Meus cibus est, ut faciam voluntatem eius qui misit me, ut perficiam opus eius — “O meu alimento é fazer a vontade daquele que me enviou, para consumar a sua obra” (Jo 4, 34)
Sumário. Pobre da alma que conserva apego a qualquer bem terrestre com desagrado de Deus! Ela nunca terá paz na vida presente, com grande risco de nem na outra a conseguir. Bem-aventurado, ao contrário, aquele que só busca ao Senhor e pelo amor dele renuncia a todas as coisas! Alcançará a verdadeira liberdade dos filhos de Deus, e mesmo cá na terra terá um antegosto dos bens que lhe estão preparados no céu. Procuremos, pois, em todas as nossas ações, não ter outra coisa em mira, senão o agrado do Senhor, e digamos muitas vezes: Meu Jesus, só a Vós quero, e nada mais.
I. Em todas as nossas ações não devemos ter outro fim senão o de agradar a Deus, e não aos parentes, nem aos amigos, nem aos poderosos, nem a nós mesmos; pois que está perdido tudo o que não se faz para Deus. Muitas coisas se fazem a fim de agradar e não desagradar aos homens; mas São Paulo diz: Si adhuc hominibus placerem, Christi servus non essem (1) — “Se eu ainda agradasse aos homens, não seria servo de Cristo”. Deus deve ser o nosso único fim em tudo o que fazemos, de modo que com Jesus Cristo possamos dizer: “Faço sempre aquilo que lhe agrada” (2). Foi Deus quem nos deu tudo que possuímos, de nosso temos somente o nada e o pecado. Foi só Deus quem nos amou deveras; amou-nos desde a eternidade, e amou-nos a ponto de dar-nos a sua própria pessoa sobre a cruz e no sacramento do Altar. Só Deus, portanto, merece todo o nosso amor.
Pobre da alma que guarda afeto a algum bem terrestre, com desagrado de Deus! Nunca gozará paz na vida presente e corre grande risco de nem na outra a gozar jamais. Bem-aventurado, ao contrário, ó Deus, aquele que só a Vós busca, e pelo vosso amor renuncia a todas as coisas! Ele achará a joia do vosso puro amor, jóia mais preciosa que todos os tesouros e reinos da terra; alcançará a liberdade verdadeira dos filhos de Deus, porquanto está livre de todos os laços que o atraem à terra e o impedem de se abraçar com Deus.
Ah! Deus se deixa achar por todo aquele que, para achá-lo, se desprende das criaturas! Bonus est Dominus animae quaerenti illum (3) — “O Senhor é bom para a alma que o busca”. Escreve São Francisco de Sales:
“O puro amor de Deus consome tudo que não é Deus, para transformar todas as coisas em si”
Devemo-nos, pois, tornar hortos fechados, assim como Deus chama a Esposa sagrada dos Cânticos: Hortus conclusus soror mea Sponsa (4). Horto fechado chama-se a alma que fecha a porta aos afetos terrenos e obra com o único intuito de agradar a Deus.
II. Ó homens, desiludamo-nos: todo o bem que nos vem das criaturas é lodo, fumo e ilusão. Só Deus nos sabe contentar. Mas na vida presente não se deixa gozar plenamente, dá-nos somente algum antegozo dos bens que nos promete no céu; é ali que nos aguarda para nos saciar do seu próprio gozo. O Senhor dá as consolações celestiais aos seus servos, unicamente a fim de os fazer anelar pela felicidade que lhes prepara no paraíso.
Quidmihi est in coelo et a te quid volui super terram? (5) — “Que tenho eu no céu? E fora de ti que desejei eu sobre a terra?”. Ó Senhor, busquem os outros o que desejarem; eu não quero nem desejo senão a Vós, meu Deus, meu amor, minha esperança, meu tudo. Anteponho-Vos a todas às riquezas, às honras, ás ciências, às glórias, às esperanças e a todos os bens que me podeis dar. Vós sois todo o meu bem; só a Vós quero e nada mais; porque só Vós sois a infinita beleza, a infinita bondade, a infinita amabilidade; Vós, numa palavra, sois o único bem. Portanto nenhum dom que não sejais Vós mesmo, me pode contentar. Repito-o e repeti-lo-ei sempre: só a Vós quero, e nada mais; o que não é de Vós mesmo, digo-Vos que não me pode contentar: Deus cordis mei, et pars mea Deus in aeternum (6) — “Deus do meu coração, e minha porção é Deus para sempre”.
Ó! Quando poderei ocupar-me unicamente em Vos louvar, amar e agradar, de tal forma que não cuide mais nas criaturas, nem em mim mesmo? Ah, meu Senhor, fazei com que de hoje em diante e em todas as coisas, não tenha em mira nem busque senão o vosso agrado. Fazei que sejais todo o meu único amor, visto que tanto por justiça como por gratidão sois digno de todos os meus afetos. E quando me virdes resfriado no vosso amor, com risco de me afeiçoar às criaturas e aos prazeres terrestres, estendei-me a vossa mão lá do alto, e salvai-me (7).
O que mais me aflige é o pensar que pelo passado amei tão pouco a vossa infinita bondade. Mas, ó meu Jesus, desejo e com o vosso auxílio proponho amar-Vos, para o futuro, com todas as minhas forças; e assim espero morrer amando só a Vós, ó meu supremo Bem. Ó Mãe de Deus, Maria, rogai por mim, que sou miserável. As vossas orações nunca sofrem repulsa; pedi a Jesus que me faça todo seu.
Referências:
(1) Gl 1, 10.
(2) Jo 8, 29.
(3) Lm 3, 25.
(4) Ct 4, 12.
(5) Sl 72, 25.
(6) Sl 72, 26.
(7) Sl 143, 7.
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(LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo II: Desde o Domingo da Páscoa até à Undécima semana depois de Pentecostes inclusive. Friburgo: Herder & Cia, 1921, p. 411-414)