O que é contrição
Contrição é o sentimento de haver pecado. Contrição vem da palavra conterere, triturar, esmagar[1]. Este vocábulo expressa o estado de uma alma rasgada, penetrada de dor por haver ofendido a Deus, e que deseja ardentemente reconciliar- se com Ele e recobrar a graça.
O Santo Concílio de Trento (Sess. XIV, cân. IV) define a contrição como uma dor da alma e um aborrecimento do pecado cometido, com um propósito de não voltar a pecar doravante: Contritio animi dolor ad detestatio est de peccato comisso, cum proposito non pecandi de coetero.
Esta contrição deve ir acompanhada do desejo de cumprir tudo o que Jesus Cristo ordenou para a remissão dos pecados: por conseguinte, deve ser acompanhada pela vontade de confessá-los e de satisfazer a justiça divina. Por isso, os teólogos, segundo Santo Tomás, assim definem a contrição: a dor por haver pecado, acompanhado da vontade de confessar e de satisfazer.
Há duas classes de contrição
Os teólogos distinguem duas classes de contrição: a contrição perfeita, e a contrição imperfeita, que chamam atrição.
A contrição perfeita é aquela que tem por motivo o amor de Deus. Reconcilia o pecador com Deus, ainda antes da recepção do sacramento da Penitência; porém, deve sempre encerrar o desejo e a vontade de recebê-lo. Assim se expressa o Santo Concílio de Trento (Sess. XIV, cân. IV).
A contrição imperfeita é concebida, segundo o mesmo Concílio, pela consideração da fealdade do pecado, pelo temor das penas do Inferno, pela perda da graça ou da glória. O Santo Concílio declara que, excluindo a vontade de pecar e mantendo a esperança do perdão, a contrição dispõe o pecador a obter misericórdia no sacramento da Penitência. Decide que esta atrição é um dom de Deus, e um movimento do Espírito Santo, o Qual não habita, entretanto, na alma do penitente; porém, excita-lhe a converter-se. Não lhe justifica por si mesma sem o Sacramento; porém, serve de disposição para recebê-lo (Sess. XIV, cân. IV).
Necessidade da contrição
Jesus Cristo chorou, diz Santo Agostinho; que chore, pois, o homem por si mesmo. Porque chorou Jesus Cristo senão para ensinar ao homem a chorar seus pecados? É necessário que o pecado e o costume de pecar sucumbam perante o sentimento de haver caído (Lib. Confess.).
Animados do amor de Deus, os maiores Santos deploram continuamente suas fragilidades. Como, pois, não hão de chorar os maiores pecadores, autores de enormes pecados de que se fizeram réus?
A voz da rola fez-se ouvir em nossa terra, dizem os Cânticos dos Cânticos. Se as almas fieis e inocentes, figuradas pela rola, deleitam-se em fazer ressoar os desertos com sua amarga dor, que conduta deverão observar as almas que, a cada instante, mancham-se com novas iniquidades?
Havendo São Pemen visto a Santo Arsênio expirar, exclamou: Ditoso Arsênio, que chorou sobre si mesmo enquanto viveu na terra. Os que não choram nesta vida chorarão eternamente na outra (Vit. Patr.).
Se pensássemos em nossos pecados, nem um pedaço de pão comeríamos, sem os haver regado com nossas lágrimas.
Santa Taís, dizia a São Pafúncio que, desde sua entrada no monastério, sempre teve ante seus olhos os seus pecados, e jamais havia deixado de chorá-los. Por isso, respondeu-lhe o grande Santo: Deus os apagou (Vit. Patr.).
A contrição é tão essencial no Sacramento da Penitência, que não pode ser suprida com nenhuma outra coisa, e o pecador não pode ser absolvido se não experimenta um pesar sincero de haver ofendido a Deus.
A contrição foi necessária em todos os tempos para obter a remissão dos pecados. Provam-no os exemplos de Davi penitente, dos nivinitas, de Acab, de Manassés, da Madalena, do publicano, do filho pródigo, de Pedro etc.
A necessidade da contrição é de direito natural e de direito divino. A contrição é para o pecador o que é o sol para a terra, a água para os peixes e o ar para nossos pulmões.
Onipotente como é, Deus não pode, entretanto, perdoar os pecados daquele que não se arrepende.
Excelência e vantagens da contrição
As lágrimas dos penitentes são um vinho delicioso para os anjos, diz São Bernardo: Lacrymae poenitentium vinum sunt angelorum (Serm. in Cant.).
Somente a contrição, diz São João Crisóstomo, tira o pecado. Os outros pesares tem um resultado muito diferente. Queres exemplos? Se haveis perdido vossa fortuna, vosso sentimento não a devolverá a vós. Se a morte vos tirou uma pessoa querida, chorai-a até o fim do mundo, pois, por mais esforços que façais para devolver-lhe à vida, a vossa dor impotente não a fará sair da tumba. Se vos fizeram uma afronta sangrenta e vos achais extraordinariamente entristecido, a vossa pena não poderá evitar que a tenhais recebido. Se vos afligis por estar enfermos, longe de diminuir a enfermidade, vossa pena aumenta. Porém, ao contrário, se sentis por haver ofendido a Deus, vosso sentimento destrói vossos pecados; vossas lágrimas, ao cair sobre as faltas, apagam-nas.
Dizendo com o profeta Jeremias: a coroa caiu de nossa cabeça; desgraçados de nós, porque pecamos: Decidit corona capitis nostris; vae nobis, quiapeccavimus (Lm 5, 16), voltemos a por sobre a cabeça descoberta o glorioso diadema que antes levava. Deplorando a louca audácia que nos fez perder a santidade, nascida de nosso batismo, preparamo-nos um novo batismo (Homil. V, ad pop.); pois, diz São Bernardo: A compunção do coração e as lágrimas sinceras são um verdadeiro batismo: Est baptismus aliquis in compunctione cordis, et lacrymarum assiduitate (Serm. III, in Cant.).
A dor sincera de haver pecado, acrescenta São Bernardo, é um tesouro infinitamente digno de se desejar; infunde no espírito do homem uma alegria que não se pode expressar. A contrição do coração é a cura da alma; é a remissão dos pecados: faz recobrar o Espírito Santo; pois o homem chora seus pecados assim que o Espírito Santo visita-o[2].
O espírito compungido é o sacrifício mais grato para Deus, diz o Real Profeta; não desprezareis, ó meu Deus, o coração contrito e humilhado: Sacrificum Deo spiritus contribulatus: cor contritum et humiliatum, Deus, non despicies (Sl 50, 19).
A contrição, diz Santo Efrém, cura a alma, ilumina o espírito, e apaga os pecados: Compunctio sanitas animae ets, illuminatio mentis est; compunctio remissionem peccatorum vobis acquirit (De die Judic). Ó ditosa dor, exclama São Jerônimo, que atrai o olhar de Deus! O felix poenitentia, quae ad se Dei trahit oculos (Epist. XXX, ad Oceanum).
Vede quantas são as riquezas da compunção:
1.° é santa e reconcilia a alma com Deus, o que é o princípio de uma felicidade imensa;
2.° vem do amor de Deus, pois aquele penitente arrepende-se de ter ofendido a Deus porque vê que Deus, a Quem ofendeu, é um grande Bem, é amável em Si mesmo e para todas as suas criaturas. Assim, pois, o amor de Deus é a única verdadeira alegria;
3.° o penitente que deseja se arrepender, e o faz com alegria, alimenta-se de compunção e de lágrimas como de um manjar delicioso. O sentimento (de pesar) por haver pecado é doce, humilde etc., enquanto qualquer outro sentimento é amargo, penoso, impaciente e insuportável.
Uma consciência culpável, diz São Bernardo, é o inferno e o cárcere da alma: Infernus quidem et carcer animae, rea conscientia (Serm. in Cant.). Assim, pois, a contrição destrói a culpabilidade do homem. Então, a consciência descansa em paz, as lágrimas a purificam, e formam como um rio no qual embarca a alma para dirigir-se a seu Deus, e chega ao porto da salvação eterna.
Todos os Santos acharam nas lágrimas da compunção uma doçura indizível, como sempre foi fácil vê-lo na majestosa serenidade que sempre apresentam em seus rostos.
Quando ouvirdes falar das lágrimas da contrição, diz São João Crisóstomo, não vos figureis que sejam a imagem da dor e dos sofrimentos; são mais doces que todas as delícias que se podem gozar no mundo. Uma só lágrima de arrependimento é mais agradável que todas as pretendidas alegrias que podem dar os deleites (Lib. de compunct. cordis).
O pródigo, que derramava uma torrente de lágrimas aos pés de seu pai, experimentava uma felicidade infinitamente maior que quando, entregue à sua louca liberdade, desperdiçava, em orgias, sua saúde e sua fortuna.
Quando a Madalena, aos pés de Jesus Cristo, regava os de seu Deus, experimentou mais consolos naquele momento supremo que durante toda a sua vida escandalosa.
As lágrimas de arrependimento e de devoção, diz Santo Agostinho, tem uma doçura que não se acha nas falsas alegrias que se buscam nos espetáculos (Confess.)
São João Clímaco desenvolve admiravelmente as vantagens e os frutos das lágrimas que os servidores de Deus derramam. Transbordo de admiração, diz, quando considero a felicidade que a compunção procura. Como, pois, é possível que os homens carnais somente vejam nela coisas aflitivas? Semelhante à cera que contém mel, ela contém um manancial inesgotável de doçuras espirituais. Deus visita e consola, de um modo invisível, porém inefável, os corações despedaçados de santa dor (Grad. V). Experimenta-se muitíssimo mais prazer em chorar os pecados, que em cometê-los. Para degustar a paz de uma boa consciência.
Diz Bossuet:
É preciso que esta consciência esteja purificada, e nenhuma água o pode fazer senão as lágrimas do coração. Correi, pois, lágrimas de compunção; correi como uma torrente, ondas bem-aventuradas; limpai essa consciência manchada, lavai esse coração profanado, e devolvei- me aquela alegria divina que é fruto da justiça e da inocência, diz o Salmista: Redde mihi laetitiam salutares tui (Sl 50, 13 – Serm. sobre o amor aos prazeres).
Quem nos dará, acrescenta, que saibamos saborear este prazer sublime da compunção, a qual nasce, não da turbação da alma, senão de sua paz; não de sua enfermidade, senão de sua saúde; não de suas paixões, senão de seu dever; não do ardor inquieto e sempre variável de seus desejos, senão da retidão de sua consciência; prazer, por conseguinte verdadeiro, que não agita a vontade, senão que a acalma; que não surpreende a razão, senão que a ilumina, que não lisonjeia superfluamente os sentidos, senão que arrasta completamente o coração até Deus? (Ut supra).
Somente a compunção pode abrir o coração a estas divinas alegrias. Ninguém é digno de ser recebido a degustar os castos e verdadeiros prazeres, se não chorou, antes, o tempo vertido em enganosos deleites. Poderia o pródigo saborear as admiráveis doçuras de sua mesa, se não houvesse chorado amargamente suas libertinagens, seus extravios e suas dissolutas alegrias? (Ibis, ut supra).
4.° A contrição oferece a esperança da felicidade eterna; e a arca da celestial alegria; e a celestial alegria mesma saboreada antecipadamente;
5.° a compunção regozija a Deus, aos Anjos, e a todos os eleitos; como não cumularia a alma de felicidade? Escutai a Jesus Cristo: Um pecador que se arrependa, diz, causa mais alegria no Céu que noventa e nove justos que não necessitam de penitência: ita gaudium erit in coelho super uno pecatore poenitentiam agente, quam super nonaginta novem justis qui non indigente poenitentia (Lc 15, 7).
6.° a contrição alcança para o pecador a paz e o perdão de todos seus pecados: afugenta aos demônios, fecha o Inferno, e dá a vitória contra Satanás, contra o mundo e a concupiscência; abre o Céu e leva-nos a ele.
Não cabe perversidade nem degradação ali onde se veem lágrimas de compunção e humildade; a ordem mais perfeita reina ali, e o coração está inundado de bens; porém, se faltam aquelas circunstâncias, tudo está transtornado, assolado e aniquilado.
A compunção gera:
1.° a humildade, porque quem se atreveria a orgulhar-se depois de haver merecido o Inferno?
2.° a paciência;
3.° o amor a Deus;
4.° o amor ao próximo, por quem nos esforçamos em preservar do pecado;
5.° desprende a alma da terra; e
6.° une-a a Deus.
Aqueles que semeiam lágrimas, diz o Salmista, ceifarão plenos de júbilo. Quando iam, espalhavam, chorando, suas sementes; mas, quando retornarem, voltarão com grande regozijo, trazendo os grandes feixes de suas colheita: Qui seminant in lacrymis, in exultatione metent. Enuntes ibant et flebant mittentes semina sua; venientes autem, venient cum exultatione, portantes manipulos suos (Sl 125, 5-6).
O Senhor é Quem sara aos de coração contrito, e cura-lhe as feridas, acrescenta o Salmista: Qui sanat contritos corde, et allligat contritiones eorum (Sl 146, 3). Deus, diz Isaías, habita no coração contrito e humilhado, para vivificar o espírito dos humildes, e dar vida ao coração dos contritos (Is 67, 15). E em quem porei Eu os meus olhos, diz o Senhor por Isaías, senão no pobrezinho e contrito de coração, aquele que ouve com respeitoso temor minhas palavras? (Is 66, 2).
Jesus Cristo aplicou-Se estas palavras: O Espírito do Senhor repousou sobre mim; pelo qual me consagrou com sua unção divina, e me enviou para evangelizar aos pobres, a curar aos que tem o coração contrito, a anunciar a liberdade aos cativos, e vista aos cegos, a libertar aos que estão oprimidos, a promulgar o ano das misericórdias do Senhor ou do Jubileu, e o dia da retribuição. Acrescentando depois: Hoje, a Escritura que acabais de ouvir cumpriu-se (Lc 4, 18 etc.).
QUALIDADES QUE DEVE TER A CONTRIÇÃO
1.° Deve ser interior
A contrição deve ser interior, sobrenatural, soberana e universal. A dor da penitência deve nascer do fundo do coração, ajudado pela graça, e não deve vir do espírito, nem da memória. Não se parece com aquelas águas que se fazem brotar artificialmente com ajuda de aparelhos; é um rio que salta de seu manancial, sai da fonte por onde passa, desenraíza tudo, arranca e arrasta tudo o que encontra; produz uma santa desolação que apaga os danos causados pelo pecado; nenhum crime se lhe escapa! A contrição não imita a Saul que, matando aos amalecitas, mantinha em vida ainda aquilo que lhe agradava.
Agradavam-lhe chorar, diz São Bernardo, e choravam amargamente porque amargamente também se arrependiam: Amabant flere, et flebant amare; amare flebant, quia amare dolebat (In Psalm.).
Pedro chorou amargamente sua queda: Petrus felvit amare (Lc 22, 62). Esta é a contrição do coração. Madalena, aos pés de seu Mestre, tinha a contrição interior.
O mal do pecado está no coração, e não em outra parte; porque é somente o coração que peca, é somente o coração aquele que se embriaga com o veneno da desobediência. O coração é, pois, o único que está enfermo: por conseguinte, no coração é onde se deve despejar o remédio da contrição.
O Real Profeta diz: Senhor, não desprezeis um coração contrito: Cor contritum, non despicies (Sl 50, 19). Deus disse por meio do profeta Joel: Rasgai vossos corações e não vossas vestes: Scindite corda vestra, et non vestimenta vestra (Jl 2, 13).
Não nos podemos contentar com recitar com a beira dos lábios um Ato de Contrição. Não basta imaginar-se, pensar e dizer que nos arrependemos de haver ofendido a Deus. O coração é o princípio de todos os pecados, até dos exteriores. O que sai da boca, diz Jesus Cristo, é do coração que sai, e isso é o que mancha o homem; porque do coração é de onde saem os maus pensamentos, os homicídios, os adultérios, as fornicações, os furtos, os falsos testemunhos, as blasfêmias: Quae autem procedunt de ore, de corde exeunte, et ea coinquinant hominem. Dec corde enim exeunt cogitationes malae, homicidia, adulteria, fornicationes, furta, falsa testimonia, blasphemiae (Mt 15, 18-19).
No coração é, pois, onde se deve encontrar o arrependimento. É preciso afundar no coração a espada da contrição; é preciso que esta espada fira-o e atravesse-o de lado a lado. Então, sucede uma maravilha: por onde entrou a espada, penetra também a graça, e purifica; e por onde ela sai, vai-se embora a corrupção do pecado.
Um coração contrito e humilhado é o que Deus pede ao pecador: sem isto, as manifestações exteriores são inúteis; ainda mais, são erros, mentiras, hipocrisia. Podemos nos enganar, porém, a Deus não podemos enganar, Ele que sonda o mais profundo dos corações.
Por isso, os Santos Padres chamaram a contrição de compunção do coração. Todo sentimento que não ponha fim à vontade de pecar, nem ao afeto que temos para com os pecados, não é uma verdadeira contrição. A contrição somente merece este nome quando habita no coração.
Não se pode restabelecer a ordem senão ali onde foi alterada. Por isso, as lágrimas puramente exteriores, os protestos, os gemidos e os gritos não são mais que mentiras quando não se altera a vontade, e a vontade está no coração. Porém, tende em conta: não há contrição sem humildade e sem mortificação da carne.
Vinde, diz o Rei Profeta, adoremo-Lo, e choremos ante o Senhor que nos criou: Venite, adoremos, et procidamus, et ploremus ante Dominum (Sl 94, 6). Sim, Senhor, aceitareis, purificareis e abençoareis um coração contrito e humilhado: Cor contritum et humiliatum, Deus, non despicies (Sl 50, 19).
2.° A contrição deve ser sobrenatural
Se vós, ó Senhor, quisésseis sacrifícios, diz o mesmo Real Profeta, certamente eu vo-los ofereceria; mas Vós não vos comprazeis somente com holocaustos, ou com atos de religião meramente exteriores. O espírito compungido é o sacrifício mais agradável a Deus: Sacrificium Deo spiritus contribulatus (Sl 50, 18-19).
Deve nos faze detestar o pecado pelo fato de ser uma ofensa inferida a Deus. Aquele que chora seu pecado pela vergonha que lhe ocasiona e pelo castigo que recebe ante os homens, ou melhor, porque aquilo é contrário à lei natural, não tem mais que uma contrição natural e insuficiente.
O filho pródigo manifesta uma contrição sobrenatural, quando diz: Pater, peccavi in coelum et coram te (Lc 15, 21).
- Pai, pequei contra o Céu, isto é, muito gravemente. Meus pecados subiram até Deus, e pedem vingança.
- Eu pequei contra o Céu, isto é, contra Deus e contra os Anjos.
- Eu pequei contra o Céu, preferindo a terra ao Céu, a carne ao espírito, a morte à vida, o Inferno ao Paraíso, Barrabás a Jesus Cristo, o demônio a Deus.
- Eu pequei contra o Céu, porque o perdi e dissipei os dons celestiais.
- Eu pequei contra o Céu, porque pisoteei o Sangue de Jesus Cristo; como Judas, eu vendi o Salvador; como o povo judeu, pedi Sua morte; como Pedro, reneguei-O; como Pilatos, condenei-O; como Herodes, escarneci Dele e desprezei-O; como os soldados romanos, chicoteei-O e coroei-O de espinhos; sobrecarreguei-O com o enorme peso da cruz; crucifiquei-O entre ladrões, que são o demônio e minhas paixões; dei-Lhe de beber fel, dei-Lhe a morte, atravessei Seu lado…
- Eu pequei contra o Céu, porque matei minha alma criada por Deus, feita à imagem de Deus e para Deus.
- Eu pequei contra Vós, contra Vós, ó meu Deus, ante Vós, ante à vossa vista, quando estava em vosso poder; servi-me, sim, para ultrajar-Vos, dos dons naturais e sobrenaturais dos quais me
- Pequei na presença de meu Anjo da Guarda, afogando a voz de minha consciência que, entretanto, protestava.
Crucificastes a Jesus Cristo, disse São Pedro aos judeus, e, ao ouvirem esta terrível censura, arrependeram-se do fundo do coração, e disseram ao Apóstolo: “- Que haveremos de fazer para obter misericórdia?” – Fazei penitência, disse-lhes São Pedro, arrependei-vos sinceramente (At 2, 36-38).
Os motivos da contrição sobrenatural são:
1.° os pecados que temos cometido; e
2.° os pecados que ajudamos a cometer contra Deus, autor da graça e conhecido pela fé.
Três exercícios podem ajudar-nos a obter uma contrição sobrenatural:
1.° fazer uma estação[3] em espírito ao Calvário;
2.° descer com o pensamento ao Inferno, que fizemos por merecer ao cometermos o pecado; e
3.° transportar-nos ao Céu, do qual nos temos feito indignos.
Com isto, vemos que a contrição é um dom de Deus. O homem não pode arrepender-se como deve sem a inspiração e o socorro do Espírito Santo. O pecador que deu morte à sua alma com o pecado e morreu para a eternidade, não pode ressuscitar sem o auxílio de Deus, que é o autor da vida.
3.° A contrição deve ser soberana
A contrição deve ser um pesar superior a todos os demais pesares. Por quê? Porque o pecado é o maior de todos os males, o único e imenso mal. O pecado dirige um ataque contra Deus e contra a alma; o pecado é o soberano mal diante de Deus. E o soberano mal para o homem.
Uma ferida profunda e muito perigosa requer um poderoso remédio, diz Santo Ambrósio. O pecado é uma grande ofensa, que faz necessária uma grande satisfação: Grandi plagae alta et prolixa opus est medicina; grande scelus grandem habet necessariam satisfactionem (Serm.).
Davi oferece-nos um modelo de contrição soberana. Reconhece sua falta, humilha-se, arrepende-se, confessa-se pecador, chora, deixa o manto real e a coroa; jejua, cobre-se com um cilício e retira-se para a solidão.
Lê-se, no livro de Judite, que o povo de Deus, sitiado por Holofernes, na Betúlia, pôs-se chorar, a dar profundos gemidos e a clamar pelo Senhor, dizendo: Pecamos, agimos injustamente, cometemos iniquidades (Jud 7, 18-19). Eis aqui um modelo de contrição soberana. Encontramos outro em São Pedro, que chorou amargamente, até sua morte, a falta que havia cometido negando a Jesus Cristo.
É preciso, sobretudo, que o pecado mortal desgoste-nos mais que todos os outros males que nos possam suceder. A razão disto é evidente: com o pecado mortal atacamos e perdemos a Deus; Deus é o maior de todos os bens, o único e soberano Bem; é, portanto, preciso que sintamos esta perda mais que qualquer outra. Se nossa contrição acontecesse de outro modo, nossa contrição não seria soberana.
Sem embargo, para que a dor seja soberana, não é necessário que seja exteriormente e mais sensível de todas as dores, isto é, que experimentemos no apetite sensível as mesmas impressões de sentimento, ou que derramemos tão abundantes lágrimas e se exalem de nosso peito os mesmos soluços como se, por exemplo, tivéssemos perdido a um pai ou uma mãe. Porque, enquanto a alma está unida ao corpo, comove-se mais por objetos sensíveis do que por aqueles que não caem sob a impressão dos sentidos. Basta que a dor seja concebida verdadeiramente no ânimo, pelo entendimento, e na vontade.
1.° Pelo entendimento, conhecendo a gravidade da ofensa a Deus; e
2.° na vontade, aborrecendo seriamente os pecados.
E, assim, não é necessário que a dor seja algum movimento do apetite sensitivo, porque o Concílio de Trento chama-lhe somente animi dolor, e a palavra ânimo não significa apetite sensitivo, senão o entendimento e a vontade. Logo, a contrição pode ser verdadeira sem esta expressão sensível, a qual não está em nosso poder.
4.° A contrição deve ser universal
A contrição deve ser universal, isto é, deve se estender a todos os pecados mortais que foram cometidos, sem excetuar nenhum, posto que todos atacaram a Deus, fizeram da alma Sua inimiga, escrava do demônio, e digna do Inferno.
Tende cuidado, diz Bossuet, porque há no coração, muitas vezes, pecados que sacrificamos; porém, também há o pecado querido, a paixão favorita; e quando temos de sacrificar este pecado, esta paixão, o coração suspira em segredo, e somente com muita dificuldade se pode resolver. A contrição universal fere a este pecado, a esta paixão, e a extermina sem misericórdia; entra na alma como um Josué na terra dos filisteus; tudo destrói e derruba: assim é a dor universal.
E por que esta execução sangrenta? É que teme a compunção de um Judas, a de um Antíoco, a de Balaão; compunções falsas e hipócritas, que enganam a consciência com as aparências de uma dor superficial. A dor da penitência propôe- se a mudar a Deus, porém é preciso mudar antes o homem; e a Deus não se muda nunca, se não é pelo esforço desta repercussão. Temeis a mão de Deus e seus juízos: já é uma santa disposição. O Santo Concílio de Trento (Sess. XIV de Poenit., can. IV) quer também que este temor vos leve a detestar todos os vossos crimes (Serm. sobre a integr. da Penit.).
Do bom propósito e de sua necessidade
A contrição é uma dor pelos pecados cometidos, com o firme propósito de não voltar a cair neles. Assim é que a contrição abraça o passado e o porvir; o passado para detestar as quedas, o porvir para evitá-las.
A vontade sincera e formal de não voltar a pecar mortalmente no provir, é tão necessária para obter o perdão de nossas faltas, como necessário é o arrependimento dos pecados que cometemos. A dor de haver ofendido a Deus não pode ser verdadeira se não for acompanhada de uma resolução sincera de não voltar a pecar, resolução tão firme como o pode permitir a fragilidade humana. Pois, seria zombar de Deus confessar ter-lhe ofendido sem sentir pesar; e é uma ilusão o dizer que sentimos haver cometido aquilo que estamos resolvidos a cometer de novo, e haver feito o que queremos voltar a fazer. A contrição sincera deve excluir toda afeição ao pecado. Assim, pois, aquele que não tenha a firme resolução de não voltar a cair no pecado, saiba que ainda o ama.
Há muitos homens, diz Santo Agostinho, que confessam com frequência que são pecadores, e, contudo, deleitam-se ainda no pecar. Sua palavra é um reconhecimento, e não uma mudança; declaram as chagas de sua alma, e não as curam; confessam a ofensa, e não a apagam. Somente o ódio ao pecado e o amor a Deus constituem uma verdadeira contrição: Multi assidue se dicunt essepeccatores, et tamen adhuc illos delectat peccate. Professio est, non emmendatio; accusatur anima, non sanatur; pronunciatur ofensa, non tollitur. Poenitentiam certam non facit, nisi odium peccati et amor Dei (Lib. de Morib.).
A resolução de não ofender a Deus chama-se bom propósito. O bom propósito é uma parte essencial da contrição, e deve ter as mesmas condições que ela:
- deve ser interior;
- sobrenatural;
- soberana; e
- universal
No fundo, ela nada mais é que a contrição mesma no tocante ao futuro. A resolução de não ofender mais a Deus é rigorosamente necessária: sem ela, o homem engana-se, e trata de enganar a Deus. É simultaneamente uma cegueira e um crime.
Quando Jesus curou o paralítico da piscina, disse-lhe: Bem, estás curado; não peques doravante, para que não te suceda alguma coisa pior: Jam noli peccare, ne deterius aliquid tibi contigat (Jo 5, 14).
Com quais sinais se conhece o bom propósito
Três sinais principais dão-nos a conhecer que houve um bom propósito:
1.° os esforços feitos e que se fazem para corrigir-se;
2.° a fuga das ocasiões de pecado; e
3.° a mudança de vida.
1.° Os esforços feitos e que se fazem pra corrigir-se. Tendem vossas aspirações ao Céu? Trabalhais para sujeitar a carne ao espírito, e o espírito a Deus? Deixais o mundo de lado para não ocupar-vos senão de Deus? Se assim sucede, fazeis esforços para corrigir-vos, tendes bom propósito. Porém, se não vos dedicais a frear a concupiscência, se conservais o gosto pelo mundo, se não fazeis nenhum esforço para serdes melhores, não tendes bom propósito.
2.° que haja a fuga das ocasiões de pecado. Tendes os sentimentos do Rei Profeta, quando dizia: Aborreci a injustiça e a detestei? Iniquitatem odio habui, et abominatus sum? (Sl 118, 163). Neste caso, tendes bom propósito. Porém, aborrecendo uma coisa, deve-se dela fugir. Se vos horroriza um assassino, vós o evitais; se vos horroriza um veneno, não o tragais; se vos horroriza um cachorro raivoso e temeis seu encontro, vós vos pondes em lugar seguro.
Quando Deus tirou o universo do nada, disse: Haja um firmamento em meio das águas, e separe umas águas de outras: Fiat firmamentum in médium aquarum, et dividat aquas ab aquis (Gn 1, 6). Uma prova de haver bom propósito é que nos afastemos das águas corrompidas da concupiscência e nos aproximemos das águas da graça.
Esta convertido e seguro do perdão, diz São Gregório, somente aquele que chora seu pecado e não descuida nada para não voltar a recair: Perfectae convertitur qui, quodprave egerat, plangit, et quod rursum plangat, ultra non repetir (In lib. I Reg., lib. III, c. VII).
Santo Agostinho diz que aquele que volta a abrir suas antigas feridas não está convertido. Quando um enfermo está curado, diz, despede ao médico; porém, quando estamos curados do pecado, temos de voltar-nos a Deus, unir-nos constantemente com Ele, e dizer com o Salmista: É-me vantajoso aderir-me a Deus e colocar minha esperança Nele. A presença de Deus ilumina-nos, purifica-nos e beatifica; Pelo contrário, quando Deus está ausente, voltamos a cair (In Psalm.).
3.° a mudança de vida. O primeiro instinto que um homem, tocado por Deus e verdadeiramente contrito, experimenta é o de afastar-se do mundo. A mesma voz que nos chama à contrição, chama-nos à fuga, à vigilância, ao afastamento das ocasiões próximas de pecar.
O homem contrito e pleno de bom propósito, não é mais mundano. A mulher que se arrepende e tem bom propósito, não é mais a mulher cômoda, complacente, a mediadora hábil, a amiga oficiosa que permitia correspondências secretas. Já não procura nem encontra expedientes e facilidades; aprende outra linguagem, e sabe dizer: Não, já não posso; sabe pagar ao mundo com negativas prontas e sérias.
O homem penitente não mais vive como os outros; não mais trata de agradar, desagrada-se a si mesmo. Sente seu mal; desgosta-se não somente do mundo que lhe enganou, senão simultaneamente de si mesmo, por se haver deixado surpreender por tão grosseiros atrativos. Dá-se conta dos numerosos pecados que cometeu com suas desgraçadas complacências.
Havendo-se convertido, certo indivíduo que levava uma vida criminosa com uma jovem, deixou inteiramente de ver aquela a quem ele perdia, e a qual, por sua vez, levava-o a perde-se. Um dia, sem embargo, encontrou-a por casualidade, porém passou longe, sem deter-se. Então, ela dirigiu-lhe a palavra:
“- Não me conheceis mais? – disse – Sou fulana…”
“- Podeis ser quem queirais ser – respondeu-lhe ele – porém eu não sou o mesmo que era antes. Jurei não ofender mais a Deus, e salvar minha alma; imitai- me vós…”
Todo pecador deve seguir o exemplo daquele jovem, e tomar a firme resolução de não voltar a pecar.
Referências:
[1] Traduz a ideia de esmagar, esmigalhar, destruir, pisar etc. (Nota do tradutor)
[2] Bona compuntio thesaurus est desiderabilis, et inenarrabile gaudium in mente hominis. Compuntio cordis sanitas et animae; compunctio lacrymarum remissio est peccatorum compunctio reducit Spiritum Sanctum ad se; quia, cum Spiritu Sancto visitatur, statim homo peccata sua plorat (Tract. de modo bene vivendi, c. X).
[3] Uma espécie de visita espiritual ou contemplativa (Nota do tradutor).