os seus desejos. Taulero escreve por isso:
“A cela de Maria foi o céu, pois que, pelo afeto, lá fazia a sua contínua morada. Sua escola foi a eternidade, porque vivia sempre separada dos bens temporais. Seu mestre foi a Divina Sabedoria, pois operou sempre segundo a luz divina. Seu espelho foi a divindade, porquanto não atendia senão a Deus, para conformar-se sempre à sua vontade. Seu ornamento era a piedade, j á que estava sempre pronta a executar o divino beneplácito. Sua paz estava sempre em unir-se toda com Deus. Em suma, o lugar e tesouro do seu coração era unicamente Deus”.
Andava assim a Santíssima Virgem consolando o seu coração, saudoso nessa dura separação, com o visitar, segundo se conta, os santos lugares da Palestina, em que o Filho estivera em vida. Visitava amiudadas vezes ora a manjedoura de Belém, onde o Filho nasceu; ora a casa em Nazaré, dentro da qual ele viveu tantos anos esquecido; ora o horto de Getsêmani, onde iniciou a sua Paixão; ora o pretório de Pilatos, onde foi flagelado; ora o lugar em que o coroaram de espinhos. Mas com mais frequência visitava o Calvário, cenário da morte do Filho, e o santo sepulcro, onde por último o deixou. E deste modo a amantíssima Senhora e Mãe andava aliviando a pena do seu duro exílio. Mas isto não podia bastar para lhe contentar o coração, ao qual não podia a terra oferecer perfeito repouso. Eis por que lhe eram contínuos os suspiros que enviava ao Senhor, exclamando com Davi, mas com amor mais ardente: Quem me dera penas de pomba para voar ao meu Deus e nele achar o meu repouso? Como o cervo suspira pelos mananciais das águas, assim por vós suspira minha alma, ó meu Deus (Sl 41,2). Como o cervo ferido deseja a fonte, assim a minha alma, pelo vosso amor ferida, meu Deus, vos deseja e por vós suspira. Ah! que os suspiros desta santa rola não podiam deixar de penetrar o coração do seu Deus, que muito a amava.
“Ouviu-se a voz da rola em nossa terra” (Ct 2,12).
Assim, não querendo o Senhor diferir por mais tempo a consolação à sua amada Mãe, eis que lhe sossega as saudades e a chama ao seu reino.
Os escritores gregos citados por Santo Afonso, nas linhas que se seguem, tiram sua descrição dos Apócrifos, cuja preocupação era edificar o povo fiel. Suas descrições são florações e enredos poéticos de duas verdades: da ressurreição do corpo de Maria e da sua celeste glorificação. A lenda da reunião dos apóstolos ao redor de Maria não é nem impossível nem inconveniente, observa um grande teólogo da atualidade, Scheeben. Muito bem eles representam “as 12 estrelas que coroavam a mulher revestida do sol” (Nota do tradutor).
Referem Cedreno, Nicéforo e Metafrastes, que o Senhor lhe enviou, alguns dias antes da morte, o arcanjo S. Gabriel, que outrora lhe levara a mensagem de ser ela a mulher bendita e escolhida para Mãe de Deus. Minha Senhora e Rainha, disse-lhe o anjo, Deus já ouviu os vossos santos desejos e mandou-me a dizer-vos que vos prepareis para deixar a terra, porque ele vos quer consigo no paraíso. Vinde, pois, tomar posse do vosso reino, porquanto eu e todos aqueles santos cidadãos vos esperamos e desejamos. A este feliz anúncio, que outra coisa faria a nossa humilíssima e santa Virgem, senão concentrar-se ainda mais nas profundezas de sua humildade? Que faria, senão repetir aquelas mesmas palavras que respondera ao anjo, quando lhe anunciou a divina maternidade: Eis aqui a escrava do Senhor? Ele por sua bondade me elegeu e fez sua Mãe; agora me chama ao paraíso. Eu não merecia nem aquela, nem esta honra. Mas já que ele quer sobre mim demonstrar a sua infinita liberalidade, aqui estou pronta a ir aonde me quer.
“Eis aqui a escrava do Senhor; cumpra-se sempre em mim a vontade de meu Senhor.”
Maria comunicou depois a S. João a grata notícia que acabara de receber. Imaginemos com que ternura e dor ouviria esta nova, ele que por tantos anos, assistindo-a como filho, gozara a celeste conversação desta Santíssima Mãe!
Ela visitou de novo os santos lugares de Jerusalém, despedindo-se deles com ternura, especialmente do Calvário, onde o amado Filho deixou a vida. Retirou-se depois à sua pobre casa, preparando-se para morrer. Durante todo esse tempo não cessavam os anj os de visitar frequentes vezes a sua amada Rainha, consolando-se em saber que brevemente a veriam no céu.
Presença dos apóstolos
Referem muitos autores, como André de Creta, João Damasceno, Eutímio, que os apóstolos e também uma parte dos discípulos vieram das diversas partes, onde estavam dispersos, reunindo-se no quarto de Maria, antes da sua morte. Ela, pois, vendo-os reunidos na sua presença, começou a falar-lhes assim: “Por amor de vós, e para ajudar-vos, meu Filho me deixou na terra. Agora já a santa fé se acha espalhada no mundo, já o fruto da divina semente se acha crescido. Por isso, vendo o meu Senhor que não é por mais tempo necessária minha presença na terra, compadeceu-se da saudade que sinto em estar longe dele. Quer agora atender ao meu desejo de deixar esta vida e ir vê-lo. Ficai, pois, vós a trabalhar pela sua glória. Se vos deixo, não vos deixo com o coração; comigo levarei e permanecerá sempre o grande amor que vos tenho. Vou ao paraíso rogar por vós”. A esta dolorosa nova, quem poderá compreender quais fossem as lágrimas e os lamentos daqueles santos discípulos, pensando que em breve tinham de separar-se de sua Mãe? Então, chorando, todos começaram a dizer:
“Então, ó Maria, já quereis deixar-nos? É verdade que esta terra não é lugar digno e próprio para vós, nem somos nós dignos de gozar a companhia de uma Mãe de Deus. Mas lembrai-vos que sois a nossa Mãe. Vós fostes até agora a nossa mestra nas dúvidas, a nossa consoladora nas angústias, a nossa fortaleza nas perseguições. E como quereis agora abandonar-nos, deixando-nos sós, sem o vosso conforto, no meio de tantas lutas? Perdemos j á na terra o nosso Mestre e Pai, Jesus, que subiu ao céu. Nós nos consolamos neste intervalo convosco, nossa amorosíssima Mãe. Como, pois, nos quereis, também vós, agora deixar órfãos? Senhora nossa, ou ficai conosco, ou levai-nos convosco!”
Assim nos descreve a cena São João Damasceno. – Não, filhos meus, respondeu com doçura a amorosa Rainha, não; o que pedis não é segundo a vontade de Deus; contentai-vos de fazer o que ele de mim e de vós tem disposto. Resta-vos ainda trabalhar na terra pela glória do vosso Redentor, para completar a vossa eterna coroa. Deixando-vos, não vos abandono. Pelo contrário, hei de socorrer-vos ainda mais com a minha intercessão junto de Deus no céu. Ficai contentes! Recomendo-vos a Santa Igreja, recomendo-vos as almas remidas. Seja este o derradeiro adeus e única lembrança que vos deixo. Fazei-o, se me amais; trabalhai pelas almas e pela glória de meu Filho. Porque um dia nos veremos de novo reunidos no céu, para j amais nos separarmos por toda a eternidade.
Dito isto, rogou-lhes que dessem sepultura ao seu corpo e abençoou-os. Ordenou a São João, como referem Nicéforo e Metafrastes, que depois de sua morte entregasse duas vestes suas a duas virgens, que a tinham servido por certo tempo. Terminado o que, decentemente se compôs sobre o seu pobre leitozinho, onde se pôs com alegria a esperar a morte, e com ela o encontro do Divino Esposo. Pois em breve ele devia vir buscá-la para conduzi-la consigo ao divino reino. Eis que já sente no coração um prazer precursor da vinda do Esposo, que a inunda de uma imensa e nova suavidade.
Vendo os santos apóstolos que Maria j á estava próxima a sair deste mundo, renovando o pranto, puseram-se de joelhos à roda do leito. Uns lhe beijavam os santos pés, outros lhe pediam a bênção, alguns lhe recomendavam as suas particulares necessidades. Todos, enfim, choravam copiosamente e sentiam o coração transpassado de dor, porque tinham de separar-se para sempre, nesta vida, de sua amada Senhora. A Mãe amantíssima de todos, entretanto, se compadece e procura consolá-los. A uns promete o seu patrocínio, a outros abençoa com especial afeto, e anima outros no trabalho da conversão do mundo. Especialmente chamou junto de si São Pedro, e como chefe da Igreja e vigário de seu Filho, a ele recomendou principalmente a propagação da fé, prometendo-lhe uma especial assistência.
Mas singularmente chamou S. João, o qual mais que todos sentia grande dor no momento de separar-se daquela santa Mãe. E lembrando-se a gratíssima Senhora do afeto e atenção com que este santo discípulo a servira, durante o tempo que permaneceu no mundo depois da morte do Filho, lhe disse, com muita ternura: João, agradeço-te toda a assistência que me tens prestado. Filho meu, fica certo que não te serei ingrata. Se agora te deixo, vou rogar por ti. Fica em paz nesta vida, até que nos tornemos a ver no céu, onde te espero. Não te esqueças de mim; em todas as tuas necessidades chama-me em teu auxílio, que eu jamais me esquecerei de ti, meu amado filho. Eu te abençoo e te deixo a minha bênção. Fica em paz; adeus!
Maria morre de amor para com seu Filho
Mas já a morte de Maria está próxima. As ardentes chamas do amor divino já haviam consumido quase todos os espíritos vitais. Eis que a celeste Fênix, no meio de tanto incêndio, vai perdendo a vida. Revoadas de anjos baixavam à terra, como em ato de estarem prontos para o grande triunfo com que deviam acompanhá-la ao paraíso. Muito se consolava Maria com a visita daquela multidão de espíritos. Mas não era completo seu consolo, por não ver aparecer o seu amado Jesus, que era todo o amor do seu coração. Por isso frequentes vezes repetia aos anj os que a vinham saudar: Eu vos conjuro, filhas de Jerusalém, que, se encontrardes ao meu amado, lhe façais saber que estou enferma de amor (Ct 5,8). Santos anjos, ó formosos cidadãos da Jerusalém celeste, vindes em bandos consolar-me, e todos me consolais com a vossa amável presença; eu vos agradeço. Mas vós todos não me contentais completamente, porque não vejo ainda o meu Filho, meu único consolador: Ide- vos, se me amais, voltai ao paraíso e dizei da minha parte ao meu querido que desfaleço e desmaio por seu amor. Dizei-lhe que venha e venha depressa, porque sinto-me morrer com desejo ardente de vê-lo.
Mas eis que Jesus já vem buscar sua Mãe, para conduzi-la ao santo reino. Santa Isabel de Schoenau viu o Salvador aparecer à sua Mãe agonizante, com a cruz na mão. Deste modo queria demonstrar a glória especial que lhe resultara da Redenção, tendo com a sua morte adquirido aquela grande criatura, que, por séculos eternos, devia honrá-lo mais que todos os homens e que todos os anjos.
Gerson é de opinião que o próprio Cristo Senhor subministrou a comunhão por viático a Maria, dizendo-lhe amorosamente: Recebe, ó Mãe, das minhas mãos aquele mesmo corpo que me deste. – E a Mãe, recebendo com maior amor aquela última comunhão, entre os últimos suspiros lhe disse: Filho, nas vossas mãos recomendo o meu espírito, recomendo-vos a alma, que vós criastes desde o princípio, rica de tantas graças, e por singular privilégio preservastes de toda mancha de culpa. Recomendo-vos o meu corpo do qual vos dignastes tomar carne e sangue. Recomendo-vos estes meus queridos filhos (referia-se aos santos discípulos que a rodeavam). Eles ficam aflitos com a minha partida. Consolai-os vós, que mais do que eu os amais, e dai-lhes forças para fazerem prodígios pela vossa glória!
Chega, finalmente, o termo da vida de Maria. Ouve-se, no quarto em que morre, uma celeste harmonia, como narra o Pseudo-Jerônimo. Um grande esplendor ilumina o aposento, conforme uma revelação feita a Santa Brígida. Aos sons dessa harmonia, aos clarões desse esplendor, compreenderam os apóstolos que era chegada a hora do trânsito de Maria. Por isso renovaram as lágrimas e as súplicas, elevando as mãos disseram todos a uma voz: Ó Mãe nossa, já ides para o céu e nos deixais. Dai-nos a derradeira bênção e não vos esqueçais de nós, miseráveis. – Mais uma vez volve Maria os olhos para todos, como por última despedida e diz-lhes: Adeus, meus filhos, eu vos abençoo; ficai certos de que não me esquecerei de vós. – E então veio a morte, mas sem as vestes do luto e da tristeza como vem aos homens. Vem ornada de luz, circundada de alegria. Mas por que falamos em morte? Digamos melhor, veio o amor divino cortar o fio daquela nobre vida. Uma luz, que se vai apagando, bruxuleia, atira vivos lampejos e clarões, e depois se extingue. Assim também a Virgem, formosa borboleta, convidando-a o Filho a segui-lo, imersa na chama de sua caridade e no meio de seus amorosos suspiros, dá um maior suspiro de amor, expira e morre. E deste modo aquela grande alma, aquela formosa pomba do Senhor, se desprendeu dos laços desta vida e voou à glória eterna, onde permanece e permanecerá Rainha por toda a eternidade.
Assim, pois, deixou Maria a terra e está no céu. De lá a piedosa Mãe olha para nós, que ainda estamos neste vale de lágrimas. De nós se compadece e nos promete o seu auxílio, se o queremos. Roguemos-lhe sempre, pelos merecimentos de sua santa morte, nos obtenha uma morte feliz. Peçamos-lhe até a graça de ser a nossa morte num sábado, que é dedicado à sua honra, ou num dia da novena ou do oitavário de alguma de suas festividades; se porventura for isso do agrado de Deus. Já obteve a Senhora esse favor a tantos de seus servos, especialmente a São Estanislau Kostka, que conseguiu morrer no dia da sua gloriosa Assunção.
Exemplo
Este santo jovem, tão dedicado ao amor de Maria, ouviu no primeiro dia do mês de agosto uma conferência, que o padre Canísio fizera aos noviços da Companhia. Aconselhou-lhes o santo pregador, e com muita insistência, que vivessem cada dia como se fosse o último de sua vida, findo o qual lhes fosse preciso comparecer perante o tribunal divino. Terminada a conferência, dissera Estanislau aos companheiros que aquele conselho era, particularmente para ele, a voz de Deus, porquanto havia de morrer naquele mesmo mês. Isto disse, ou porque Deus expressamente lho revelou, ou ao menos por certo pressentimento do que ia acontecer. Quatro dias depois foi o santo j ovem com o padre Emanuel de Sá visitar a igreja de Santa Maria Maior. Em caminho discorreu sobre a próxima festa da Assunção e disse: Padre, creio que nesse dia se vê um novo paraíso, no paraíso, contemplando-se a glória da Mãe de Deus, coroada Rainha do céu e colocada tão próxima ao Senhor, sobre todos os coros dos anjos. Dizem que em cada ano se renova esta festa no céu. Creio nisso e espero que verei a primeira que lá se fizer. Segundo uma aceitável narração, nesse mesmo dia Estanislau escreveu uma carta à sua querida Mãe do céu, na qual lhe pedia a graça de assistir à celebração de sua festa no paraíso. Tocando-lhe então por sorte o glorioso mártir São Lourenço, como protetor do mês (segundo o uso da Companhia), comungou no dia de sua festa e depois suplicou ao Santo que apresentasse a carta à Mãe de Deus, e intercedesse por ele para um favorável despacho da mesma. No fim desse mesmo dia veio-lhe a febre e, embora fraca, deu-lhe contudo como certa a graça pedida quanto a uma próxima morte. Com efeito, ao deitar-se na cama, disse muito alegre e risonho: Daqui não me levantarei mais. E ao padre Cláudio Aquaviva acrescentou: Meu padre, creio que São Lourenço já me obteve de Maria a graça de me achar no céu pela festa de sua Assunção. Mas ninguém ligou importância às suas palavras. Na vigília da festa o mal continuava a parecer leve. Disse, contudo, o Santo a um irmão, que morreria na noite seguinte. Ao que este respondeu: Ó irmão, maior milagre seria morrer, do que sarar de um mal tão insignificante. Entretanto, eis que, passada a meia- noite, caiu o Santo num desfalecimento mortal, começando a suar frio e a perder as forças. Acudiu o Superior, a quem Estanislau rogou que o mandasse pôr sobre o chão, para morrer como penitente. Isto se lhe concedeu para o contentar e foi posto no chão sobre uma coberta. Depois confessou-se e recebeu o viático, não sem comover até às lágrimas os assistentes. Ao entrar no quarto o Santíssimo Sacramento, viram estes o Santo jovem todo radiante de celeste alegria nos olhos, e o rosto todo ruborizado nas chamas de um santo amor, que até parecia um serafim. Recebeu também a Extrema-Unção e entrementes nada fazia senão levantar os olhos ao céu, e ora contemplar, ora beij ar e apertar contra o peito amorosamente uma imagem de Maria. Perguntou-lhe um padre: De que vos serve nas mãos este rosário, se o não podeis recitar? Serve para consolar-me – responde o Santo – pois é uma coisa que pertence à minha Mãe. Se assim é, tornou-lhe o padre, quanto maior será vossa consolação, vendo-a e beijando-lhe em breve as mãos, no céu! Então o santo, com o rosto todo inflamado, levantou as mãos para o céu, exprimindo assim o desejo de achar-se na presença de Maria. Apareceu-lhe depois essa querida Mãe como ele mesmo disse aos circunstantes. E pouco depois ao amanhecer do dia 15 de agosto, expirou como um bem-aventurado, com os olhos fitos no céu, sem fazer movimento algum. Tendo-lhe alguém apresentado a imagem de Maria e notando que ele não se interessava mais por ela, conheceram os presentes que Estanislau passara desta à melhor vida no céu. Já havia partido para ir beijar os pés de sua Rainha no paraíso.
Oração
Ó dulcíssima Senhora e Mãe nossa, já deixastes a terra e chegastes ao vosso reino, onde imperais como Rainha sobre todos os coros dos anjos, segundo canta a Santa Igreja. Bem sabemos que nós, pecadores, não éramos dignos de possuir-vos conosco, neste vale de lágrimas. Mas sabemos também que, no meio de vossas grandezas, não vos esquecestes de nós, miseráveis, e que, por terdes sido sublimada a tanta glória, não perdestes, antes aumentou em vós a compaixão para com os pobres filhos de Adão. Do trono excelso em que reinais, volvei-nos ó Maria, os vossos piedosos olhos, e tende compaixão de nós. Lembrai-vos que, ao deixar esta terra, prometestes que não nos havíeis de esquecer. Olhai para nós, e socorrei-nos. Vede no meio de quantos perigos e tempestades nos achamos e acharemos até ao fim da nossa vida. Pelos merecimentos de vosso bem- aventurado trânsito, alcançai-nos a santa perseverança na amizade divina, para sairmos enfim desta vida na graça de Deus. Desse modo iremos um dia beijar também vossos pés no paraíso, unindo-nos aos espíritos bem-aventurados, para louvar-vos e cantar vossas glórias, como mereceis. Amém.
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